domingo, 30 de outubro de 2011

PIONEIROS URBANOS

     Barro, o barro onipresente das planícies aluviais do sul da Mesopotâmia, foi o material com que se construiu a primeira civilização do mundo. O barro, moldado em blocos retangulares de tamanho uniforme, era usado na construção de casas, templos e muralhas. Nas tabuletas de barro amassado os cidadãos registravam suas transações comerciais, suas leis e os rituais de sua religião. Com o barro moldado e cozido produziam utensílios para cozinhar e armazenar. Figurinhas de argila, de seres humanos e de animais, representavam as imagens que os primeiros escultores tinham do mundo a seu redor. Mas acima de tudo, o barro oferecia a fértil camada superior do solo, que alimentava as colheitas das quais dependiam as cidades.
     Se as safras de trigo e cevada quebravam, a cidade também ia à falência. E não apenas devido à falta de alimento, pois as colheitas significavam mais que simples sustento: os excedentes agrícolas liberavam os lavradores do trabalho do campo, permitindo que se tornassem artesãos ou comerciantes; a organização de projetos essenciais de irrigação gerava uma hierarquia de governantes e administradores; a exportação de grãos compensava a importação de artigos de luxo e o conseqüente aumento das riquezas atraía imigrantes e mercadores. Tudo que caracteriza uma cidade moderna reduzia-se, em última análise, ao barro.
     Por volta de 3500 a.C. a civilização da Suméria, no Oriente Médio, começou a erguer-se do barro da Mesopotâmia, ao longo das águas generosas dos rios Tigre e Eufrates. Mas as cidades sumérias não foram as primeiras: já em 8000 a.C., cerca de 3 mil pessoas residiam em Jericó, cidade situada ao lado de uma fonte de água fresca no vale do rio Jordão. Mas a grande realização dos sumérios foi unir diversos povoados sob um só governante, com as mesmas leis, os mesmos deuses e a mesma cultura. Como pioneiros da civilização, os sumérios foram, por algum tempo, os únicos na Terra; outros, porém, haveriam de se seguir em breve. O barro do Egito, da China e da Índia era tão produtivo como o da Mesopotâmia e ao longo de alguns dos maiores rios do mundo – o Nilo, o Indus e o rio Amarelo – pequenas comunidades ribeirinhas floresciam e se transformavam em civilizações desenvolvidas.
     Uma vez acesa a chama, era impossível extingui-la. As populações citadinas foram sempre aumentando em porcentagem, no total mundial, por vezes formando espetaculares centros de progresso humano: Roma, no século I d.C., foi a primeira cidade do mundo a ter um milhão de pessoas; Chang’na, capital da China imperial, atingiu a mesma população alguns séculos depois. Maravilhas de seu tempo, essas cidades e outras semelhantes eram apenas um presságio do que o futuro traria. Com o alvorecer da era industrial, a evolução da humanidade em direção à vida urbana transformou-se numa explosão. Ruas foram asfaltadas, muralhas erguidas e as cidades se espalharam pelos campos, num vendaval de tijolos, cimento e concreto. Em 1990, havia metrópoles que abrigavam até 20 milhões de habitantes em seus vários centros, em vastos conglomerados urbanos. Mas o importante não era o tamanho das cidades e sim as mudanças que produziram na vida de seus habitantes. Sua existência agitada atuou como uma força propulsora da mudança social e as exigências de convívio estimularam a criação de novos códigos de comportamento. O próprio conceito de lei, por exemplo, diferenciou os primeiros moradores urbanos de seus primos do campo; na Atenas clássica, as exigências do demos, ou seja, das pessoas comuns, produziram a democracia; e a experiência das cidade industriais do século XIX incentivou Karl Marx e Friedrich Engels a escreverem seu Manifesto Comunista. A mudança não se limitou à política. Na arte e na arquitetura, na educação e no lazer, no crime e no comércio, em quase todos os campos do empreendimento humano, a proximidade entre os homens desencadeou inovações.
     Entre o barro e a metrópole, a evolução das cidades foi um dos fenômenos mais importantes da história da humanidade – e, na verdade, do planeta. Durante cerca de 4,5 bilhões de anos a vida na Terra se desenvolveu de acordo com as leis da seleção natural. Cada planta, cada animal, existia dentro do seu próprio nicho ecológico, adaptado à realização de uma determinada tarefa, dentro de determinado habitat, numa cadeia interdependente de sobrevivência. Os seres humanos, assim como todas as outras formas de vida, também se sujeitavam a esse padrão. Talvez tenham sido mais inteligentes do que a maioria das outras criaturas, mas seu papel ainda se limitava ao de caçadores-coletores, percorrendo as áreas habitáveis do globo em busca de comida.
     Com o advento das cidades, porém, esse padrão se desfez para sempre. Ao transformar seu habitat, a humanidade encontrou um novo nicho – na verdade, não apenas um nicho, mas tantos quantos a mente pudesse conceber. Sim, pois a chave da vida urbana era a oportunidade. Uma vez libertados da coerção imposta pela busca diária de alimentos, os moradores da cidade podiam especializar seus trabalhos: cestaria, cerâmica, tear, tecelagem, preparo do couro, carpintaria, construção – o que quer que o mercado comportasse. E à medida que o mercado se tornava mais amplo e diversificado, também aumentavam as oportunidades. O impacto dessa mudança, à primeira vista simples, foi enorme. As pessoas não precisavam mais lutar apenas para sobreviver como caçadores e coletores; havia agora um leque quase ilimitado de ocupações a seu dispor. Na verdade, a humanidade se desviara da escala evolutiva.
     Não foi um salto repentino, mas sim uma série de mudanças milimétricas, durante milhares de anos. O paradoxo é que a própria natureza favoreceu esse afastamento da ordem natural. No final da última Idade do Gelo, por volta de 10 mil anos antes de Cristo, a Terra voltou à vida. As geleiras derreteram, revelando os continentes que jaziam sob sólidas camadas de gelo e libertando a água, antes imobilizada. O nível dos mares elevou-se e os ventos começaram a soprar, trazendo chuva e fertilidade para áreas estéreis. Nesse novo mundo próspero tornou-se cada vez menos necessário para os seres humanos perambular em busca de comida. Em certas áreas era possível levantar acampamentos que duravam o ano todo, pois os recursos do campo bastavam para satisfazer as necessidades do grupo. Dos assentamentos ao cultivo da terra, foi apenas um passo. Por volta de 7000 a.C. esses primeiros aldeões já dominavam a arte de controlar as colheitas e domesticar os animais, passando de nômades sedentários a agricultores experientes.
     O novo modo de vida era de uma produtividade espantosa: o mesmo terreno que antes sustentava um caçador-coletor podia agora alimentar cerca de duzentos agricultores. Todas as outras atividades também se expandiam, pois os trabalhadores liberados do campo passavam a especializar-se. Construíram-se muralhas em torno desses povoados agrícolas, para proteger tanto seus habitantes como os estoques de cereais contra ataques de nômades. A segurança, juntamente com a abundância de alimentos e de produtos manufaturados, agia como um imã para os agricultores dos arredores e assim a população das aldeias foi crescendo.
     Nem todos que chegavam a essas comunidades vinham para ficar. Muitos eram mercadores, de passagem. Desde que os agricultores começaram a acumular o excedente de suas colheitas, haviam percebido que esses bens poderiam ter outras utilidades, além de alimentar as pessoas. Era possível trocá-los por outros produtos necessários, ou mesmo por artigos de luxo que existiam apenas em outras regiões. Aos poucos os comerciantes foram se afastando cada vez mais de suas bases, exportando novas tecnologias, como o trabalho com metais e a fabricação de vidro, e trazendo de volta novas mercadorias e novas idéias.
     Nas transações comerciais era preciso registrar a natureza e a quantidade dos bens. Desde o quarto milênio antes de Cristo os mercadores do Oriente Médio registravam suas transações comerciais em tabuletas de argila, usando símbolos compreendidos por todos – por exemplo, um crescente horizontal podia representar o gado com chifres. Com o passar do tempo, esses símbolos se desenvolveram em uma escrita pictográfica capaz de registrar não só objetos, mas também ações: o símbolo para comer mostrava uma cabeça justaposta a um traço que podia significar o alimento.
     Esses avanços exerceram um profundo efeito na estrutura social das comunidades agrícolas. As antigas relações de lealdade à família ou ao clã iam se ampliando, à medida que as pessoas se agrupavam em trono de projetos comunitários, tais como a irrigação ou a defesa das terras. Os artesãos especializados uniam-se para atender às necessidades da vizinhança, e assim as aldeias agrícolas transformavam-se em pequenos centros, nos quais um agricultor podia trocar por um arado de bronze, uma jarra de barro ou uma cama de madeira, seus excedentes de cereais ou de gado. A estratificação social foi se delineando à medida que agricultores bem-sucedidos foram comprando terras de seus confrades menos afortunados e estes por sua vez talvez precisassem ganhar a vida vendendo seu trabalho. A existência de uma classe de mercadores passou a requerer uma legislação – que foi codificada pelos emergentes escribas – acerca de uma legião de assuntos: transações comerciais, taxas de embarque, preços, salários e taxas de câmbio para metais preciosos como o ouro e a prata. Com o crescimento do número de leis, surgiu um governo central e serviços públicos para administrar as múltiplas atividades das cidades.
     Quando todos esses fatores interdependentes se reuniram numa única sociedade, criou-se uma cidade. Por volta de 3500 a.C. coube aos sumérios, que viviam no sul da Mesopotâmia, conduzirem o mundo para a civilização.

     Um grande beneficiário do grande degelo foi o Crescente Fértil, uma área verdejante que se estende desde o golfo Pérsico, seguindo os rios Tigre e Eufrates, até as montanhas da Anatólia e desce pela costa oriental do Mediterrâneo. Nessas planícies produtivas cresciam plantações de trigo e cevada e nas encostas de suas montanhas havia florestas cheias de vida. Essa fertilidade natural não podia passar despercebida aos caçadores e coletores da região, que aos poucos começaram a abandonar seu estilo de vida nômade e se assentar em comunidades agrícolas.
     Entre os povos que fizeram isso estavam os sumérios, cujas possíveis origens remontam ao nordeste do Crescente Fértil, mas que, por volta do quarto milênio antes de Cristo, haviam chegado às férteis terras em torno do curso inferior do Tigre e do Eufrates, logo acima do ponto em que esses dois rios convergem, antes de desembocarem no golfo Pérsico.
     Não parecia ser um local indicado para o nascimento da civilização: não havia pedra ou madeira para as construções, nem metais ou pedras preciosas para a exportação. Apenas hectares e mais hectares de barro. Porém isso bastava. Séculos de cheias do Tigre e do Eufrates haviam depositado uma rica camada de sedimentos aluviais e era relativamente simples desviar a água dos rios e construir canais de irrigação, que transformaram vastas regiões áridas numa mina de ouro agrícola. A produtividade da terra, que já parecia infinita, aumentou ainda mais com duas conquistas dos sumérios: um arado mais resistente, com lâminas de bronze, e a roda, inventada por volta de 3000 a.C. As águas que alimentavam a terra também ofereciam uma rota para o comércio;  os cereais excedentes eram exportados, em troca dos artigos que faltavam na região.
     As colheitas iam e vinham, os estoques de alimentos cresciam e a população agrícola aumentava. As aldeias se tornavam cidadezinhas e estas se transformavam em cidades. Em meados do terceiro milênio, os sumérios já haviam estabelecido sua hegemonia política e cultural em grande parte da Mesopotâmia. Em uma dezena de comunidades, incrementaram a irrigação, o comércio, a formulação de códigos legais e o estabelecimento de governos centrais. Dessas comunidades nasceram as cidades-estado – as primeiras foram Ur, Eridu, Uruk, Nipur e Larsa -, cuja jurisdição abrangia tanto a cidade quanto as áreas rurais ao redor.
     De todos os laços culturais que uniam essas cidades-estado, seria o da religião que deixaria as marcas mais profundas na paisagem urbana. Cada cidade adotara um deus ou, segundo a mitologia suméria, fora escolhida por um deus para sua morada terrena. Acreditava-se que a cidade era propriedade pessoal daquela divindade e de sua família e, em conseqüência, o templo, elevado sobre uma plataforma de barro, era o ponto focal da vida cívica. Quando um templo caía, construía-se um novo no mesmo local sagrado; aos poucos, à medida que sucessivos edifícios foram sendo erguidos sobre plataformas de entulho cada vez mais altas, o templo foi assumindo a forma de uma estrutura em degraus – conhecida como “zigurate” -, acima do labirinto das moradias.
     O deus da cidade comunicava-se com os cidadãos através de um representante humano conhecido como en, enquanto as decisões legais, ao menos nas cidades primitivas, eram tomadas de maneira democrática, por um sistema bicameral formado por uma assembléia de todos os cidadãos livres e uma câmara superior de anciãos. Contudo, em situações de emergência os cidadãos nomeavam um lugal, ou rei. Em certas ocasiões os cargos de lugal e en se combinavam, e o rei era também o representante do deus na Terra. Com o tempo, o cargo de lugal tornou-se permanente e, por fim, hereditário, o que originou o poder dinástico. Ao mesmo tempo, as famílias mais ricas compravam terrenos e contratavam camponeses sem terra para cultivá-los, criando o núcleo da nobreza.
     A silhueta característica do zigurate devia ser familiar para quem viajava entre as cidades da Suméria. Também conhecidas – e entristecedoras – deviam ser as muralhas, pois, apesar das fortes afinidades culturais, as cidades-estado sumérias permaneciam isoladas e independentes. Muitas vezes próximas entre si, com as bordas de seus campos se tocando, viviam em constante disputa acerca dos limites e direitos de irrigação. Com freqüência esse antagonismo explodia em conflitos armados. Mesmo quando não estavam lutando uns contra os outros, os sumérios estavam sempre em guarda, contra os ataques das tribos que vinham , do deserto a oeste ou das cordilheiras a leste. Foi apenas em 2334 a.C., cerca de mil anos depois do surgimento das primeiras cidades, que um rei chamado Sargão assumiu o controle, inicialmente da Suméria e depois de toda a Mesopotâmia, impondo um sistema de governo que, centralizado em uma cidade, dominava todo o país.
     Os herdeiros da unificação de Sargão foram os reis de Ur, cidade que em 2112 a.C. atingiu o clímax da prosperidade e governou toda a Mesopotâmia, desde as montanhas da Anatólia até o golfo Pérsico. Durante o século seguinte, os governantes desse império empreenderam um eficiente programa de construções públicas, supervisionadas por arquitetos especializados. O zigurate de Ur foi reconstruído, com uma estrutura de três andares e belas proporções. Cada terraço, revestido de tijolos cozidos e decorados com mosaicos, provavelmente era arborizado. No topo, a 20 metros de altura, havia o altar da divindade protetora de Ur, Nana, deus da Lua, ao qual se chegava por uma série de escadarias. O recinto do zigurate era delimitado por muralhas e um complexo religioso, com pátios e salas de culto. Do lado de fora desse conjunto ficava o Palácio Real, o armazém do templo e a residência dos altos sacerdotes. Esse conceito arquitetônico repetiu-se por toda a Mesopotâmia nos próximos 1500 anos.
     Em torno do templo e do conjunto real de Ur ficava a cidade propriamente dita – um labirinto de 60 hectares de casas de dois andares, feitas de tijolos de barro, dispostas em ruazinhas e vielas serpenteantes. Não havia planejamento; as casas iam brotando aleatoriamente, conforme os terrenos iam sendo adquiridos. As ruas sem calçamento transformavam-se em atoleiros nas épocas de chuva. É provável que os veículos com rodas fossem deixados nos portões das cidades, enquanto dentro das muralhas, nas ruas estreitas, trefegavam apenas pedestres e animais de carga. Para facilitar o trânsito, os cantos das casas eram arredondados e nas ruas havia blocos que serviam de apoio aos cavaleiros, para montar.
     Havia preocupação com direitos públicos: “Se uma parede estiver ameaçando cair e as autoridades já tiverem avisado seu proprietário”, rezava uma lei, “e se ele não reforçar a parede, a qual vier então a cair e causar a morte de um homem livre, trata-se de crime capital”. Mas dava-se pouca atenção à higiene pública, embora os templos dispusessem de um impressionante sistema de escoamento de esgotos por meio de canos de argila cozida, correndo a cerca de 12 metros abaixo da superfície. Não se negligenciavam as defesas: a cidade era protegida por um enorme baluarte rodeado por uma sólida muralha de tijolos cozidos. Em períodos de paz, os cidadãos sentiam-se em segurança para residir nos subúrbios, que se estendiam por cerca de 1,5 quilômetro além das muralhas. Mais adiante ficavam os campos irrigados, de cujo produto dependia a cidade de Ur.
     Entre os 20 mil cidadãos de Ur incluíam-se sacerdotes, funcionários do templo, escribas, administradores, professores e todo tipo de artesãos, desde rebitadores até carpinteiros. Mas talvez os membros mais apreciados da comunidade fossem os mercadores. Dentro dos muros da cidade havia dois portos artificiais ligados ao rio Eufrates por meio de canais, de onde a marinha mercante levantava velas em direção ao golfo Pérsico e à principal parceira comercial da cidade, a pequena ilha de Dilmur, a atual Bahrain. Ao retornar, traziam artigos de luxo para satisfazer às mais sofisticadas exigências – jarras de ouro e prata com finas decorações, jóias, intricados adornos para os cabelos, cosméticos e caixinhas para toalete.
     Os sinetes de pedra com que os mercadores marcavam as importações e exportações, e os registros dos carregamentos inscritos em tabuletas de argila revelam uma grande rede comercial, que se estendia desde o vale do Indus e o Afeganistão, a leste, até o Egito e o Líbano, a oeste. Por um desses registros, do segundo milênio antes de Cristo, sabe-se que um navio que chegou carregado de ouro, cobre, pérolas, marfim, madeiras e pedras preciosas. Com seu zelo burocrático, os escribas registravam quase todos os aspectos do comércio e da administração. Os velhos símbolos pictográficos evoluíram para uma escrita retilínea, mais fácil de gravar na argila; por volta de 2500 a.C. já se representava a linguagem falada, permitindo expressar idéias. Com esse novo instrumento de comunicação, eles registravam o número de trabalhadores nos campos do templo, a quantidade de trabalho necessária para cortar juncos, tosquiar carneiros ou tecer. Os escribas elencavam as rações de alimento e de cerveja que serviam para pagar os salários; os presentes de animais a autoridades em troca de “serviços prestados”; os sacrifícios aos deuses e os presentes ao rei, oferecidos por embaixadores e vassalos estrangeiros.
     Para administrar os amplos domínios do rei, trabalhavam no templo de Ur o tesoureiro, ministros da guerra, da agricultura, da justiça e da habitação, o administrador da casa real, o mestre do harém real, e os administradores do trabalho com gado, laticínios, pesca e transporte em burro. A Mesopotâmia estava dividida em cerca de quarenta ou cinqüenta cidades-estado, cada uma governada por um ensi, que em geral prestava contas diretamente ao rei e que, para evitar o fortalecimento local, era freqüentemente transferido de distrito. Os comandantes das guarnições distritais também prestavam contas diretamente ao rei; se surgisse uma disputa entre um comandante distrital e um ensi, ela era resolvida em um tribunal.  Um eficiente sistema de mensageiros garantia informações constantes ao rei sobre os acontecimentos nos diversos distritos.
     O domínio de Ur sobre a Mesopotâmia duraria apenas um século. Nos séculos seguintes, porém, sobreviveu o sistema de sólida administração central e coesão social estabelecido pelos sumérios de Ur. Vezes sem conta os conquistadores ou invasores descobriram que não havia sistema melhor e assim adaptaram-no a seus propósitos.

     Apenas cerca de três séculos separam o início da civilização egípcia de sua vizinha mesopotâmica. Ambas surgiram da mesma conjunção de causas naturais e sociais; o Egito, porém, profundamente conservador e voltado para si mesmo, desenvolveu-se de maneira totalmente diversa.
     Tal como seu equivalente mesopotâmico, o rico solo de aluvião deixado pelas cheias anuais do Nilo constituía um terreno fértil. Por volta de 3500 a.C., os excedentes agrícolas da região já alimentavam uma civilização dispersa, que desenvolvera ofícios especializados, um panteão de deuses e a arte de escrever com hieróglifos. Porém, ao contrário da Mesopotâmia, o Egito era um país fechado. Limitado de ambos os lados pelo deserto, o vale do Nilo estava a salvo de invasões. E não demorou muito para que um rei conquistasse a hegemonia sobre toda a área, estabelecendo a capital de um reino unido em Mênfis, bem ao sul do delta do Nilo.
     Esse antigo reino egípcio, que antecipou em oito séculos a unificação da Mesopotâmia, baseava-se numa sociedade altamente estratificada: uma hierarquia onde figuravam, em ordem descendente, os deuses, o rei, os mortos e a humanidade. O rei, ou faraó, considerado a personificação terrena de um deus, situava-se num pináculo de poder, comunicando-se com seus súditos através dos sacerdotes – com freqüência membros de sua própria família – que eram também os administradores do estado. Essa poderosa oligarquia, que chegou a 5 mil pessoas no ano 3000 a.C., governava uma população estimada em 870 mil habitantes, a maioria dos quais dedicados à agricultura primitiva.
     A manutenção do poder dependia da propagação do culto do rei-deus e do temor que ele inspirava. Os primeiros faraós viajavam sem cessar por seus domínios, impressionando os súditos com seu estilo grandioso. Em Mênfis, por exemplo, o palácio real e centro administrativo consistia de um enorme pavilhão retangular erguido sobre pilares de madeira entalhada com ouro, e coberto de palha, ornamentado com tapetes multicores. No entanto, todo esse conjunto podia ser desmontado com facilidade, para acompanhar o faraó em suas viagens.
     A reverência dedicada ao faraó exercia um impacto direto na vida da cidade. Embora de início as cidades fossem rodeadas por uma muralha – pois os nômades egípcios eram tão ameaçadores quanto os nômades da Mesopotâmia – a presença unificadora de um governante divino desviava a atenção dos cidadãos dos perigos externos para as glórias internas. As poucas muralhas serviam mais para definir limites do que para a defesa, e as cidades cresceram com a instalação de moradias em um espaço aberto, em torno do templo central dedicado ao faraó ou a uma das divindades suas irmãs.
     Assim como na Mesopotâmia, os templos eram mais do que simples locais de culto. Eram centros administrativos, a partir dos quais a burocracia do faraó governava as áreas rurais ao redor; atuavam também como canais econômicos, controlando, coletando e computando a riqueza produzida pelos cidadãos. Dentro daquelas imensas áreas muradas ficavam escritórios, arquivos, armazéns e moradias para as autoridades e sacerdotes. O poder destes era enorme: no século XII a.C., o templo de Ramsés III, em Tebas, sua capital no sul do país, controlava um quinto das terras aráveis da nação, possuía 400 mil cabeças de gado e empregava mais de 86 mil pessoas. Sua riqueza em ouro, prata e metais preciosos era incalculável.
     Mas se os templos absorviam a riqueza material do país, também ofereciam aos cidadãos uma boa recompensa espiritual pelo investimento, pois a crença de que a conservação do corpo significava a sobrevivência na vida futura era predominante no pensamento religioso egípcio. Até mesmo os camponeses mais pobres mumificavam seus mortos com areia do deserto. E se a sobrevivência depois da morte era importante para o comum dos mortais, era mais importante ainda para seu rei-deus. E assim a riqueza do país inteiro, seja em força de trabalho, propriedades, produtos agrícolas, minerais e comércio, era direcionada pelos templos para uma só finalidade: a construção de um túmulo à altura do faraó. Na verdade, o Egito transformou-se numa nação de agentes funerários.
     Ao longo do Nilo, enormes pirâmides e imponentes câmaras escavadas nas rochas foram criadas para abrigar os restos mortais embalsamados de sucessivos faraós. Sua construção exigia tudo que os templos podiam oferecer. Para construir a Grande Pirâmide de Quéops, em Gizé, iniciada em 2575 a.C., estima-se que tenham trabalhado mais de 100 mil homens, durante vinte anos – um investimento gigantesco de recursos humanos e materiais. Mas o faraó não se contentava em possuir apenas um túmulo. Ele queria manter, no além, o mesmo estilo de vida terrena: rodeado por sua família, seus nobres da corte e seus criados. À medida que os túmulos da aristocracia egípcia iam se agrupando em torno dos de seus senhores, o país se encheu de cidades gêmeas: uma para abrigar os mortos e outra para os trabalhadores dessas construções.
     Esses empreendimentos centralizados que dominaram o país deixaram sua marca na construção urbana. No centro de cada cidade dos vivos ficava um complexo que continha templos, palácios e moradias para o faraó, sua família e autoridades como o chefe de polícia, o prefeito e os sacerdotes. Em volta espalhavam-se os subúrbios residenciais dos cidadãos; havia uma mistura de ricos e pobres, mas os mais afastados do centro eram reservados aos trabalhadores.
     Em Amarna, que o faraó Aquenaton mandou construir no século XIV a.C. especialmente para ser a capital, a meio caminho entre Mênfis e Tebas, as vilas dos ricos seguiam mais ou menos esse mesmo esquema: salões de recepção com pilares, salas de banho com lavatórios, luxuosas dependências para as famílias e jardins bem cuidados, com terraços, piscinas e nichos decorativos para estátuas. Na periferia desse complexo ficavam as acomodações para os criados, a cozinha e a padaria.
     O abismo entre ricos e pobres era grande. Porém como engrenagem essencial na máquina que perpetuava o culto do faraó, os trabalhadores mais humildes não eram negligenciados. Por exemplo, o assentamento de Deir El-Medina, fundado em 1500 a.C. num vale isolado junto a Tebas, abrigava artesãos especializados na construção de túmulos reais. Sendo empregados da realeza, esses operários desfrutavam de privilégios: a água era trazida diariamente, por tropas de burros; seus próprios pescadores forneciam o peixe fresco do Nilo e empregados lavavam suas roupas. Em uma área de pouco mais de meio hectare, uma muralha encerrava cerca de setenta moradias, dispostas em terraços planos e separadas por pequenas vielas. As casas eram longas, estreitas e apinhadas, mas estavam longe de serem cortiços. Em cada uma havia saguão, sala de recepção, oficina e dormitório. Nos fundos ficava a cozinha, em geral com uma escadaria que levava a um celeiro subterrâneo.
     Nem todos os artesãos desfrutavam de tantos benefícios. Muitos habitantes das cidades egípcias deviam ser trabalhadores temporários. A massa de mão-de-obra exigida para a construção das tumbas só podia ficar livre do trabalho no campo entre julho e outubro, quando as cheias do Nilo tornavam impraticável o trabalho agrícola. E o material do qual eram feitas as cidades era tão efêmero quanto seus ocupantes: embora o Egito tivesse enormes depósitos naturais de pedra, os blocos tirados das pedreiras eram reservados para os templos e as tumbas. As moradias dos ricos podiam dar-se ao luxo de ter um umbral de pedra ou pilares de madeira importada, mas de modo geral eram feitas de tijolos de barro, assim como as casas dos menos abastados. Com o tempo, todas elas desmoronavam e se transformavam em pó, deixando como único monumento à glória do Egito os túmulos dos faraós, construídos numa escala tão grandiosa que resistia à destruição.

     Enquanto os trabalhadores egípcios se esfalfavam erigindo túmulos para seus reis, outro povo bem a oriente empenhava-se na construção de seu próprio legado urbano. Assim como as outras civilizações do mundo antigo, a do vale do Indus prosperou devido à cheia anual de seu rio, cujos ricos depósitos aluvionais propiciaram abundantes safras. Acredita-se que em meados do terceiro milênio a.C. uma crescente uniformidade cultural acarretou o advento de um governo central no vale. Sua capital era, provavelmente, Mohenjo-Daro, perto da foz do Indus, ou então Harapa, 550 quilômetros ao norte, à beira de um tributário do Indus, o rio Ravi.
     Era uma sociedade próspera, em que floresciam a agricultura e o comércio. Em grandes centros, intercambiava-se lápis-lazúli, turquesa e metais vindos do Afeganistão, da Pérsia e da Ásia Central; transportados para o sul em carros de boi e tropas de burros, viajavam depois em navios, para o golfo Pérsico. Mas as cidades do vale do Indus também elaboravam seus próprios produtos de exportação, em especial pedras semi-preciosas e madeiras valiosas, como a teca, o cedro e o jacarandá. Era tão grande o fluxo de mercadorias que muitos comerciantes estabeleciam residência permanente como agentes comerciais nas cidades da Mesopotâmia.
     Enquanto no Egito e na Mesopotâmia as sociedades se mantinham unidas pela necessidade de organizar e manter os sistemas de irrigação, o rio unia os cidadãos do vale do Indus de outra maneira. As cheias anuais que davam vida ao vale também lhe traziam a destruição: aldeias inteiras tinham de ser evacuadas diante da enorme força do degelo das neves do Himalaia. Por vezes, o rio mudava seu curso, trazendo vida a novas áreas e tornando obsoletos velhos assentamentos. Junto à foz do rio a situação se complicava ainda mais, devido aos terremotos. Em pelo menos três ocasiões, uma enorme camada da crosta terrestre soergueu-se, bloqueando o curso do rio. O lago assim criado ampliou-se, até quase inundar Mohenjo-Daro. Sólidas barragens foram construídas, mas quando chegavam as cheias, a única estratégia era recuar. Enquanto os mesopotâmios e os egípcios trabalhavam para erguer muralhas, túmulos e templos, o povo do Indus dedicava-se a uma tarefa muito mais básica: a de, literalmente, elevar sua civilização acima das enchentes ameaçadoras, construindo enormes plataformas de terra batida e entulho.
     Nem sempre eram bem sucedidos: desastres como o de Mohenjo-Daro eram demais até para os engenheiros do Indus. Depois de cada derrota, os cidadãos voltavam a reconstruir suas cidades, tijolo por tijolo, exatamente como eram antes. E o povo do Indus se destacava por ser metódico. Os pesos e medidas foram padronizados, os tijolos de barro cozido tinham tamanho uniforme e uma centena de cidades construídas ao longo do vale seguiam um plano padronizado.
     Em Harapa, por exemplo, ergueram uma cidadela sobre um monte, 12 metros acima da planície, revestida com uma espessa camada de tijolos para controlar a erosão. O povo de Harapa não se prevenia apenas em relação às forças da natureza: uma alta muralha, com torres e ameias elevava-se sobre as defesas contra as enchentes. Dentro da cidadela havia escritórios administrativos, templos e as moradias das autoridades. Ao norte, numa elevação um pouco mais baixa, ficava o bairro residencial, ocupando cerca de 260 hectares, com ruas paralelas de cerca de 9 metros de largura. Entre essas artérias principais ficavam grandes quarteirões de casas de tijolo cozido, separadas por vielas nas quais desembocavam as entradas das casas.
     Ameaçado pela água, o povo de Harapa aprendeu a conviver da maneira mais eficiente com essa ameaça. Uma característica das cidades do vale do Indus era a sofisticação do sistema de escoamento de água. Muitas casas tinham chuveiros e lavatórios, com encanamentos pelos quais a água servida corria para dutos ou esgotos centrais. Os esgotos, mantidos por uma autoridade municipal, eram forrados de tijolos e tinham aberturas a intervalos regulares para inspeção e manutenção.
    
     O povo do vale do Indus não foi o único a lutar contra o poder de um rio. Segundo a mitologia chinesa, sua civilização originou-se da atuação de um líder chamado Shen Nong, que ensinou a seu povo a arte da agricultura e do comércio, assim como o controle das cheias. Esses conhecimentos eram bem necessários, pois desde o quarto milênio antes de Cristo os agricultores chineses agrupavam-se em aldeias ao longo do rio Amarelo, no norte do país. O nome do rio era bem apropriado; vindo das montanhas do norte, arrastava grande volume da terra amarelada que dá sua cor tanto ao rio como ao mar Amarelo, onde ele desemboca. Isso causava erosão no leito superior e, nos trechos inferiores, os sedimentos acumulados faziam o rio elevar-se acima das planícies, transbordando e causando calamitosas enchentes nos campos e povoados agrícolas.
     Ao longo dos séculos, a necessidade de canalizar o rio para a irrigação e também de construir diques para evitar os dilúvios uniu o povo chinês em uma civilização que, em meados do terceiro milênio antes de Cristo, se concentrava em torno de cidades bem fortificadas. Sua sociedade tinha um alto grau de estratificação; a camada mais alta era governada por reis hereditários, sacerdotes e nobres. Os sacerdotes davam um apoio vital para os governantes, pois acreditava-se que tinham acesso ao universo espiritual, do qual traziam sabedoria e premonições. Quando outorgado aos reis, esse conhecimento reforçava sua autoridade para guiar e comandar o povo. No nível inferior ficava a massa do campesinato, que produzia os excedentes agrícolas, servia no exército e fornecia mão-de-obra gratuita em enorme escala para obras públicas como a irrigação e o controle das cheias. Entre as duas camadas havia uma classe cada vez maior de trabalhadores especializados, peritos em ofícios como a escultura em osso e em jade, a fundição de bronze e esmerados trabalhos de cerâmica.
     No final do terceiro milênio, as regiões do norte da China uniram-se sob um único líder, Yü, o Grande, cujas origens, segundo a lenda, estavam ligadas ao rio. Em 2297 a.C., depois de uma enchente desastrosa, Yü foi encarregado de domar as águas; treze anos, e o trabalho intensivo de milhares de homens, foram necessários para cumprir a tarefa. O resultado foi um rio tranqüilo – que, segundo se acredita, assim permaneceu por 1600 anos – e o título de imperador para Yü.
     O quanto de verdade existe na história de Yü nunca saberemos; mas, segundo a lenda, foi enquanto o rio Amarelo ainda estava sob seu controle que começou a surgir na China a primeira civilização de que se tem notícia. No final do segundo milênio antes de Cristo, os escribas chineses já utilizavam ideogramas para registrar fatos importantes: eventos da corte, proclamações, tratados entre facções da nobreza, a linhagem dos clãs e acontecimentos históricos. E desde cerca de 1500 a.C. eles trabalhavam para senhores bem definidos: a dinastia San, que durante cinco séculos dominou a China e trouxe um governo eficiente – além das complexas competições com carros de guerra e um calendário preciso. O reino central abrangia a maioria dos grupos tribais que viviam ao norte do rio Yan-tse.
     Pouco restou das realizações urbanas da dinastia San. Ao registrar as ações dos governantes, os escribas em geral utilizavam materiais perecíveis e as construções eram sobretudo de madeira e barro. No entanto, estudando as fundações dos povoados, pode-se assegurar que os San mudaram a capital várias vezes, mas seguiram sempre um plano semelhante de construção: uma alta muralha de defesa em torno da cidade, quarteirões retangulares  de tamanho uniforme e um imponente palácio, que também servia de centro religioso. Enquanto isso, o grosso da população vivia fora das muralhas, em casas simples, com o chão rebaixado em até três metros para oferecer isolamento. Em tempos de crise, porém, a população buscava segurança nas cidades.
     As construções da dinastia San deixaram um testemunho concreto de seu poder. Por exemplo, em uma capital, Tsang-Tsow, havia uma muralha de 10 metros de altura e 7 quilômetros de extensão, circundando uma área retangular de 320 hectares. Sua edificação deve ter sido uma tarefa monumental: ela não era de pedra nem de tijolos de barro, mas sim de terra batida, disposta em camadas de 10 centímetros entre pranchas de madeira, e compactada pelos operários, por pisoteamento. Já se avaliou que para construir as muralhas de Tsang-Tsow – com cerca de 20 metros de largura na base – foi necessário o trabalho de 10 mil homens, durante 20 anos.
     Não há dúvida sobre a abundância de riqueza e mão-de-obra. Em torno da capital, por uma distância de até 3 quilômetros, espalhava-se uma massa de aldeias que abrigavam a população de Tsang-Tsow. A manufatura operava em grande escala: uma das maiores fábricas de cerâmica da cidade tinha catorze fornos, e uma única fundição de bronze ocupava uma área de mais de mil metros quadrados. Mesmo quando as guerras interrompiam a produção, os cidadãos de Tsang-Tsow não demoravam a aproveitá-las em seu benefício: as oficinas que trabalhavam com ossos produziam grandes quantidades de pontas de flecha e taças feitas de crânios humanos.
     Em comparação com o amontoamento desordenado de casebres e oficinas do lado de fora das muralhas, o interior de Tsang-Tsow era um modelo de planejamento organizado. Suas moradias, provavelmente residências dos ricos, seguiam um padrão retangular. Ao norte ficava o palácio – uma construção alongada, com estrutura de madeira, elevada sobre uma plataforma de terra batida e com teto de palha para proteção contra o calor do verão.
     Durante os séculos seguintes, o modelo das capitais San seria a base do crescimento urbano da China. De tempos em tempos a dinastia no poder era derrubada – os próprios reis San foram dominados por um povo que era seu súdito, os Tsou, no final do segundo milênio antes de Cristo. Mas nenhum invasor estrangeiro perturbou a evolução da civilização chinesa. Protegidas contra as influências externas, suas cidades cresceram em tamanho e número, tornando-se centros administrativos e cerimoniais de um império que, em meados do primeiro milênio de nossa era, destacava-se como o mais populoso e rico do mundo.

     Apesar de todas essas realizações, a vida dos primeiros cidadãos do mundo ainda tinha vínculos imutáveis com suas origens agrícolas. Em muitos casos, sua queda pode ser atribuída aos próprios rios que lhes deram vida.
     A civilização do vale do Indus desapareceu de repente, por volta de 2000 a.C. Uma explicação possível é que o rio Indus, cuja domesticação requereu tanto empenho dos povos da região, acabou levando a melhor. Por exemplo, é provável que um desvio no curso do Indus tenha transformado os campos férteis de Mohenjo-Daro em áreas desoladas, acarretando o desaparecimento da cidade. Em outras regiões, a devastação das florestas naturais para fornecer lenha suficiente para queimar milhões de tijolos pode ter causado a erosão, deixando o rio engolir de volta o valioso solo fértil que antes depositara nas margens. Sejam quais forem os motivos, essas antigas e magníficas civilizações se desintegraram; restaram povoados agrícolas isolados e muitos habitantes rumaram para o leste, atravessando a bacia do Ganges, onde uma civilização urbana mais duradora estava prestes a começar. Foi apenas em meados do século XIX da era cristã que os majestosos edifícios de tijolo de Harapa voltaram a ter utilidade: como lastro para a ferrovia britânica Lahore-Multan, na Índia.
     A queda da civilização do Indus repercutiu até na Mesopotâmia. Destituída de um de seus principais parceiros comerciais, a cidade de Ur foi decaindo e o centro da civilização passou para a Babilônia, ao norte. Porém, a recessão comercial foi apenas um dos fatores do desaparecimento de Ur. Devido às irregularidades climáticas, o lençol freático afundou e os rios, que antes ajudavam os agricultores de Ur, passaram a agir contra eles. A extensa rede de canais de irrigação dos sumérios, embora criasse novas terras para o cultivo, ia também envenenando os campos. As águas, antes profundas, agora se espalhavam por uma infinidade de canais rasos e ao evaporarem, sob o calor do sol, depositavam resíduos salinos, inutilizando o solo. Ur foi morrendo e, por volta do século IV a.C., havia sido totalmente abandonada.
     Também o Egito ficou à mercê de seu rio. Durante o segundo milênio antes de Cristo, uma sucessão de cheias fracas provocou um período de escassez que devastou tanto as cidades como o campo. As safras quebraram e os agricultores passaram a dedicar-se ao pastoreio, abandonando a existência sedentária. No século XII a.C. o preço dos cereais havia aumentado muitíssimo, e até os artesãos da casa real começaram a se rebelar. Em 1153 a.C., os construtores de tumbas de Deir El-Medina pararam de trabalhar e pediram a um escriba para escrever ao faraó, pedindo: “Viemos aqui tangidos pela fome e pela sede. Não temos roupas, não temos gordura, nem peixes, nem verduras. Escreva isto ao Rei, nosso bom senhor, para que nos sejam dados os meios para viver”. E não era só nos alimentos que os cidadãos egípcios sentiam a dureza da situação. O comércio também sofria, e outro motivo de irritação para os artesãos do templo era a escassez do óleo para os banhos.  Enquanto o povo, desesperado, lutava para sobreviver, os registros do reino começaram a relatar as tentativas de roubos de túmulos e não a renda dos templos. Isso era o sintoma de um profundo mal-estar e a deterioração era tão evidente para os de fora como para os de dentro. Nos séculos seguintes, sucessivas ondas de invasores varreriam o Egito, consumindo para seus próprios fins tudo o que restara das cidades do reino.
     Entretanto, em 323 a.C., um invasor diferente trouxe uma nova esperança para as cidades do Egito e do mundo todo. Alexandre, o Grande, chegou com seus exércitos gregos, primeiramente no Egito e depois por toda a Mesopotâmia, indo até as ruínas do vale do Indus, disseminando as sementes de um novo tipo de civilização. Nos anos seguintes, a marca dos poderosos estados clássicos do Mediterrâneo daria novo ímpeto à evolução das cidades.



PIONEIROS URBANOS é o primeiro capítulo do livro A EVOLUÇÃO DAS CIDADES.
Os demais capítulos são: AS CONQUISTAS CLÁSSICAS; RESPLANDECE O ORIENTE; O OCIDENTE RENASCE; O GRANDE PROJETO e A ERA DA METRÓPOLE.
A EVOLUÇÃO DAS CIDADES é parte integrante da coleção HISTÓRIA EM REVISTA.
Original Edition:  Copyright 1991 – TIME-LIFE Books B.V.
Authorized Portuguese Edition: Copyright 1993 – ABRIL LIVROS Ltda.
Tradução e adaptação para a língua portuguesa:
Pedro Paulo Poppovic Consultores Editoriais S/C Ltda.
Tradução: ISA MARA LANDO
  

domingo, 23 de outubro de 2011

A GUERRA FRIA



Separados apenas por um intérprete preocupado, o vice-presidente americano Richard Nixon e o líder soviético Nikita Khruschev travam uma discussão cara a cara sobre os méritos dos sistemas políticos de seus respectivos países. A improvisada "Conferência da Cozinha" - assim chamada por ter ocorrido junto à maquete de uma cozinha modelo numa exposição em Moscou em 1959 - reproduziu em miniatura as relações da Guerra Fria. "Dispomos de meios que podem ter consequências muito ruins", advertiu o anticapitalista Khruschev. "Nós também", retrucou o anticomunista Nixon. Embora o encontro terminasse em termos amistosos, três anos depois Khruschev levou a URSS ao pavoroso confronto da crise de Cuba.


     No sábado, 3 de setembro de 1949, enquanto a maior parte dos Estados Unidos se preparava para gozar os feriados do Dia do Trabalho, um bombardeiro B-29 adaptado fazia um vôo rotineiro de reconhecimento meteorológico entre o Japão e o Alaska. Mas a meteorologia não era o único objetivo: por mais de um ano, a força aérea dos EUA vinha tirando amostras da atmosfera em busca de traços de radioatividade, para ajudar os cientistas americanos a avaliar o progresso da pesquisa de armas atômicas da União Soviética. Era uma precaução desnecessária, na opinião de muitos, convencidos de que faltava aos soviéticos a tecnologia para fazer uma bomba e de que o monopólio nuclear da América duraria anos. No entanto, 5500 metros acima da península de Kamchatka, vestígios de um estranho pó fizeram os contadores geiger dispararem. As amostras recolhidas pelo bombardeiro iriam estragar o fim de semana do governo americano, de sua Comissão de Energia Atômica (CEA) e de suas equipes militares. É que os isótopos recolhidos era a prova definitiva de que a União Soviética havia explodido uma bomba atômica de tipo avançado, melhor do que o próprio trabalho inicial americano. A liderança dos Estados Unidos tinha durado exatamente 49 meses. Agora, também seu maior inimigo dispunha da terrível arma que destruíra Hiroxima e Nagasáqui em 1945.
     Na última vez em que a bomba fora usada, a União Soviética e os Estados Unidos eram aliados. Mas num prazo impressionantemente curto após sua vitória conjunta na Segunda Guerra Mundial, a cooperação se transformara em desconfiança, e a desconfiança havia se aprofundado para uma hostilidade sem precedentes em períodos de paz, que o colunista americano Walter Lippmann intitulara apropriada e indelevelmente de Guerra Fria. As razões da mudança abrupta, como vistas pelos EUA e seus aliados, eram tão simples quanto numerosas. O ditador soviético Joseph Stalin – o cordial e bigodudo “Tio Joe” da propaganda aliada – revelara-se obstinado e implacável no pós-guerra, enquanto seu estado parecia ainda mais totalitário e pelo menos tão ávido de territórios quanto jamais o fora a Alemanha de Hitler. Enquanto as forças britânicas e americanas eram desmobilizadas o mais rapidamente possível, um imenso Exército Vermelho ainda se espalhava pelo Leste Europeu: Polônia, Checoslováquia, Bulgária, Romênia, Hungria e as zonas russas de uma Áustria e uma Alemanha divididas. A Iugoslávia e a Albânia, embora livres das tropas soviéticas, eram outros bastiões comunistas.
     Contra os tanques e a artilharia do Exército Vermelho invasor, os EUA exibiam suas armas nucleares e a força aérea necessária para lançá-las. Era um equilíbrio incômodo, mas sobre ele se apoiava a política de “contenção”, com a qual os Estados Unidos esperavam impedir qualquer expansão soviética adicional. Isso fora formalmente explicitado na chamada “Doutrina Truman” de 1947, pela qual a América se comprometera a apoiar os “povos livres que resistem à subjugação por minorias armadas ou por pressões externas”. Era uma incumbência difícil, um compromisso sem prazo marcado no tempo e no espaço, a ser mantido até que viesse, como o expressou o veterano diplomata americano George Kennan, “o gradual abrandamento do poder soviético”. Mas era melhor do que a guerra aberta.
     Truman aceitou a nova posição nuclear da União Soviética com maior serenidade do que muitos de seus consultores. Ele sempre duvidara da utilidade prática dos novos armamentos, embora fosse – ou talvez justamente por ter sido – o único homem a autorizar um ataque nuclear. A destruição promovida no Japão convencera-o de que a bomba atômica não era uma arma nuclear normal, e ele havia irritado os planejadores militares ao mantê-la sob estrito controle presidencial; não permitiria, disse a seu secretário de defesa, “que algum tenente-coronel precipitado decidisse o momento apropriado de lançá-la”. Mas ele também estava convencido – ou assim declarou ao diretor da Comissão de Energia Atômica – de que, sem a bomba, “os russos provavelmente teriam tomado a Europa há muito tempo”.
     Um dos resultados do teste soviético veio alguns dias depois, numa reunião da CEA para discutir o futuro programa de armamentos dos EUA. Durante meses, cientistas, militares e políticos haviam debatido a conveniência de produzir um novo tipo de explosivo nuclear, baseado, não na fissão, mas na combinação de núcleos atômicos – fusão em vez de fissão. Esse dispositivo termonuclear – a bomba de hidrogênio – teria uma capacidade destrutiva talvez mil vezes maior do que as armas atômicas existentes; os generais da força aérea duvidavam até que sua utilização na guerra pudesse algum dia ser justificada. Contudo, a decisão foi tomada após alguns minutos de confusa discussão: a bomba H seria construída.

     Os Estados Unidos e a União Soviética confrontam-se mo extremo do mundo, no estado do Alaska, que fica a apenas 85 quilômetros do território soviético. À medida que pioravam as relações entre os dois países, cada um procurava construir uma rede de alianças. Os EUA quase alcançaram seu objetivo de cercar o rival comunista com países aliados (em amarelo-claro). A URSS encontrou menos nações amigas (em verde-claro), mas garantiu um ponto de apoio no quintal dos EUA, através da camaradagem com Cuba. O mapa mostra a rede de alianças na época da crise de 1962.

     Certamente, as armas nucleares de nada serviram alguns meses depois, quando a guerra civil chinesa foi vencida pelos comunistas de Mao Tse-tung. Nenhuma ação americana imaginável teria impedido a vitória de Mao, mas ainda assim ela foi vista como uma derrota americana.
     Os aliados europeus de Truman não receavam o poderio nuclear dos EUA e tinham poucas dúvidas quanto a seu valor. Tal como a maioria dos soldados e diplomatas americanos, acreditavam que em 1948, quando os russos bloquearam a zona ocidental de Berlim, somente o envio de bombardeiros americanos a bases da Grã-Bretanha e a remessa aérea de suprimentos à cidade sitiada haviam contido a ação militar soviética. Na ocasião, a demonstração fora um blefe: havia apenas um punhado de bombas nucleares no arsenal dos EUA e nenhum dos bombardeiros enviados à Grã-Bretanha era capaz de transportá-las. Mas o desejo da Europa de contar com cobertura nuclear aérea americana levou, em abril de 1949, à criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – um pacto de defesa mútua que ligou formalmente a segurança da Europa ocidental ao poder dos EUA.
     Para Washington, a divisão do mundo entre duas superpotências rivais parecia perigosamente instável. Mas esses temores se revelariam infundados. Embora não viessem a faltar lutas por todo o mundo nos anos seguintes, a paz entre as superpotências se manteria tão firmemente quanto qualquer outra paz anterior. Ao mesmo tempo, uma prosperidade maior do que o mundo jamais conhecera iria se espalhar pelas regiões desenvolvidas, ficando os derrotados da Segunda Guerra Mundial – Alemanha e Japão -, entre seus maiores beneficiários. Fora do círculo encantado das nações ricas, antigas colônias conquistariam independência política mesmo que o sucesso econômico continuasse a lhes escapar. Na última década do milênio, novos problemas confrontariam o mundo: como alimentar uma população global que duplicara em menos de quatro décadas e conter o crescimento de modo a evitar o esgotamento irreparável dos recursos do planeta.
    
     Nada disso poderia sequer ser suspeitado em 1950. Em Moscou as perspectivas pareciam ainda menos promissora do que nos EUA. Aos olhos dos soviéticos, os americanos haviam saído relativamente ilesos da Segunda Guerra Mundial, sem danos a seu território e com uma exuberante economia industrial, enquanto a União Soviética fora dolorosamente enfraquecida. Perdera um décimo de sua população, e sua indústria e agricultura haviam sofrido danos aterradores; cerca de um quarto dos ativos da nação tinha se perdido. Intensamente empenhada num colossal programa de reconstrução apenas para recuperar sua posição de 1941, a União Soviética não estava em condições de enfrentar qualquer grande confronto. E com tão desesperada necessidade de mão-de-obra na indústria ressurgente, não tivera a menor possibilidade de conservar os maciços exércitos de tanques que haviam destruído a Wehrmacht de Hitler no Leste: o temido Exército vermelho, com uma força de onze milhões em 1945, reduzira-se a menos de três milhões de homens em 1948.
     Para a União Soviética, os Estados Unidos ameaçavam a paz mundial; a bomba russa simplesmente restaurava o equilíbrio entre as grandes potências; a política norte-americana de contenção e repressão aparecia como “exclusão” e “intimidação”. Particularmente alarmante foi a criação, em maio de 1949, de um poderoso estado da Alemanha Ocidental, a partir das zonas de ocupação britânica, francesa e americana. Os russos temiam que os EUA estivessem promovendo condições para que ocorresse uma terceira guerra alemã.
     A fragilidade da paz mundial ficou clara no começo da nova década. Num discurso de janeiro de 1950 sobre sua política “contencionista”, o secretário de estado Dean Acheson delineou os interesses vitais dos Estados Unidos, aparentemente excluindo a metade sul não-comunista da península coreana, dividida em 1945 ao longo do paralelo 38, entre as tropas de ocupação americanas e as soviéticas. Em junho um enorme exército da Coréia do Norte mobilizou-se para reunificar o país e, em poucas semanas, quase expulsou os defensores.
     Mas os sul-coreanos não estavam lutando sozinhos. Para os EUA, havia uma ligação inescapável entre o discurso de Acheson e a reação da Coréia do Norte; os americanos estavam certos de que o ataque contara com incentivo chinês e, muito provavelmente, instruções diretas de Moscou. Truman reforçou imediatamente o pequeno destacamento americano na Coréia e aproveitou um boicote soviético às Nações Unidas para obter uma resolução do Conselho de Segurança conclamando à assistência armada à vítima de agressão. Um exército das “Nações Unidas” – incluindo contingentes do Canadá, Grã-Bretanha e França, entre outros aliados dos EUA, mas predominantemente americano e comandado por Douglas MacArthur, vencedor da guerra do Pacífico – partiu para a ofensiva. O esmagador poderio naval permitiu um desembarque marítimo que pegou os coreanos do norte pela retaguarda, e em pouco tempo as forças comunistas recuaram.
     O sucesso americano trouxe um dilema político: poderia o exército avançar além do paralelo 38 e promover a reunificação da península? Como advertiu o cético George Kennan, uma vez embrenhados no continente asiático, se continuarmos avançando “temos uma caminhada de cerca de 10 mil milhas e teremos de parar em algum lugar”. Outros, especialmente MacArthur, recomendavam avançar até a própria China. Truman e muitos de seus conselheiros temiam que todo o conflito coreano não passasse de um estratagema soviético para desviar a atenção americana da Europa; receoso, ele autorizou o avanço através da antiga fronteira.
     Em novembro de 1950, as forças da ONU, desorganizadas pela neve e pelo frio cortante do inverno coreano, aproximaram-se da fronteira chinesa do rio Yalu. Foi demais para Mao: “voluntários” chineses inundaram a fronteira às centenas de milhares. Sobrepujado, o exército de MacArthur recuou para o sul ainda mais depressa do que tinha avançado – uma quase-derrocada que em nada beneficiou a deterioração das relações do general com seu presidente. Uma contra-ofensiva da ONU, em março de 1951, refez penosamente o caminho até o paralelo 38, mas não conseguiu maiores avanços, e a luta se transformou numa pavorosa guerra de desgaste por mais de dois anos, enquanto um armistício era negociado.
     Entrementes, a despesa militar americana quase quadruplicara. A primeira bomba H foi testada em 1952; os armamentos convencionais e nucleares foram fartamente ampliados. As bases ultramarinas se multiplicaram e prodigalizou-se a ajuda militar aos aliados – uma lista crescente de nações que logo incluiria a maioria das potências não-comunistas. Temendo a difusão do comunismo no Sudeste Asiático, os Estados Unidos começaram a apoiar os franceses em sua guerra colonial na Indochina, retribuindo o apoio francês na Europa e na Coréia.
     A economia soviética não competia com o crescimento americano, mas os gastos soviéticos com a defesa aumentaram em dois terços e seu crescimento seria ininterrupto por uma década. As relações soviético-americanas, já frias, tornaram-se glaciais.
     As tensões agravaram-se com a política interna americana. Um virulento anticomunismo, silenciado durante a Segunda Guerra Mundial, vicejava desde o final dos anos 40; o governo Truman tinha lançado um “Programa de Lealdade”, visando afastar americanos esquerdistas das posições influentes, e uma série de processos por traição no fim da década de 1940 havia aumentado a inquietação pública. Em 1950, porém, os Estados Unidos começaram a se entregar ao tipo de expurgo ideológico que até então fora monopólio dos soviéticos. Na figura de um senador republicano chamado Joseph McCarthy, os EUA encontraram seu próprio grande inquisidor, que fez sua vida política com base em denúncias histéricas de uma infinidade de “comunistas fichados” especificados (mas nunca confirmados) nas instituições governamentais americanas. Como presidente do sinistramente denominado Subcomitê Permanente de Investigações, recorreu ao novo veículo, a televisão, para perseguir seus suspeitos. Alguns de fato tinham tido ligações com o partido comunista americano e organizações associadas, em geral na década de 1930, mas quase todos eram inocentes das acusações de traição que compunham a linha mestra da retórica de McCarthy. O medo, porém, gerou medo: vidas e carreiras foram arruinadas às centenas, enquanto McCarthy e os políticos que o apoiavam faziam um lobby que nenhum presidente ousava ignorar.
     Mas a situação estava mudando. Enquanto os negociadores coreanos improvisavam um frágil cessar-fogo ao longo do paralelo 38, os protagonistas principais da Guerra Fria saíam de cena. Nos Estados Unidos, MacCarthy foi demitido em abril de 1951: sua defesa pública do uso da bomba atômica contra a China deliciava MacCarthy, mas enfureceu Truman, que temia o efeito da simples discussão dessa estratégia. O próprio Truman, esgotado pelas crises constantes no país e no exterior, não se candidatou à reeleição em 1952. Em seu lugar, os estados Unidos elegeram Dwight D. Eisenhower, comandante supremo da Segunda Guerra Mundial e o primeiro presidente republicano dos EUA em vinte anos.
     O rompimento mais dramático deu-se em Moscou. Em 5 de março de 1953, Joseph Stalin morreu. Milhares de russos comuns, privados da severa figura paterna cujo retrato decorava tantos lares, soluçaram nas ruas de Moscou. Muitos morreram esmagados ao amontoar-se em torno do esquife do líder morto; mais tarde, ele seria embalsamado e colocado junto de seu suposto mentor, Lênin, no grande mausoléu da Praça Vermelha. Outros, porém, recordando os milhões que haviam sido aprisionados e mortos em seu governo, sentiram mais esperança do que tristeza. Antes que se encerrassem as cerimônias fúnebres, começou a luta pela sucessão. Enquanto isso, em Washington, John Foster Dulles, sucessor de Acheson como secretário de estado, telegrafou às embaixadas americanas no mundo inteiro: era hora de “semear dúvida, confusão e incerteza sobre o novo regime, não apenas entre elites e massas da URSS e seus países satélites, mas entre os partidos comunistas de fora da União Soviética”. A dúvida e a confusão já existiam, sem nenhuma intervenção externa. Em junho de 1953, tumultos de trabalhadores em Berlim Oriental logo se espalharam por toda a Alemanha Oriental e pela Polônia. Enquanto unidades do Exército Vermelho se deslocavam para esmagar os rebeldes, o governo americano recuou do confronto; segundo o presidente Eisenhower, “qualquer tipo de ação física poderia ser qualificada de intervenção”.
     Os acontecimentos em si e a reação americana a eles marcaram duas características que perdurariam por toda a Guerra Fria. Os tumultos foram o primeiro de muitos sintomas do profundo desapreço do povo da Europa oriental pelos governos que a União Soviética lhe havia imposto. Mas a relutância dos EUA de arriscarem uma ação direta também revelaria uma constante, apesar do aparente entusiasmo de Dulles; na campanha eleitoral de 1952, ele conclamara repetidamente à “redução” do comunismo e à libertação da Europa oriental. Posteriormente, os próprios soviéticos usariam moderação similar diante de problemas americanos. Apesar da continua guerra de palavras, cada um dos lados demonstrava um cauteloso respeito pela “esfera de influência” do outro, mesmo sem reconhecer abertamente a existência dessa esfera.
     A moderação norte-americana foi ainda mais notável na medida em que Eisenhower já anunciara mudanças na política nuclear. Truman, encerrando seu mandato, ainda duvidava da utilidade real do arsenal atômico e, durante a guerra coreana, procurara aumentar as forças convencionais. Eisenhower, cônscio das promessas eleitorais de reduzir os gastos militares, pensava de outra maneira: comparadas ao custo de um exército numeroso e bem equipado, as bombas atômicas eram baratas. Mas se o governo não estivesse disposto a usá-las, ou a ameaçar publicamente fazê-lo, elas seriam politicamente inúteis. Assim, “as armas atômicas”, advertiu Eisenhower às Nações Unidas, “atingiram praticamente um status convencional dentro de nossas forças armadas”. As defesas territoriais européias podiam confiar em bombas-miniatura recém-projetadas, algumas suficientemente pequenas para serem lançadas de uma peça de artilharia; esses armamentos “táticos” permitiriam que pequenas forças americanas detivessem qualquer ataque russo. A palavra “táticos” tranqüilizou tanto os soldados quanto os líderes políticos da Europa ocidental; até então, ninguém havia pensado muito em como ficariam seus países depois que as armas fossem usadas.
     Pessoalmente, o presidente era muito menos entusiástico, especialmente depois que a União Soviética testou sua própria bomba. Embora houvesse uma vasta superioridade nuclear americana – apesar de seu estoque de armamentos, os soviéticos não tinham nada equiparável ao Comando Aéreo estratégico dos EUA, com suas centenas de bombardeiros de longo alcance espalhados por todo o mundo -, era sinistramente óbvio que uma escalada de armas nucleares seria imprevisível e também os EUA poderiam sofrer perdas lastimáveis. Embora Eisenhower continuasse a negar a existência de um “limiar” nuclear, iria se revelar tão relutante em cruzá-lo quanto o fora Truman antes dele.

     Um cartaz soviético de propaganda de 1950, destinado a exibir o estilo de vida americano, recorre a estatísticas criminais para mostrar que "a cada 21 segundos ocorre um crime grave nos EUA". Na pior fase da Guerra Fria, as superpotências aviltavam-se mútua e sistematicamente. Mas até as informações nocivas às vezes desnorteavam seus destinatários: se, como o cartaz também dizia, "a cada três minutos um carro é roubado", os soviéticos notavam que a indústria automobilística dos capitalistas americanos produzia muito mais que a deles. Por outro lado, ao lerem que "na cidade de Nova York desaparecem 13 mil pessoas por dia", estavam novamente em terreno conhecido: no governo de Joseph Stalin, durante vinte anos, um número incontável de cidadãos soviéticos "desaparecera".

     As tensões de fato diminuíram após a morte de Stalin. Seu sucessor, Georgi Malenkov, queria melhorar o padrão de vida soviético, o que requeria o deslocamento de ao menos alguns recursos da indústria pesada e de armas e a busca de ajuda técnica ocidental. Na Coréia, continuou o armistício. Mas havia outros conflitos no mundo. Apesar da ajuda americana, os franceses estavam perdendo a guerra contra os comunistas no Vietnã. A situação piorou em março de 1954, quando uma tropa francesa foi sitiada em Dien Bien Phu. Por meses, o governo francês pedira ajuda aérea dos EUA; agora, seu exército enfrentava uma provável derrota sem ela.
     Eisenhower, apoiado pela maioria dos militares e diante de um Congresso não-intervencionista, não queria entrar no conflito. Para ele, o envolvimento americano no Sudeste Asiático “acabaria com nossas tropas”. Um plano do Pentágono de usar armas atômicas para ajudar os franceses foi abandonado. A guarnição rendeu-se em maio; depois, na conferência de Genebra, o país foi dividido tal qual a Coréia, com um norte comunista e um sul capitalista. Esta divisão compensava a vaidade francesa; o Vietminh aceitou-a, aconselhado pelos chineses, para quem a reunificação do país sob domínio comunista viria com o tempo. Os EUA, com sua política de contenção, aproveitaram para criar a Organização do Tratado do Sudeste Asiático (OTASE), que incluía a maioria dos estados não-comunistas da região; para complementá-la, no Oriente Médio havia a Organização do Tratado Central, liderada pelos britânicos, nascida do Pacto de Bagdá. Ambas seguiam o modelo da OTAN, embora não tivessem seu poder militar ou sua solidariedade política.
     Enquanto isso, as relações dos EUA com a URSS continuaram a melhorar. Malenkov foi substituído no início de 1955 por Nikita Khruschev, que, embora censurasse o antecessor por sua suavidade em relação ao Ocidente e pelos cortes militares, acabou adotando políticas parecidas. Após um acordo, em maio, as tropas ocupantes soviéticas e ocidentais deixaram a Áustria em troca da neutralização do país. O novo líder soviético foi além: começando com referências dissimuladas ao “culto da personalidade” e culminando com um discurso secreto no 20º Congresso do Partido em fevereiro de 1956, ele deu início à desestalinização da URSS. Como desejara, seu discurso causou grande impacto. Milhões de presos políticos anistiados voltaram a participar da sociedade soviética, e oficiais stalinistas da Europa Oriental e da URSS foram substituídos por “moderados” pró-Khruschev. Para Khruschev, sem dúvida, o comunismo mundial triunfaria sobre o capitalismo, mas sem guerras. O novo lema soviético era “coexistência pacífica”.
     O relaxamento nas tensões da Guerra Fria originou até uma conferência em Genebra, amigável, embora malsucedida, sobre desarmamento; ali Khruschev conheceu Eisenhower e líderes britânicos e franceses. Mas a Alemanha Ocidental rearmada era agora membro da OTAN. Khruschev, reagindo a esse fato, criara o Pacto de Varsóvia, uma aliança militar entre a URSS e seus países satélites europeus. Agora, com poderosos mísseis balísticos de alcance intercontinental, ele também pressionava o inimigo. O mundo ainda era amedrontador.
     Em 1956, ficou claro esse terror. Devido às reformas de desestalinização de Khruschev, surgiu mais uma vez um clima perigoso de esperança e inquietação na Europa oriental. Em outubro de 1956, na Polônia e na Hungria, houve manifestações que rapidamente se transformaram em revolta popular. No dia 1º de novembro, o governo húngaro anunciou sua saída do Pacto de Varsóvia. A URSS não reagiu de imediato. Mas, no dia 4 de novembro, os tanques do Exército Vermelho entraram em Budapeste. Pelo menos 2 mil húngaros morreram e 200 mil fugiram para o exílio. O primeiro-ministro húngaro Imre Nagy foi preso (e executado meses depois, após um julgamento secreto) e o movimento de reforma, esmagado.
     Assim como em 1953, os EUA limitaram-se a protestos verbais. Mas as notícias da repressão na Hungria, embora mascaradas pela simultânea crise de Suez (veja mais a frente), tiveram um efeito desanimador sobre partidos e eleitores comunistas de toda a Europa ocidental. Milhares de pessoas jogaram fora suas carteiras do Partido; outras, abaladas, entraram num longo período de reflexão que levaria a um “eurocomunismo” sem laços com Moscou.

Com lenços na cabeça, consumidoras soviéticas examinam cobiçosamente um manequim vestindo a alta costura da década de 1950, o estilo Moscou. Era raro ver coisas assim nessa década. Os esforços maciços da URSS para reparar os danos da guerra deixavam poucos recursos para qualquer tipo de produto de consumo. Mesmo após o período de reconstrução, porém, os cidadãos soviéticos irritavam-se com  a falta de produtos; e os que existiam, eram de má qualidade.

     O programa de desestalinização de Khruschev também estava influindo nas relações sino-soviéticas. Mao Tse-tung, empenhado em criar seu próprio culto de personalidade, rejeitou a orientação de Khruschev; os chineses criticavam a nova abertura da União Soviética em relação ao Ocidente. Por trás dessa ruptura em desenvolvimento, porém, estava a insatisfação da China com a quantidade de ajuda soviética recebida, em particular no que dizia respeito ao programa de armas nucleares chinês: generoso no início da década de 1950, o auxílio soviético fora rapidamente cortado à medida que o Kremlin passou a temer a independência chinesa.
     Como sempre, o processo de tomada de decisão no centro do poder da URSS permaneceu velado. Mas nada havia de secreto sobre a força militar crescente do país. Tanto os EUA quanto a URSS já haviam desenvolvido mísseis balísticos de médio alcance, os melhores que a tecnologia da época podia produzir. Mas os soviéticos tinham uma desvantagem geográfica: os mísseis dos EUA, baseados na Grã-Bretanha, Itália e Turquia, podiam atingir a URSS, mas os soviéticos não conseguiam chegar até os EUA. Em agosto de 1957 Khruschev reagiu, anunciando o teste bem-sucedido de seu primeiro míssil intercontinental; o programa de foguetes de longo alcance dos EUA ainda estava obstruído por problemas técnicos. Em outubro, a URSS pôs seu primeiro satélite artificial em órbita ao redor da Terra.
     O Sputinik 1 não foi apenas grande feito científico, mas um triunfo de propaganda. Khruschev exaltou em público os méritos do comunismo dinâmico contra o capitalismo decadente, dando um golpe atordoador no orgulho nacional americano. Os oponentes de Eisenhower criticaram-no pela política de contenção de gastos que levara a tal humilhação; eles diziam que, permitindo a chamada “defasagem de mísseis” entre as superpotências, o presidente ameaçara a segurança americana. A exibição de músculos de Khruschev estimulou as críticas a Eisenhower. Entusiasmado, o líder soviético ameaçou usar seus mísseis a até se sentiu forte o bastante para pedir, em 1958, concessões que acabassem com a situação anormal da metade ocidental de Berlim, mas não teve sucesso.
     Eisenhower estava num dilema. Desde 1956, vôos secretos de reconhecimento sobre a URSS vinham lhe dando uma estimativa precisa da verdadeira força soviética. Apesar da vanglória de Khruschev e das críticas internas em seu país, ele sabia que a produção soviética de mísseis de longo alcance ainda era modesta em quantidade e qualidade: não havia “defasagem de mísseis”. Mas não ousou revelar isto, pois a divulgação desses vôos secretos provocaria uma crise internacional muito pior.
     Essa crise, porém, ocorreu em 1960, quando um míssil derrubou um avião de reconhecimento U-2 na Rússia. Khruschev irritou-se com a invasão de seu espaço aéreo e convocou uma reunião de cúpula para discutir a situação de Berlim; também convidou Eisenhower para visitar a URSS.
     A “defasagem de mísseis” imaginária foi uma questão importante na disputa acirrada da eleição daquele ano entre o vice-presidente Richard Nixon e o democrata John F. Kennedy, de 43 anos, o vencedor. Com um gabinete jovem, Kennedy pretendia dar um novo dinamismo à política americana, acabando com o que considerava a letargia dos anos de Eisenhower. Mesmo conhecendo o verdadeiro poder dos mísseis soviéticos, ele investiu em sua força de bombardeio estratégico e em novos mísseis, tanto os baseados em terra quanto os lançados por submarinos, estes invulneráveis a qualquer ataque. Após dois anos na presidência, ele iria precisar de toda a segurança que seu poder nuclear lhe dera.
     Em abril de 1961, Kennedy aprovou com relutância uma operação planejada pela CIA no tempo de Eisenhower: uma invasão de exilados anti-Castro na vizinha Cuba, a fim de inspirar uma revolta popular contra o líder cubano, incomodamente pró-soviético. Era um empreendimento arriscado, ainda mais pelo fato de Kennedy ter proibido qualquer envolvimento das forças dos EUA no desembarque, que acabou em desastre. Castro estava prevenido, graças à precária segurança entre os exilados; quando eles desembarcaram na baía dos Porcos, foram mortos ou capturados. O novo presidente ficou muito abalado.
     Dois meses depois, em Viena, Khruschev, determinado a manter a pressão, encontrou Kennedy. Relembrando sua demanda sobre Berlim, anunciou que a URSS continuaria a dar armas e apoio a vários movimentos revolucionários em todo o Terceiro Mundo, aliando-se às “meras guerras” de libertação nacional em toda parte. Foi um encontro áspero, mas Kennedy mostrou-se mais resistente a intimidações do que Khruschev esperava. Anunciando a mobilização de 25 por cento das forças de reserva americanas, o presidente revelou sua determinação de resistir às ameaças russas; ele também salientou a considerável superioridade dos Estados Unidos em armas de longo alcance. Khruschev decidiu não insistir na questão de Berlim.
     Mas a constante fuga de alemães orientais, escapando através de Berlim para o Ocidente, era um problema cuja solução Khruschev não ousava adiar muito. Em agosto, o governo da Alemanha Oriental construiu um muro cruzando a cidade. Essa estrutura improvisada, feita às pressas, iria com o tempo transformar-se numa barreira maciça de blocos de concreto, arame farpado, torres de metralhadoras e campos minados. A Alemanha Oriental evitaria a fuga de seus maiores talentos simplesmente matando-os, se tentassem sair.

          O transporte e lançamento das primeiras armas nucleares era simples: levadas a sua meta por um avião tripulado, elas apenas caíam, do compartimento de bombas para o solo. Esse método apresentava grande vantagens: um bombardeiro tripulado podia sempre desviar-se no último momento. E mesmo se os sistemas antiaéreos ficassem mais eficientes, essas armas ainda eram interessantes, pois bastava um único avião chegar à meta para destruí-la.                                              
     Mas as superpotências acreditavam que um míssil não-tripulado, que chegasse sem aviso e não pudesse ser interceptado, seria um veículo de condução mais eficaz, embora menos flexível. No final da década de 1950, ambas estavam desenvolvendo inúmeros ICBMs (mísseis balísticos intercontinentais), que ameaçavam destruir bombardeiros tripulados, ainda em terra.
     Obviamente, porém, os ICBMs baseados em terra eram vulneráveis a um ataque antecipado de um agressor. Para solucionar isso, ambos os lados instalaram mísseis balísticos em submarinos nucleares que podiam ficar escondidos nos oceanos durante anos ininterruptos. Mas nessa combinação de submarinos com ICBMs havia dificuldades de comunicação. Assim, para segurança máxima, cada potência manteve os três sistemas de condução, a chamada tríade estratégica.                        
     Na década de 60, tornou-se possível a defesa antimíssil. Mas a tecnologia ofensiva também estava avançando com rapidez, O passo seguinte foi equipar mísseis de ataque com tecnologia MIRV - ou de ogivas múltiplas -, pela qual o artefato nuclear lançado por apenas um míssil atinge vários alvos, acabando com qualquer defesa. O desenvolvimento de mísseis Cruise - aviões não-tripulados e de vôo baixo que voam com extrema precisão, guiados por computadores de bordo - seguramente deixou a vantagem com o ataque. Mas a proliferação de sistemas de armamentos significava que nenhum ataque possível deixaria suas vítimas sem o poder de lançar uma retaliação devastadora.   

     O Muro de Berlim não alterou a situação internacional do bloco soviético, e a hostilidade entre as superpotências continuou. Khruschev quis reconquistar o prestígio perdido através de uma aventura em Cuba que se revelaria bem mais perigosa do que o fiasco da baía dos Porcos. Desde a invasão fracassada, a URSS colocara armas e conselheiros em Cuba. Em 1962, Khruschev começou a desenvolver secretamente mísseis nucleares de médio alcance na ilha. Com a instalação dessas armas, a URSS afirmaria sua superioridade nuclear.
     Infelizmente para Khruschev, no dia 16 de outubro Kennedy viu, assustado, fotos tiradas do U-2 mostrando lançadores, mísseis e pessoal soviético em Cuba. Por seis dias, com todas as forças dos EUA sob alerta, ele e seus conselheiros discutiram a resposta: pensavam numa invasão ou numa série de pequenos ataques aéreos. Mas no dia 22 de outubro, ao falar ao povo, Kennedy escolhera outro caminho: Cuba seria isolada. A marinha dos EUA bloquearia a ilha, detendo os barcos que chegassem para verificar se possuíam mísseis. Foi uma opção prudente: um ataque talvez resultasse em conflito nuclear; já um bloqueio, além de dar mais tempo à diplomacia, punha a responsabilidade pública por qualquer conseqüência pior em Khruschev, que agora precisava decidir se mandava ou não seus navios à ilha.
     O mundo aguardou assustado por quatro dias. Declarando o bloqueio ilegal, a URSS a princípio disse que seus navios iriam se recusar a parar; embora naquele momento Kennedy soubesse que não havia barcos com mísseis perto da ilha, a marinha dos EUA apertou o cerco. Por fim, no dia 28 de outubro, Khruschev recuou: a URSS removeria os mísseis se os EUA levantassem o bloqueio e prometessem não invadir Cuba. Publicamente, Kennedy aceitou essas condições. (Secretamente, os EUA tiraram seus mísseis da Turquia, apesar de Kennedy nunca ter admitido uma negociação explícita). A URSS começou a desmontar suas bases em Cuba.

     Uma fila aterrorizante de mísseis soviéticos passa por revista no desfile de Primeiro de Maio de 1964. Na década de 1960, o orçamento da defesa soviética consumia quase 10 por cento da renda nacional, taxa que aumentou para mais de 15 por cento na metade da década de 1980, o dobro ou mais da proporção gasta pelos EUA nessa área. Segundo alguns economistas, os custos reais eram ainda mais altos: a indústria de defesa soviética funcionava quase como um estado dentro de outro, ganhando prioridades de investimento e absorvendo até um terço das produções metalúrgicas e de máquinas-ferramentas do país.

     O resultado foi uma vitória definitiva para os EUA. A impetuosidade de Khruschev rendeu-lhe críticas internas e desaforos de Pequim. Mas mais importante do que perda ou ganho de prestígio foi o fato de ambas as lideranças terem chegado perto o bastante da guerra nuclear para se assustarem, isto sem falar em todas as outras pessoas do planeta com acesso ao rádio, à televisão ou ao jornal. Ambas reconheceram que era perigoso demais terem um relacionamento tão ruim; no ano seguinte, suas relações melhoraram. Embora de forma insatisfatória, por causa do vergonhoso muro, considerava-se a crise de Berlim resolvida; no mês de julho seguinte, EUA, URSS e Grã-Bretanha assinaram um tratado proibindo testes de armas nucleares na atmosfera; e uma conexão de teletipo, o famoso “telefone vermelho”, foi instalada entre Moscou e Washington. Os arsenais das duas potências, parecia, garantiriam certa estabilidade, uma doutrina de coibição muito bem resumida pelo secretário de defesa Robert McNamara na sigla MAD (louco, em inglês) para o termo mutual assured destruction, ou seja, “destruição mútua assegurada”.
     Não haveria mais tentativa de fraude como a de Khruschev em Cuba. Nem poderia haver: a tecnologia espacial, já muito desenvolvida em relação à da época do Sputinik 1, dava agora a ambos os lados satélites de reconhecimento eficientes. Isto ajudou a diminuir a desconfiança crônica entre as duas superpotências, sem o que o tratado teria fracassado como acontecera em negociações anteriores, devido a dificuldades de “verificação”. Kennedy não desfrutou do relaxamento na tensão entre as superpotências. Foi assassinado em Dallas, em novembro de 1963. Sua morte chocou milhões de pessoas em todo Ocidente; os EUA nunca teriam um presidente que inspirasse tal afeição.
     O próprio Kennedy cuidara disso. Apesar de seu sucesso, deixara aos EUA uma carga pesada: o envolvimento no Vietnã. Embora nenhum dos signatários do acordo de Genebra de 1954 tivesse realmente acreditado que a divisão do país durasse, os EUA deram grande ajuda à supostamente democrática República do Vietnã. Relatórios de diplomatas e observadores militares americanos mostravam que o regime sul-vietnamita não inspirava a lealdade de seu povo, cuja maioria votaria nos comunistas se ocorressem no Vietnã as eleições gerais prometidas em Genebra. As eleições, de fato, foram adiadas indefinidamente: Washington e Saigon afirmaram, com certa razão, que a coação comunista impossibilitaria o voto livre. Mas Hanói usou a repressão aos comunistas do sul como justificativa para uma campanha de guerrilha na região, que abalou os recrutas mal liderados e insatisfeitos de Saigon.
     Apesar do confuso contexto histórico, os políticos americanos viam cada vez mais o Vietnã do Sul como um teste decisivo da força política dos EUA; em 1956, Kennedy, então um jovem senador, descrevera-o como a “pedra fundamental do mundo livre no Sudeste Asiático”. Em 1960, os subsídios dos EUA compunham 75 por cento do orçamento do Vietnã do Sul; mesmo assim, os vietconques mal-equipados de Hanói, modestamente apoiados pela China e pela URSS, estavam vencendo.
     Diante da política de “meras guerras” de Khruschev, Kennedy decidiu tornar o Vietnã seu ponto forte contra a agressão comunista e espalhou pelo país armas, dinheiro, conselheiros e, em 1962, tropas. Fez pouca diferença: apesar de quase quinhentas baixas americanas em 1963, os sul-vietnamitas não podiam ser levados a lutar com eficiência contra os vietconques. Em novembro de 1963, os americanos frustrados apoiaram um golpe no qual Diem, o presidente do Vietnã do Sul, foi assassinado. Nessa época, Kennedy duvidou da sabedoria de sua política, dando a entender a amigos que sairia da guerra tão logo ganhasse as eleições de 1964. Mas não viveu para isto. E Lyndon Johnson, seu vice-presidente, fez fortalecer a participação dos Estados Unidos no Vietnã.

Em 1963, mangueiras de incêndio molham negros que participam de uma manifestação por direitos civis em Birmingham, no Alabama. Nos EUA, o movimento por direitos civis foi inspirado pela segregação racial e pela negação do direito de voto – isto se fazia em geral por meio de testes de alfabetização fraudados – aos 11 milhões de negros do sul do país. As manifestações e a brutalidade com que elas eram reprimidas chocaram a opinião pública americana e mundial, fornecendo rico material para a propaganda soviética na Guerra Fria. O presidente Kennedy e seu sucessor Lyndon Johnson começaram a fazer uma legislação de direitos civis que transformaria, pelo menos no papel, a condição dos negros americanos. Mas mesmo com as novas leis ocorreram agitações urbanas violentas na década de 1960, e uma geração depois as relações raciais nos EUA permaneciam delicadas e facilmente inflamáveis.

     Este foi um erro sério de julgamento, pois os alicerces do fracasso já estavam fincados. Houve má compreensão da natureza do inimigo e da própria força americana. O secretário de defesa Robert McNamara, um gênio dos negócios que passara da presidência da Ford Motor Company para a Casa Branca, exemplificou essa má compreensão dupla quando declarou, com sua segurança típica: “Nós temos o poder de derrubar qualquer sociedade do século XX”. Para começar, o Vietnã na verdade mal pertencia ao século XX, e certamente não ao século XX como o entendia o povo americano. O Vietnã do Norte e o do Sul eram igualmente sociedades de camponeses pobres, pouco industrializadas e quase sem proteção, contra as quais era óbvio o efeito devastador que o poder aéreo americano poderia causar. A diferença entre eles estava no fato de que o Norte comunista era firmemente organizado, com um exército eficiente e uma liderança dotada de um propósito claro; o Sul não possuía essa estrutura. Teoricamente os EUA poderiam causar o aniquilamento nuclear dos vietnamitas; na prática, porém, não havia meio para Washington impor sua vontade sobre Hanói.
     Nos Estados Unidos o recrutamento de jovens americanos tornava a guerra impopular. As baixas aumentavam – mais de 50 mil americanos seriam mortos, uma vez e meia o número de baixas na Coréia -, desencadeando protestos contra a guerra. Em 1968, Johnson estava convencido de que o custo para ganhar a guerra era praticamente insustentável. Recusando a candidatura à reeleição, ele buscou a paz. Mas Hanói não viu motivos para se comprometer e os EUA ainda não estavam prontos para admitir a derrota completa.
     Com Richard Nixon, o sucessor republicano de Johnson, a guerra continuou e até se intensificou. As tropas dos EUA invadiram o vizinho Camboja, enquanto o Vietnã do Norte era castigado com mais explosivos do que os usados em toda a Segunda Guerra Mundial. Finalmente, após a reeleição de Nixon em 1972, uma espécie de acordo de paz foi assinado: os EUA se retiraram e Hanói deixou o Sul em paz por um breve período. Em 1975, porém, os norte - vietnamitas cruzaram a “fronteira”; sem ajuda americana, o exército de Saigon sucumbiu e a guerra finalmente terminou.
     Os EUA adiaram a vitória comunista talvez por quinze anos, a um preço muito alto. A extensão e atrocidade do conflito causaram um dano enorme a seu crédito moral: pela primeira vez, europeus e até americanos falaram da “equivalência moral” das superpotências. O gasto com a guerra criara suficiente inflação para atrapalhar a economia dos EUA. Politicamente, desde sua guerra civil, mais de um século antes, a nação nunca estivera tão dividida como agora.

     A Guerra do Vietnã teve um grande beneficiário: a URSS. O prolongado envolvimento dos EUA no conflito foi um presente inesperado para o Klemlin, numa época difícil e tensa. O menor problema da URSS era a crise de sua própria liderança, rápida e calmamente resolvida em 1964. Khruschev, desacreditado por suas políticas externas arriscadas e por fracassos desastrosos na agricultura, foi deposto e substituído no cargo de secretário do Partido pelo muito mais cauteloso Leonid Brejnev; Aleksei Kosygin tornou-se primeiro-ministro. A nação herdada por Brejnev deparou-se com um perigo duplo. Primeiramente, a cisão com a China tornara-se um abismo. As relações sino-soviéticas estavam tão ruins que os soviéticos colocaram tropas e mísseis ao longo da fronteira com a China; os guardas da região trocaram tiros regularmente, criando uma situação que em 1969 virou uma perfeita guerra na fronteira do rio Ussuri. A partir de então, o Kremlin teria precisado viver com o pesadelo de uma possível aliança entre a China e os EUA – uma eventualidade que, para alívio dos russos, tornou-se bem menos provável com a Guerra do Vietnã.

Fuzileiros navais americanos levam seus mortos para um helicóptero Chinook durante o cerco da base Khe Sanh no Vietnã, em 1968. A batalha de Khe Sanh simbolizou o trágico desperdício da Guerra do Vietnã, que matou mais de 50 mil americanos e uma quantidade não estimada de vietnamitas. A base era exposta e irrelevante em termos de estratégia; mesmo assim, planejadores militares consideravam sua conservação vital para o prestígio americano. Cerca de quinhentos fuzileiros navais morreram antes do final do cerco, quando a base foi completamente destruída.

     A segunda preocupação do Kremlin dizia respeito à Comunidade Econômica Européia. Além de mostrar grande força econômica, o que era um exemplo angustiante para os países satélites soviéticos muito mais pobres, ela vinha se tornando fonte de poder político. A comunidade estava atraindo líderes da Europa oriental que buscavam empréstimos para melhorar suas economias, e Moscou via essa diluição de sua influência com grande suspeita. Mas mesmo neste caso, o envolvimento dos EUA no Vietnã favoreceu a URSS, na medida em que os aliados dos americanos, aflitos com sua atuação, buscavam relações mais independentes com o Oriente. A França, sempre apartidária, deixara a OTAN em 1966; agora a Alemanha Ocidental, consciente de sua situação de nação dividida, introduzia uma nova Ostpolitik – a fim de melhorar as relações com a Europa oriental – que facilitava a aquisição de produtos e tecnologias ocidentais por parte do bloco soviético.
     A riqueza da Europa ocidental foi um dos fatores que encorajou Alexander Dubcek, o novo secretário do Partido da Checoslováquia, a iniciar, em 1968, um programa de reformas políticas e econômicas conhecido como “Primavera em Praga”. Mas Brejnev assegurou-se de que não haveria um “Verão em Praga”: em agosto daquele ano um exército do Pacto de Varsóvia, comandado pelos russos, avançou sobre o país e esmagou as idéias de Dubcek. A repressão foi bem menos sangrenta do que a invasão de 1956 da Hungria, mas teve a mesma eficiência. Dubcek desapareceu da vida pública, sendo substituído por pessoas designadas por Brejnev, e os checos entregaram-se a uma obediência sofrida. A “Doutrina Brejnev”, a determinação de Moscou de manter seus países satélites em órbita a seu redor, fora brutalmente praticada, levantando a opinião pública mundial contra a URSS.

     Nixon e seu secretário de estado, Henry Kissinger, de origem alemã, não estavam completamente absorvidos pela guerra no Vietnã. Kissinger, um grande estudioso da diplomacia do século XX, acreditava na possibilidade de promover um relacionamento franco, sem preocupação de ideologia, entre os EUA e a URSS. Desde a crise de Cuba, os soviéticos vinham aumentando seu arsenal nuclear: em 1970 realmente havia certa defasagem de mísseis, embora as duas potências possuíssem mais armas do que o necessário para se destruírem várias vezes. Um tratado para limitar armas estratégicas parecia ser ainda mais urgente do que no tempo de Johnson; e Nixon, com suas opiniões diretas, tinha uma posição melhor para negociá-lo do que um presidente considerado liberal. Esse tratado também convinha à URSS. Melhorar suas relações com os EUA beneficiaria sua economia, além de lhe permitir acesso ao excedente de grãos americanos, precioso diante do fracasso crônico de sua agricultura. Assim nasceu uma nova política de détente: Nixon aprovou o chamado acordo SALT em uma visita triunfal a Moscou, em 1972.
     O novo relacionamento passou por um teste perigoso em 1973, quando os estados árabes atacaram Israel no dia mais sagrado para a nação, o do Yom Kippur. Após um quase-desastre inicial, as forças israelenses, reaprovisionadas por uma ponte aérea de armas americanas, reagiu e derrotou os egípcios. Brejnev ameaçou usar tropas aéreas para restaurar o equilíbrio; os EUA responderam pondo suas forças nucleares em alerta em todo o mundo, o que não ocorria desde o caso de Cuba. Na verdade, nenhum dos lados queria agir drasticamente em apoio a aliados que as próprias potências consideravam problemáticos. Ambos recuaram. Kissinger, numa polvorosa de diplomacia, organizou um cessar-fogo, tirando dos israelenses indignados o que eles julgavam serem suas vantagens por direito; a União Soviética rearmou os  árabes. O Oriente Médio continuou sendo uma região perigosa, sujeita a conflitos inesperados.
     A renúncia de Nixon em agosto de 1974, para evitar o impeachment devido a seu envolvimento no escândalo de Watergate, minou a autoridade presidencial dos EUA, mais uma vez favorecendo a URSS. Até a eleição do presidente Jimmy Carter em novembro de 1976, Moscou, convencida de que a détente reduzia o risco de aventuras no Terceiro Mundo, tirara o máximo proveito das oportunidades. Sua marinha recém-expandida foi usada para projetar o poder soviético em todo o mundo, criando bases no Vietnã e no Iêmen. Na África, tropas cubanas sob o comando de Moscou – Castro teve que pagar pela ajuda dada pelos soviéticos – atuaram em Angola e Moçambique, e golpes de esquerda puseram nações mais preparadas, como a Etiópia em 1974, na esfera soviética. No final da década de 1970, uma resolução na Nicarágua dera a Moscou um ponto de apoio na parte continental da América Central, e o Afeganistão, na vulnerável fronteira meridional da URSS, adotara um regime agressivamente comunista. Enquanto isso, na Europa, o desenvolvimento dos SS-20, os novos e poderosos mísseis de médio alcance de Brejnev, parecia estar irritando os líderes ocidentais e incentivava um movimento de paz cada vez mais clamoroso, cujo anti-americanismo impedia contramedidas da OTAN.

Uma bandeira americana gigantesca serve de barraca para proteger alguns dos 400 mil jovens americanos que se reuniram no Festival de Artes e Música de Woodstock no estado de Nova York, em agosto de 1969. Woodstock foi o ponto alto do chamado movimento de contracultura que surgiu nos Estados Unidos na década de 60, quando milhões de jovens rejeitaram as virtudes sociais tradicionais, preferindo um estilo de vida no qual as drogas, o sexo e o rock produziriam um mundo novo de paz e amor. Desde o início, porém, os hippies provocaram uma reação mal-humorada na classe trabalhadora americana, irritada ao ver que a maioria desses jovens vinha de uma rica classe média; a paz e o amor ficaram mais distantes.


      Na verdade, a URSS era bem mais fraca do que sugeria sua posição mundial. A despesa com a Guerra do Vietnã tinha causado imenso prejuízo aos EUA; já a economia soviética, muito menor, não podia suportar a pressão de gastos pesados e constantes com armas e com subsídios a seus aliados. O crescimento da economia soviética era lento ou mesmo negativo, com exceção da defesa; em geral não se cumpriam os Planos Qüinqüenais, e a agricultura era uma ferida aberta. Apesar de toda a expansão do regime de Brejnev no exterior, internamente o líder governava uma sociedade estagnada. Por um lado, a corrupção declarada e em larga escala em meio à burocracia dominante, a nomenklatura, garantia um alto padrão de vida aos oficiais do Partido e seus dependentes; por outro lado, faltas crônicas de produtos condenavam os cidadãos comuns a longas filas para obter mercadorias. A mortalidade infantil estava crescendo, enquanto a expectativa de vida caía. O entusiasmo ideológico desaparecera, sendo substituído por um ceticismo profundo, do qual o alcoolismo generalizado era apenas o sintoma mais evidente.
     A mudança demográfica mostrava-se assustadora para os russos, que dominavam o Politburo: a proporção de russos na URSS estava chegando a menos de 50 por cento; só nas repúblicas do sul a população crescia. E essas repúblicas não eram apenas diferentes. Apesar de históricas perseguições de autoridade soviéticas atéias, a maioria de seus habitantes ainda se agarrava a sua fé islâmica ancestral. Com a agitação religiosa no vizinho Irã – que desde 1980 estava em guerra santa com o Iraque -, isto era um mau presságio para o futuro.
     As fronteiras meridionais da URSS pareciam cada vez mais vulneráveis. O governo comunista do Afeganistão, linha dura mesmo se comparado a Moscou, armara, principalmente por ignorar a fé islâmica de seu povo, uma rebelião irrefreável contra si mesmo. Temendo as conseqüências dessa desordem em suas fronteiras, em dezembro de 1979 a URSS reagiu de forma brutal: o Exército Vermelho invadiu o país, matou o déspota comunista existente e pôs um títere mais submisso em seu lugar. Assim, o medo de desordem de Brejnev levou sua nação a uma guerrilha incerta contra os afegãos, mulçumanos apaixonados, conhecidos por sua dureza e convencidos de que essa luta era uma guerra santa. Logo, helicópteros armados da URSS estavam queimando cidades, e seus recrutas adolescentes voltavam para casa em caixões militares. Para os americanos e outros povos, a situação lembrava terrivelmente o Vietnã.
     Mais problemas viriam. Durante anos, a Polônia debatera-se com a questão da dissidência: greves e tumultos na década de 1970 tinham sido, ora reprimidos, ora acalmados através de concessões econômicas feitas aos trabalhadores poloneses. No verão de 1980, o descontentamento levara à criação do sindicato Solidariedade, que organizava ondas de greves e buscava uma revolução política. Os líderes do sindicato eram cuidadosos em suas declarações públicas, e o governo polonês cedia o máximo possível – tanto o Solidariedade quanto o Partido Comunista polonês lembravam-se do destino da Hungria e da Checoslováquia e não pretendiam provocar uma forte reação soviética.
     Na verdade, a URSS estava alarmada, mas, apesar da Doutrina Brejnev, relutava em intervir. As razões disto eram em parte econômicas: durante a détente da década de 1970, não só a Polônia, mas todos os países da Europa oriental tinham tomado muito dinheiro emprestado dos bancos ocidentais. Em geral, o dinheiro fora gasto com sabedoria ainda menor do que a dos banqueiros ao emprestá-lo, e a maioria dos países satélites estava à beira da falência econômica. Enquanto o Solidariedade fazia manifestações de massa, o governo polonês estava buscando um reescalonamento para pagar suas dívidas. Sem dúvida uma intervenção soviética traria sanções financeiras ocidentais que poderiam ser a gota d’água para a Polônia e para todo o bloco soviético.
     Havia outras razões para a hesitação da URSS. Embora o Pravda falasse de “homens irresponsáveis, anarquistas e anti-socialistas”, o Kremlin sabia que o Solidariedade tinha muito apoio popular. Uma invasão encontraria resistência armada. Então, ou o prestígio soviético afundaria ou, no caso de vitória, seria preciso manter uma ocupação longa e cara. Brejnev decidiu dar tempo ao tempo.
     Nesse ínterim, os americanos trocaram o infortunado Carter pelo inflexível direitista Ronald Reagan, nas eleições de novembro de 1980. A invasão russa do Afeganistão matara a détente; Reagan agora a enterrava, com longos discursos anti-soviéticos. Ele recusou uma proposta de Brejnev para discutir redução de armas: não fazia sentido negociar com o que ele chamava de “império do mal”. Em vez disso, os EUA iriam se reequipar com sistemas mais potentes, incluindo um programa de defesa estratégica totalmente novo que usaria, na terra e no espaço, armas laser de altíssima tecnologia, capazes de acabar com mísseis soviéticos às centenas.
     Lançado em 1983, o programa, apelidado de “Guerra nas Estrelas”, era altamente ambicioso, e estava no limite ou até além da capacidade técnica dos EUA. Ele apavorou a URSS, que não podia esperar estar à altura, mas ameaçou promover um aumento maciço no número de mísseis – isto faria desaparecer a gabada defesa de Reagan -, embora uma expansão do sistema de armas fosse prejudicar sua já problemática economia. O Guerra nas Estrelas também desagradou muitos aliados de Reagan na OTAN, que apreciavam a estabilidade do equilíbrio nuclear de até então. Mas apesar dos protestos antinucleares, a OTAN instalou os mísseis Pershing e Cruise dos EUA, que deveriam se opor aos SS-20 de Brejnev. A Guerra Fria tornava-se ainda mais fria.
     A situação estava longe de ser resolvida quando Brejnev, doente há muito tempo, morreu em 1982, aos 75 anos. Nos últimos tempos ele havia sido pouco mais do que um líder de fachada, apenas para evitar uma luta pela sucessão. Seu substituto, Yuri Andropov, não era muito mais jovem e também estava doente; introduziu uma série de reformas cautelosas, que até sua morte, em 1984, pouco influíram na sociedade soviética. A economia ainda estava fraca, e a agricultura era como sempre um entrave nacional. Não se podia mais adiar as mudanças; mas, ainda assim, líderes do Partido contemporizaram de novo, confiando o destino da URSS a Konstantin Tchernenko, um conservador de 72 anos de idade. Com pouca saúde, ele fazia seu contemporâneo Reagan, o presidente mais velho já eleito nos EUA, parecer um jovem; a liderança do Kremlin atingira seu ponto mais baixo.
     Mas a gerontocracia, por sua própria natureza, não viveria para sempre. Quando Tchernenko morreu, em março de 1985, a geração de Brejnev não podia mais manter o poder. Para deleite da maioria do povo soviético, seu sucessor foi Mikhail Gorbatchev, com 54 anos, o líder mais jovem desde a época de Stalin.
     O desafio para o novo líder era enorme: por décadas seus antecessores tinham evitado os problemas internos da URSS; agora essas questões precisavam ser resolvidas com extrema urgência. Gorbatchev, com uma equipe de conselheiros jovens e às vezes radicais, começou a trabalhar para isso. Seu plano de reforma era duplo. Politicamente, ele insistia na abertura e no dever de prestar contas ao público, a chamada glasnost. Economicamente, pretendia tirar o país do sistema paralisante de controle centralizado e levá-lo a uma era de liberdade econômica: a perestroika.


     Formando um mosaico de quinze repúblicas etnicamente distintas e com uma diferença de onze horas entre seus pontos extremos, a URSS nunca foi o monólito que seus líderes e inimigos sempre imaginaram. Em 1985, a república russa (assinalada em amarelo) não continha nem metade da população soviética, e a maioria das outras, irritadas, queria seguir seu próprio caminho. Vladimir Ilyich Lênin, o fundador da URSS, certa vez descreveu a Rússia czarista como a “prisão das nações”; em 1990 seus sucessores enfrentavam várias tentativas de fuga. As repúblicas muçulmanas do sul voltavam-se para o mundo islâmico, não para Moscou; os estados bálticos da Lituânia, Estônia e Letônia procuravam independência e aproximação com o Ocidente, e a Ucrânia, a região mais fértil da URSS, borbulhava em agitação nacionalista.

     Também na política externa ele abriu um novo campo. Obviamente, altos gastos com armas estragariam qualquer reforma – esse investimento, aliás, dera à URSS uma segurança extra preciosa, mas pequena. Acreditando que o mundo estava cada vez mais interligado, o novo líder soviético via pouco espaço para o intervencionismo das superpotências: “nem a URSS nem os EUA podem impor sua vontade a outros”, escreveu ele em seu livro Perestroika. Meses depois de assumir o poder, Gorbatchev propôs aos Estados Unidos uma série impressionante de redução de armas. Acabara-se o tempo em que cada míssil e cada soldado era uma questão de semanas de discussão. Gorbatchev queria cortes drásticos e de uma vez.
     Reagan surpreendeu-se com a virada. Pela primeira vez, desde a guerra, a União Soviética tinha um líder capaz de despertar o entusiasmo da opinião pública ocidental. Em visitas à Europa ocidental e aos EUA, Gorbatchev era cercado por multidões alegres; as palavras glasnost e perestroika passaram a fazer parte de várias línguas ocidentais. Apesar da desconfiança inicial, Reagan adaptou-se rapidamente. Em 1987, ele assinou o Tratado INF (Forças Nucleares de Alcance Intermediário) abolindo os mísseis de médio alcance – toda uma classe de armas. A Guerra Fria, declararam publicamente ambos os lados, terminara. Em 1988, as tropas soviéticas começaram a deixar o Afeganistão.
     Mas para Gorbatchev, embora a princípio sua nova abertura na URSS tenha tido muito sucesso, era mais difícil lidar com a política interna do que com a externa. No 27° Congresso do Partido, em 1986, ele teve uma clara vitória sobre seus oponentes conservadores, políticos conscientes de que seus antigos privilégios desapareceriam sob a nova luz da glasnot. A mídia soviética, que até então se resumira a ser porta-voz da política oficial, começou a adquirir as habilidades excitantes do jornalismo investigativo. Aos poucos os arquivos de estado foram abertos, e os cidadãos soviéticos começaram a saber em detalhes alguns dos horrores de sua própria história. Também foram autorizadas eleições livres para os sovietes locais e para o Soviete Supremo; centenas de chefes do Partido, conservadores ferrenhos da era de Brejnev, viram-se tirados de sua posição confortável pelo povo ao qual alegavam servir. No início de 1990, Gorbatchev foi além: forçou uma emenda constitucional acabando com a posição privilegiada do Partido Comunista. No futuro, esse partido teria que competir com outros pelo poder.
     Mas foi muito mais duro implantar a reforma econômica do que a política. A economia do país era tão pouco desenvolvida que as tentativas de melhorá-la levaram, a curto prazo, a uma queda, e não à elevação do padrão de vida. No clima de expectativas criado pela glasnost, podia surgir descontentamento. A falta de produtos ficou crônica, as filas aumentaram e as greves tornaram-se uma constante na atividade industrial do país. Também havia o problema das agitações nacionalistas nas repúblicas não-russas da URSS. Em 1989, Gorbatchev deparou-se com uma quase guerra civil entre a Armênia e o Azerbaidjão no sul, enquanto as repúblicas bálticas da Estônia, Letônia e Lituânia pediam para separar-se da União Soviética.
     Na Europa oriental a glasnost produziu efeitos ainda mais profundos. A Hungria começou lentamente a se transformar num estado democrático, com vários partidos políticos e eleições livres. O arame farpado que por décadas guardara suas fronteiras socialistas foi tirado. Na Polônia, os cidadãos puderam eleger seu primeiro presidente não-comunista. Os dois países olhavam cheios de desejos para a CEE, pensando em ajuda e talvez numa eventual participação como membros.
     O ano de 1989 foi o annus mirabilis da liberdade da Europa oriental. Na segunda metade do ano, os alemães orientais estavam escapando às centenas de milhares através das fronteiras recém-abertas da Hungria para a cidadania na Alemanha Ocidental. O governo da Alemanha Oriental primeiramente ameaçou esmagar as manifestações de massa que ocorriam em seu território, mas ao perceber que Gorbatchev não pretendia usar o Exército Vermelho para proteger o aparato comunista, resignou-se. Em novembro, o Muro de Berlim foi derrubado sob o olhar assustado dos guardas de fronteira alemães orientais. Também na Checoslováquia houve mudança: o dramaturgo dissidente Vaclav Havel começou 1989 na prisão e no final do ano era o novo presidente do país; enquanto isso, os quartéis da polícia secreta eram revistados e os oficiais comunistas desapareciam. O próprio Gorbatchev encorajou uma revolução silenciosa na Bulgária; em dezembro o povo romeno e seu exército de recrutas travou batalhas sangrentas com a polícia de segurança de Nicolae Ceausescu; juntamente com sua esposa e cúmplice, o ditador viu-se diante de um pelotão de fuzilamento antes do final do ano.
     A mensagem era simples, vinda de Gorbatchev e das ruas da Europa: não poderia haver retrocesso. No início da década de 1990, as superpotências estavam competindo entre si para tirar tropas da Europa central, e os partidos comunistas da Europa oriental buscavam novas identidades com as quais pudessem competir com alguma esperança de sucesso nas eleições que ocorreriam por toda parte. A reunificação alemã, o maior tabu da Guerra Fria, estava a caminho.
     Na URSS, Gorbatchev ainda se esforçava para atingir as metas da perestroika antes que a agitação geral arruinasse não só o império soviético, mas também a própria URSS – o resultado desse esforço era bastante incerto no começo de 1990. A Guerra Fria de Truman e Stalin, Kennedy e Khruschev, Nixon e Brejnev certamente acabara, e era difícil imaginar como poderia ser retomada. Num certo sentido os Estados Unidos e as nações da aliança ocidental saíram dela vitoriosos; afinal, o poder soviético tinha claramente se suavizado, como esperara George Kennam mais de quarenta anos antes, e as nações ocidentais haviam conservado sua liberdade e independência. Faltava saber se a União Soviética perdera, pois, embora os prêmios desse jogo fossem altos, parecia que o povo da União Soviética e de seus países satélites havia ganhado muito mais com esse resultado do que teria recebido com uma “vitória”.
     Na verdade, os conceitos de vitória e derrota não pareciam mais muito importantes. O esforço havia sido longo e confuso, marcado tanto por erros quanto por acertos estratégicos de ambos os lados. Mas fossem quais fossem os enganos dos homens de estado, diplomatas e generais das superpotências envolvidas na Guerra Fria, houve um erro que nenhum deles jamais cometeu. Apesar do medo, da tensão e algumas vezes de verdadeiro ódio, eles mantiveram a paz nuclear. Os mísseis ficaram em seus silos; a raça humana sobreviveu.
    




A GUERRA FRIA 

é o primeiro capítulo do livro A ERA NUCLEAR,
que trata tópicos ocorridos entre 1950-1990

Os demais são:
2. A EUROPA RENASCE  DAS CINZAS
3. A CHINA DEPOIS DE MAO
4. VENTOS DE MUDANÇA DA ÁFRICA
5. O EXPLOSIVO ORIENTE MÉDIO
6. O IMPÉRIO COMERCIAL DO JAPÃO

e é parte integrante da coleção HISTÓRIA EM REVISTA,

uma publicação da TIME-LIFE & ABRIL LIVROS.

Consultor David Reynolds, membro e diretor de Estudos de História da Faculdade Christ,
da Universidade de Cambridge

Tradução de Sandra Silvério e Vera Ribeiro

Original Edition: Copyrigth 1991 Time-Life Books Inc.

Authorized Portuguese Edition: Copyright 1993 Abril Livros Ltda