segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A CIDADE DE CONSTANTINO


     Quase mil anos antes de Constantino decidir-se a fazer de sua nova capital uma cidade cristã localizada no Oriente, um colonizador grego chamado Bizas zarpou de Mégara e, rumando para nordeste, cruzou o Egeu. Passou pelo sítio da antiga Tróia, depois penetrou nos Dardanelos e atravessou o mar de Mármara. Afinal chegou à entrada do Bósforo, o estreito canal que serpenteia numa extensão de 30 km entre uma dupla cadeia de colinas rochosas cobertas de arbustos para desembocar no mar Negro.

     Antes de partir, Bizas perguntou ao oráculo de Delfos onde devia estabelecer sua nova cidade colonial. Com a ambigüidade usual, respondeu-lhe o oráculo: “Em frente aos cegos”. Só ao chegar ao Bósforo compreendeu Bizas o que o oráculo queria dizer: na margem asiática, fronteira à península escarpada e triangular que rematava a massa continental européia, antigos colonos gregos já haviam fundado uma cidade – Calcedônia. Eles é que deviam ter sido cegos, pois só os cegos não notariam a evidente superioridade do local situado a mais ou menos um quilômetro, na margem oposta. Foi ali que Bizas fundou sua cidade, a qual tomou dele o nome. Bizâncio chamar-se-ia ela até o momento em que Constantino, o Grande, a transformasse em sua nova capital, denominando-a Nova Roma. Mas tarde, porém, tornou-se conhecida como Constantinopla, cidade de Constantino.  O nome de Bizas passaria à História como a designação moderna da civilização imperial que Constantino instituiu.

     A cidade de Constantino erguia-se num belo sítio dotado de defesas naturais e vantagens comerciais. Dominava a rota marítima norte-sul, da Rússia ao Mediterrâneo. Ao longo desta rota, saindo dos portos da Rússia meridional e do Danúbio, e atravessando o mar Negro, os navios transportavam trigo e peles, caviar e sal, mel e ouro, cera e escravos. Do sul, dos ricos jardins da Anatólia e dos celeiros do Egito, vinham víveres para alimentar a crescente população da cidade.

     Constantinopla situava-se no ponto em que as rotas terrestres que ligavam a Ásia à Europa Oriental encontravam sua mais estreita passagem marítima. Assim, para o por Constantinopla, procedentes de lugares tão distantes como a Índia, o Ceilão e a China, carreavam-se marfim e âmbar, porcelana e pedras preciosas, sedas e damasco; aloés e bálsamo, canela e açúcar, almíscar e gengibre, e muitas outras especiarias e medicamentos. A oeste da cidade havia outros distritos férteis onde floresciam uvas e cereais, e as águas do Bósforo e do mar de Mármara, que banhavam as praias da cidade, eram extremamente piscosas.

     Impressionantes eram as defesas com que a natureza brindara a cidade. Ao sul estendia-se o mar de Mármara, e, quase no ponto em que o Bósforo desaguava nesse mar, uma estreita enseada avança ao longo da costa setentrional da península triangular para formar um perfeito porto abrigado. É o Corno de Ouro, assim denominado por causa de sua configuração e da riqueza que o comércio do mundo depositou em suas docas. Como observou Procópio, escritor bizantino de VI século, o Corno de Ouro “é sempre calmo, sendo feito pela natureza de modo a nunca ser tempestuoso, como se se houvessem traçado limites aos vagalhões e fechado as portas ao mar encapelado em homenagem à cidade. E no inverno, quando ásperos ventos desabam sobre o mar e o estreito [o Bósforo], tão logo os navios alcançam a entrada da baía, podem prosseguir sem prático e atracar facilmente. Toda a baía mede uns oito quilômetros de comprimento e toda ela é porto, de sorte que quando um navio lá ancora, a popa fica a flutuar na água enquanto a proa assenta em terra firme, como se os dois elementos rivalizassem um com o outro no desejo de prestar o maior serviço à cidade”.

     Quando resolveu trasladar de Roma a capital, Constantino resolveu também fazer da nova capital outra Roma, se possível mais suntuosa que a antiga. Como Roma, Constantinopla era uma “cidade de sete colinas”, e, como Roma, a cidade dividia-se em 14 distritos. Da velha Roma, Constantino trouxe o talismã sagrado do Império Romano, o Paládio, estátua de madeira de Palas Atenéia que se acreditava tivesse caído do céu e tivesse sido transportada por Enéias de Tróia para a Itália. Também trouxe da antiga capital membros de famílias nobres para constituírem uma nova classe senatorial, e instalou-os em belas vivendas.

     Os principais edifícios imperiais foram construídos segundo modelos romanos. Todas as estátuas e outras obras de arte antiga em que pôde pôr as mãos, Constantino transferiu para sua cidade. Entre elas havia obras-primas como o chamado javali de Calidon e a coluna serpentina de Delfos, na qual se tinha inscrito os nomes das cidades gregas que derrotaram os persas em Platéia, no ano 479 a.C.

     Num único aspecto importante Constantinopla não era uma imitação da velha Roma, pois iria ser uma cidade cristã. Constantino iniciou a construção de Hagia Sophia (a Igreja da Santa Sabedoria) e concluiu muitas outras, inclusive a Igreja dos Santos Apóstolos. Nessa última, entre os 12 túmulos simbólicos dos apóstolos, colocou um 13º túmulo – o seu. Aí também foram enterrados muitos imperadores subseqüentes, visto que todos os imperadores bizantinos eram considerados como “os iguais dos apóstolos”.

     Em todos os lugares de sua nova cidade Constantino introduziu emblemas Cristãos, como cruzes e relíquias dos santos. Outros objetos ligados à nova fé – a enxó com que se supunha ter Noé construído a arca, o nardo com que se dizia ter Maria Madalena ungido os pés de Cristo – Constantino emparedou ao pé de uma coluna gigantesca. Esta coluna, constituída de seis grandes tambores de pórfiro cinzelados com folhas de louro circundantes, foi erigida no centro de um imponente foro elíptico, pavimentado com mármore e rodeado de colunatas. Era este o Fórum de Constantino.

     Com o passar dos anos, colunas, estátuas, monumentos comemorativos e objetos sagrados relacionados com a fé cristã multiplicaram-se pela cidade. Muitos reportavam-se expressamente à Virgem Maria, que era considerada a protetora especial  da cidade. “Não se acharia um lugar público ou habitação imperial, uma estalagem respeitável ou moradia particular de alguma autoridade onde não houvesse uma igreja ou um oratório da Mãe de Deus”, disse mais tarde um estudioso desse período. Numa igreja localizada na extremidade noroeste das muralhas do lado de terra, num ponto chamado Blachernae, guardava-se uma das mais preciosas dentre todas as relíquias da cidade, o manto da Virgem, que fora trazido da Palestina para Constantinopla no tempo de Leão I (457-474). Aí também havia um milagroso ícone da Virgem, coberto por um véu que, segundo se dizia, às vezes se abria misteriosamente para mostrar a imagem que recobria.

     Em outra igreja consagrada a Maria achava-se seu cinto, relíquia que operara grande número de milagres. Em fases de perigo, como nos muitos assédios suportados pela cidade, essas relíquias e ícones da Virgem desempenhavam importantíssimo papel. Durante um ataque dos russos em 860, quando a cidade se viu privada de toda esperança, foi o manto da Virgem levado em procissão ao redor das muralhas e ameias, e os russos abandonaram o cerco.

     “Em verdade”, escreveu uma testemunha contemporânea, o Patriarca Fócio, “esta sacratíssima veste é o manto da Mãe de Deus! Abarcou as muralhas, e os inimigos inexplicavelmente fugiram; a cidade envolveu-se nele, e o acampamento do inimigo dispersou-se como a um sinal convencionado; a cidade adornou-se com ele, e o inimigo viu-se despojado das esperanças que o animavam. Pois assim que o manto da Virgem passou em volta das muralhas, os bárbaros abandonaram o cerco e levantaram acampamento, enquanto nós nos livrávamos da captura iminente e obtínhamos inesperada salvação”.

     De todas as partes do mundo cristão foram trazidas relíquias para a capital. Estavam depositadas em igrejas, santuários e capelas, encerradas em caixas de ouro e prata, ornamentadas com pedras preciosas, muitas vezes embrulhadas num pano de seda. A cidade tornou-se um imenso relicário. Aqui estava a roupa branca usada pelo Menino Jesus, ali o manto coberto de sangue usado por Cristo na Cruz, a lança que lhe traspassara a ilharga, a Coroa de Espinhos, e a pedra do Túmulo; aqui repousavam as veneradas relíquias dos Apóstolos São Lucas e Santo André. E do companheiro de São Paulo, São Timóteo, e a cabeça de João Batista.

     O começo oficial de tudo isto data de 11 de maio de 330, dia da inauguração da cidade. Naquele dia uma estátua de Apolo – cuja cabeça fora substituída por uma cabeça de Constantino – foi içada no topo da coluna do Fórum. A estátua de Constantino-Apolo, tendo na mão direita um cetro e na esquerda um globo representando o mundo, sobreviveu até os primeiros anos do século XII, quando caiu em meio a uma tempestade e foi substituída por uma cruz de ouro.

     As atividades construtoras de Constantino foram intensas. Empregando mármore trazido das ilhas do mar de Mármara, e madeira das florestas que margeavam o mar Negro, ele ampliou o Hipódromo, construído pouco mais de um século antes por Setímio Severo. Uma lista compilada mais ou menos um século depois enumerava, entre os edifícios da cidade na época, dois teatros, oito banhos públicos e 153 privados (inclusive os famosos Banhos de Zeuxipo, também iniciados anteriormente), 52 pórticos, cinco celeiros, oito aquedutos ou cisternas, 14 igrejas, 14 palácios e 4.388 casas suficientemente grandes para serem mencionadas.

     Sob a pressão do crescimento da população, a área da cidade dilatou-se a ponto de abarcar outra língua de terra que se estendia entre o Corno de Ouro e o mar de Mármara. No século V, para defender essa expansão para o interior, construiu-se uma enorme linha tríplice de muralhas de cerca de cinco quilômetros de comprimento. Suas ruínas ainda podem ser vistas. Muralhas mais antigas tinham sido construídas ao longo da praia do mar de Mármara e do Corno de Ouro, de modo que a cidade se tornou praticamente uma fortaleza cercada.

     A maior modificação na aparência física de Constantinopla ocorreu no século VI, quando algumas das maiores glórias arquitetônicas do mundo bizantino foram construídas sob os auspícios do Imperador Justiniano. A oportunidade, e necessidade, de um grande surto de edificação foi proporcionada em 532 por tumultos seguidos de um incêndio que ardeu durante cinco dias e deitou por terra metade da primitiva cidade. Muitos dos principais edifícios públicos erigidos por Constantino e seus sucessores – inclusive a igreja central, Hagia Sophia – foram destruídos.

     Justiniano, sem perda de tempo, mandou remover o entulho e os restos carbonizados de edifícios cujas partes internas tinham sido consumidas pelo fogo. Convocando os maiores arquitetos que pôde encontrar – Isidoro de Mileto e Antêmio de Trales foram dois dos mais importantes – passou a trabalhar com uma energia que parecia sobre-humana a fim de reparar o dano. Justiniano pôs o selo da magnificência imperial na cidade. Reedificou inteiramente Hagia Sophia e empreendeu um vasto programa de construções públicas. Imperadores subseqüentes deram outras contribuições, tais como a ampliação do Palácio Imperial, a ereção de outra igreja, a ornamentação de um foro, o planejamento de um jardim público. Mas, em suas feições principais, a cidade ficou como Justiniano a deixou, até o momento em que foi tomada pelos turcos em 1453.

     Que a cidade apresentava uma visão espetacular nós o sabemos pelos comentários de viajantes de épocas posteriores. “Oh que esplêndida cidade”, exclamaria Foucher de Chartres no século XI, “quanta imponência, quanta beleza, quantos mosteiros, quantos palácios erguidos pelo mero prazer do trabalho em suas ruas e avenidas, quantas obras de arte maravilhosas de contemplar; seria cansativo dizer da abundância de todas as coisas boas; do ouro e da prata, dos trajes dos mais variados estilos, e de tantas relíquias sagradas. A todo momento entram navios neste porto, de modo que não há nada de que os homens necessitam que não seja trazido para cá”. Naquele período o Corno de Ouro era o porto das barcas dos dálmatas ou croatas, dos caíques vindos das ilhas gregas, das altas galés de Gênova, Veneza ou Amalfi, dos leves faluchos do leste, e das enormes dromundas da frota imperial bizantina, equipadas com tubos para projetar o misterioso “fogo grego”, arma secreta dos bizantinos.

     Dentro das grandes muralhas que circundavam a cidade havia algumas avenidas e um denso labirinto de ruas estreitas. Muitas dessas ruelas não podiam acomodar uma carroça de bom tamanho, e assim as mercadorias eram geralmente transportadas em camelos, muares, ou nas costas dos homens. Era comum ver-se um homem – ou mesmo uma criança – com o dorso em posição horizontal para suportar uma carga pesada, amarrada nas costas. Era muitas vezes mais barato e mais simples contratar um homem para transportar alguma coisa do que arranjar um animal para fazer o serviço. As ruas também estavam cheias dos pregões dos mascates oferecendo artigos os mais diversos, e de mercadores que iam de casa em casa vendendo pão, verduras e peixe fresco.

     Constantinopla não tinha quarteirões residenciais elegantes e isolados. As casas dos ricos eram quase sempre ladeadas por modestas moradias da classe média ou mesmo pelos telheiros dos pobres. Todavia, aos ricos era possível preservar certo grau de isolamento porque suas casas apresentavam à rua um muro de pedra quase sem abertura, enquanto os quartos davam para um pátio interno. O pátio tinha invariavelmente uma fonte e era quase sempre esmeradamente ajardinado. Mantidos por numerosos escravos e criados, os interiores dessas mansões ostentavam um esplendor de mobiliário chapeado de ouro com incrustações de marfim, tetos dourados e vestíbulos sustentados por pilares. Os cidadãos moderadamente prósperos em geral moravam em sobrados de madeira com sacadas de onde as matronas e as moças enclausuradas podiam ver o movimento da rua. Os pobres apinhavam-se em quartos de porões ou nos blocos de cortiços espalhados pela cidade. Como observou maliciosamente outro visitante francês, Odon de Deuil, “os ricos cobrem as vias públicas com suas construções e deixam os esgotos e os lugares escuros para os pobres e forasteiros. Aí cometem-se assassinatos, roubos e todos os crimes que infestam a escuridão...”

     Contudo, mesmo para os pobres o abastecimento de água – tão importante num clima mediterrâneo – era abundante. Canalizada das colinas circundantes para a cidade, através de aquedutos, a água era armazenada em muitas cisternas abertas e cobertas. Daí era encanada para fontes localizadas em esquinas de ruas e nas praças públicas, onde todos podiam servir-se dela, de graça. Os despejos dos esgotos e as águas servidas eram levados das casas para o mar por meio de um complicado sistema de drenagem subterrânea. A cidade possuía muitos banheiros públicos, abertos para homens e mulheres em horários diferentes; cuidados médicos e hospitalares eram proporcionados pelo governo e pela Igreja àqueles que não podiam pagar. Apesar dessas precauções, as enfermidades propagavam-se rapidamente e cobravam sempre um terrível tributo.

     A principal rua da cidade, que se estendia das muralhas do oeste quase até aos portões do Palácio Imperial, chamava-se Mesê, ou Rua do Meio. Orlada de pórticos colunários e interrompida por praças monumentais que continham as estátuas de imperadores e imperatrizes, era a estrada real. Todas as procissões imperiais mais importantes seguiam a Mesê. Nela também se achavam muitas das lojas elegantes da cidade, repletas de produtos das indústrias de luxo de Bizâncio: sedas e brocados, artigos de cobre e de ouro, couro e vidro, jóias e relicários. No ponto em que a rua terminava, perto do Palácio Imperial, os perfumistas tinham suas tendas, de modo que, no dizer de um escritor da época, “os doces perfumes podem elevar-se no ar (...) e ao mesmo tempo impregnar o vestíbulo do Palácio Imperial”.

     Era também nessa rua que se podia melhor observar um pouco da variedade da população da cidade, que se calcula tivesse uns 600.000 habitantes no tempo de Justiniano. Os moradores formavam um agrupamento inteiramente cosmopolita. Havia naturais da Capadócia e da Frígia, búlgaros de cabelo à escovinha e persas de turbante, judeus da Palestina e sírios de Damasco, ilírios, armênios e godos. Por volta do século IX poucos residentes podiam ufanar-se de pura linhagem grega ou romana; a maioria descendia de um amálgama dos muitos povos que o Império Bizantino abarcava. Os critérios de cidadania eram simplesmente o uso do grego na fala diária e a filiação à Igreja Ortodoxa.

     Mas, à parte a base cosmopolita de seus moradores, a cidade, como próspero porto marítimo e capital do mais vasto império do mundo, atraía de muito longe todos os tipos de visitantes. Da Britânia, da Espanha e da Gália, da Escandinávia e da Rússia, da Pérsia, da Arábia e da África vinha uma multidão de mercadores, marujos, diplomatas e viajantes. Misturando-se nas ruas com os bizantinos, cujas vestes eram simples, esses visitantes de trajes exóticos – mantos de cores brilhantes, peles, estranhos penteados – e de línguas desconhecidas, despertavam considerável atração. Também se podiam ver nas ruas os inúmeros escravos, amiúde prisioneiros capturados na guerra, que executavam os serviços domésticos em Bizâncio.

     De quando em quando, na rua principal, um dignitário da corte, envergando um traje de seda com brocados, passava a cavalo, ou uma dama abastada passava reclinada numa carruagem esplendorosamente ornamentada e puxada por mulas. Muito provavelmente estava ela a caminho dos Banhos de Zeuxipo, onde as mulheres elegantes da sociedade se reuniam para exibir vestidos novos e jóias, e comentar as últimas novidades. Nos feriados nacionais e nas celebrações religiosas, a cidade inteira acorria a assistir à grandiosa procissão do imperador e sua corte, acompanhados pelo patriarca e seu séquito. Muitos, na multidão de espectadores, podiam ser reconhecidos pelo tipo de roupa que vestiam: os filósofos geralmente usavam cinzento, os médicos azul, com o cabelo preso numa rede.

     A vida da cidade concentrava-se em torno de três grandes estruturas ou grupos de edifícios: o Hipódromo, o Sagrado Palácio Imperial e a Igreja de Hagia Sophia. Representavam os três principais componentes do mundo bizantino: o povo, a autoridade imperial e a religião. Apropriadamente, localizavam-se perto um do outro no planalto central e nas encostas meridionais e orientais do promontório em que se erguia a cidade. Aí fechavam por três lados a principal praça pública, o Augustacum, amplo pátio retangular calçado com lajes de mármore escuro e rodeado por uma colunata. Aí também um futuro imperador era levantado num escudo e aclamado pelos nobres e pela plebe ao ser conduzido à coroação em Hagia Sophia. Aí ainda assomava uma enorme estátua eqüestre de bronze do Imperador Justiniano, envolto na chamada armadura de Aquiles, usando um elmo emplumado e sustentando na mão esquerda um globo, o que significava, conforme escreveu Procópio, que toda a terra e o mar estavam subordinados a ele.

     O Hipódromo, depois de ampliado por Constantino, tinha lugar para cerca de 60.000 espectadores: media então 430 m de comprimento por cerca de 160 m de largura. Pelo centro passava a spina – a espinha dorsal – uma baixa barreira de pedra com três cones em cada extremidade, que assinalavam os momentos decisivos da corrida. Em toda a extensão da crista da spina assentavam obras de arte antiga. Uma dessas era um alto obelisco monolítico de pórfiro, que viera do Templo de Karnak, no Egito. Posto nessa posição no Hipódromo em 390, ainda lá se encontra sobre uma base ornada com um baixo-relevo que mostra o imperador e sua família no camarote real durante os jogos.

     Também ainda de pé está o chamado obelisco de Constantino VII Porfirogeneta. Revestido outrora de placas de bronze adornadas de baixos-relevos, é hoje apenas uma alta e fina coluna de alvenaria. Um terceiro monumento que ornamentava a spina e do qual ainda resta alguma coisa é a coluna serpentina de bronze, trazida de Delfos por Constantino, o Grande. Originalmente consistia em três serpentes entrelaçadas cujas cabeças sustentavam uma trípode de ouro. Hoje restam apenas uns seis metros e meio do que era provavelmente uma coluna de nove metros.

     Na extremidade nordeste do Hipódromo, que se estendia num flanco da praça do Augustaeum, ficava o camarote imperial, o kathisma. Dali o imperador e os altos dignitários da corte (embora não a imperatriz, que tinha um lugar especial numa das igrejas do palácio dando vista para o Hipódromo) assistiam às corridas e aos jogos públicos, e presidiam à execução de um criminoso ou à comemoração oficial de uma vitória das armas bizantinas em alguma remota fronteira do Império.

     Flanqueando o Hipódromo a leste e abrindo-se também para a praça do Augustaeum, localizava-se o Sagrado Palácio Imperial, a residência do imperador. Ostentava na entrada um vestíbulo monumental, conhecido como o Saguão de Bronze – o Chalkê – porque o eirado e as portas eram de bronze dourado. Os forros, reconstruídos por Justiniano e restaurados no século IX, estavam recobertos de mosaicos, alguns dos quais mostravam Belisário, o grande general de Justiniano, regressando vitoriosamente a Constantinopla. As paredes e pisos eram revestidos de vistosos mármores: esmeralda, vermelho e branco, entrecortados de ondulantes linhas azuis.

     Atrás do Chalkê surgia o palácio propriamente dito, vasto e tortuoso, a espraiar-se para o sul e sudoeste, descendo as encostas arborizadas do promontório até o mar de Mármara e o Bósforo. Compreendia vários grupos de edifícios entremeados de jardins, terraços, pavilhões de verão isolados, igrejas, fontes, um estádio particular, uma escola de equitação em recinto fechado, um campo de pólo, piscinas de natação e tanques de nenúfares. Havia também despensas, cozinhas, estábulos, dependências de criados, salas da guarda, calabouços.

     Um dos edifícios mais surpreendentes era o Chrysotriclinos, o salão de ouro. Era uma das salas do trono do imperador. O trono achava-se numa abside; acima dele via-se uma imagem de Cristo entronizado, e à frente pendia uma cortina de seda tecida com ouro e ornamentada com pedras preciosas. Em outros pontos do salão havia outros tronos imperiais, uma mesa de ouro e prata para banquetes, canapés, baixelas lavradas, coroas, candelabros, cruzes e vestimentas imperiais.

     Outro palácio tinha o nome de Magnaura. Nele se encontrava o famoso “trono de Salomão”. Situado no topo de seis degraus, era este sólio ladeado por leões de ouro e árvores de bronze dourado, em cujos galhos pousavam pássaros esmaltados e recamados de pedras preciosas.

     O Palácio Novo, construído no século IX e cujo salão principal tinha a forma de uma basílica, possuía uma colunata suntuosa em que oito colunas de mármore serpentino se alternavam com oito de ônix vermelho. A alcova imperial era pavimentada com faixas de mármore irradiadas de um medalhão central que emoldurava um pavão em mosaico. Quatro águias em mosaico abriam as asas ao pé das quatro paredes. As metades inferiores das paredes recobriam-se de placas de vidro multicor e tremeluziam como um campo de flores. Acima dos lambris e em contraste com um fundo de ouro sobressaíam retratos em mosaico de membros da família imperial, as mãos erguidas para a brilhante cruz verde do teto.

     Entre todos esses edifícios e o quebra-mar no sopé da colina, estendiam-se os jardins imperiais. Aqui havia alamedas e fontes sombreadas; de uma destas o vinho jorrava, através de um ananás dourado, numa bacia debruada de prata e cheia de amêndoas e pistácios. Íbis, pavões e faisões vagueavam entre arbustos e flores. Aqui se achava a alcova de pórfiro – ou púrpura – reservada para o nascimento das crianças imperiais, donde proveio o título de “nascido na púrpura” (Porphyrogenitus), conferido aos filhos da família governante. Aqui também se via a monumental escadaria que descia ao ancoradouro privado do imperador, o Boucoleon, onde os barcos reais de excursão e de recreio atracavam em cais de mármore ornamentados com esculturas.

     Mas nem mesmo todos os multiformes esplendores dos palácios, nenhum dos quais perdurou, excediam as magnificências da imponente igreja de Hagia Sophia, reconstruída por Justiniano. Ela sobrevive, servindo hoje de museu, como uma das supremas expressões artísticas do mundo cristão. “Glória a Deus que me julgou digno de concluir esta obra. Salomão, eu te suplantei!” Assim se afirma ter Justiniano exclamado ao contemplar pela primeira vez a imensa majestade do edifício terminado. Celebrou a consagração do templo em 537, com um banquete em que 6.000 carneiros, 1.000 bois, 1.000 porcos, 1.000 galinhas e 500 veados foram assados para o deleite da corte e também da plebe.

     Não se poupou despesa alguma para fazer dessa igreja uma admirável interação de pedra, mármore, luz, cor e espaço. Nenhuma descrição verbal poderá dar mais do que uma pálida idéia da igreja. Possivelmente, o que mais impressiona o visitante é a natureza fluida da arquitetura. Isto se conseguiu mediante a seleção das lajes de mármore que formam o piso e revestem as paredes. Cada laje tem um desenho próprio de veio, um tom e um matiz próprios, e, no entanto foi cortada uma e outra vez até poder harmonizar-se com a vizinha. Por isso, as pedras aparecem como campos de cor alternada, faixas móveis de azul esfumaçado, verde escurecido ou vermelho cálido. Renques de pilares – pórfiro, mármore serpentino verde – formam a nave e sustêm os pequenos arcos que suportam as galerias. Os arcos maiores são encimados por meias-cúpulas, e acima delas avulta a grande cúpula – a cúpula de todas as cúpulas do mundo bizantino. Vista de baixo, dá a impressão de pairar em imponderável indeterminação; como disse Procópio, “não parece repousar em sólida alvenaria, mas cobrir o espaço embaixo como se estivesse suspensa no céu”. Esse efeito é acentuado pela coroa de janelas acima de sua cornija interior, o que faz com que as bases das poderosas nervuras que sustentam a cúpula de Hagia Sophia pareçam menos substanciais; na realidade as nervuras tornam-se mais delicadas à medida que se alteiam até à coroa da cúpula.

     A luz é um dos elementos essenciais que contribuem para o efeito global da igreja. Derramando-se da coroa de janelas da cúpula, transbordando das lunetas nas meias-cúpulas, impregna de fulgor a nave central. À noite os bizantinos davam continuidade a esse jogo de luz por meio de lâmpadas e velas. Milhares de lâmpadas pendiam da cúpula e dos tetos, presas em longas e retorcidas correntes de latão batido, projetando seu clarão no bruxuleante mosaico dourado de abóbadas e arcos, oscilando suavemente sobre as delicadas superfícies do mármore colorido e transformando toda a igreja num deslumbrante facho de luz. Um poeta daqueles tempos, Paulo, o Silenciário, descreve o esplendor da igreja à noite num longo poema escrito para a consagração do templo:

     “Assim, pelos espaços da imponente igreja cruzam-se raios de luz, expulsando nuvens de inquietação e enchendo o espírito de alegria. A luz sagrada a todos anima; até o marujo que conduz seu veleiro sobre as ondas, deixando atrás de si os vagalhões hostis do Ponto enfurecido, e seguindo um curso sinuoso em meio a angras e rochedos, o coração temeroso ante os perigos de suas peregrinações noturnas – talvez tenha deixado o Egeu e guie seu barco de encontro às correntes adversas do Helesponto, aguardando com o estai do traquete retesado a investida de uma tormenta vinda da África – não orienta seu carregado veleiro pela luz de Cinosura, ou pela circulante Ursa, mas pela divina luz desta igreja. No entanto, ela não apenas norteia o mercante à noite, como os raios de Faros na costa da África; também indica o caminho que conduz ao Deus vivo”.


     Hagia Sophia era a glória culminante da cidade que era a capital, e o coração, do mundo bizantino, a “rainha das cidades”. Inquieta mistura de Grécia e Roma, de Europa e Ásia, metrópole do comércio e manancial de cultura, atraiu a si judeus e muçulmanos, russos e italianos, espanhóis e egípcios. Sua arquitetura influenciou a arquitetura eclesiástica de outras cidades históricas: Ravena, Veneza, Kiev, Moscou. Acima de tudo, foi o centro do qual se desdobrou a história bizantina – crônica de esplendor e corrupção, requinte e fantasias, ordem e anarquia, de grandes vitórias e vaidades mesquinhas – história que influiu profundamente na história do mundo civilizado.

     Hagia Sophia, também conhecida como Igreja de Santa Sofia, passou posteriormente por diversas reparações, a primeira delas em 558, quando em conseqüência de um terremoto a torre principal ruiu, sendo restaurada com o aumento de altura. Em 1453, quando da conquista de Constantinopla pelos turcos, foi transformada em mesquita: em cada um dos seus ângulos externos se construíram minaretes, tendo o interior do templo sido adaptado às necessidades do culto muçulmano; as figuras humanas de seus mosaicos desapareceram sob uma camada de estuque. Em 1847-1848 foi completamente restaurada pelo arquiteto Fossati, e em 1926 o domo, que estava em péssimo estado, foi reforçado pelo exterior e teve seu telhado substituído. Hagia Sophia é atualmente um dos mais belos monumentos arquitetônicos do mundo, com os seus quase quinze séculos de tradição e glórias.



A CIDADE DE CONSTANTINO é o segundo capítulo, em um total de oito, do livro BIZÂNCIO, de Philip Sherrard, parte integrante da coleção BIBLIOTECA DE HISTÓRIA UNIVERSAL.
Os demais são NOVA ROMA, CRÔNICA DE UM IMPÉRIO, UM IMPERADOR ABAIXO DE DEUS, A INSTITUIÇÃO SAGRADA, A VIDA DIÁRIA EM BIZÂNCIO, UMA CULTURA FULGURANTE E OS SÉCULOS DERRADEIROS.
BIBLIOTECA DA HISTÓRIA UNIVERSAL é uma edição de TIME INC.
Original English language edition, copyright 1966
Direitos reservados para a lingual portuguesa pela
LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A., Rio de Janeiro
Byzantiun, título original da obra, copyright 1970
O AUTOR: Philip Sherrard, eminente autoridade inglesa em Império Bizantino, doutorou-se na Universidade de Londres em literatura grega moderna e obteve uma bolsa de pesquisa na Universidade de Oxford. Entre suas obras principais destacam-se Athos, the Mountain of Silence; Constantinople: Iconography of a Sacred City; e The Greek East and the Latin West. Viveu com sua esposa grega em Atenas, onde exerceu a função de Diretor-Assistente da Escola Britânica de Arqueologia.
O EDITOR CONSULTIVO: Leonard Krieger, professor de História na Universidade de Columbia, já foi professor de História em Yale; Dr. Krieger é autor de The German Idea of Freedem e The Politics of Discretion, e co-autor da History, escrita em colaboração com John Higham e Felix Gilbert.
A tradução para a língua portuguesa é de José Laurênio de Melo.

    

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