sexta-feira, 30 de setembro de 2011

AVENTUREIROS DO OCEANO

“Isto é claro – diziam os mareantes – que depois deste Cabo não há aí gente nem povoação alguma (...) e as correntes são tamanhas, que navio que lá passe, jamais nunca poderá tornar”. Assim o cronista Gomes Eanes Zurara descreveu a apreensão com que os marujos, no início da década de 1430, se aproximavam dos limites meridionais do mundo deles: o cabo Bojador, um monte de areia e pedra açoitado pelos ventos, no extremo oeste da África, na região hoje conhecida como Saara Ocidental. Alguns viajantes europeus já haviam antes se aventurado para o leste, mas nunca para o sul ou oeste. Nessas direções, encontravam-se terras e mares desconhecidos e, diziam alguns, incognoscíveis.

Contudo, não muito mais do que um século depois, os navegadores europeus já teriam visto e mapeado uma parte substancial do mundo, tal como o conhecemos hoje. Numa série de viagens pioneiras, os exploradores contornaram com seus pequenos navios de madeira as costas da África, atravessaram para o Extremo Oriente e exploraram o contorno de boa parte das Américas. Descobriram, pagando um custo tremendo de vidas humanas, as vastidões inimaginadas do Pacífico e completaram a volta ao mundo. Os caminhos marítimos que abriram tornaram-se rotas de comércio e também de saque, terminando para sempre o isolamento das principais civilizações do planeta.

As viagens de exploração dos navegadores deram a tônica a um século de horizontes em expansão, especialmente para os europeus. Na Itália, o século XV assistiu ao florescimento da arte e do conhecimento, movimento que se notabilizou com o nome de Renascença e colocou o homem – não mais Deus -, como o centro das preocupações humanas. E no resto da Europa surgiram sinais de que a velha ordem feudal, sustentada pela igreja, estava desmoronando, ameaçada por homens e mulheres que, em outros tempos, se contentariam em aceitar docilmente seu destino. Esse novo clima foi vivido com mais intensidade na Boêmia, onde camponeses rebeldes enfrentaram a força combinada do sacro imperador romano e do papado, saindo-se bem durante algum tempo.

Mas o século também testemunhou um golpe terrível para a Europa cristã: a queda de Constantinopla, antiga capital do Império Bizantino, em mãos dos turcos otomanos. No entanto, havia muitas partes do mundo que ainda não tinham sido atingidas pela nova energia da Europa: na Índia e nas Américas, impérios poderosos continuavam a prosperar na calmaria que prenunciava a tempestade iminente – a irrupção imprevista dos europeus.

São muitas as razões para as grandes descobertas do século XV terem sido obra dos europeus. Chineses e árabes eram bons navegadores – em alguns aspectos, estavam mais avançados do que os europeus – e tinham riquezas suficientes para financiar grandes viagens para longe das águas costeiras, atravessando o oceano aberto. Na verdade, a China promovera uma série de extensas viagens exploratórias no início do século, mas decidira depois, por motivos políticos, suspender a empreitada. Seria a peculiar combinação européia de devoção religiosa, ganância obstinada e perícia marítima que daria a mistura de motivação e capacidade técnica necessária à realização das viagens. Essas qualidades eram comuns a várias nações européias, mas devido a fatores geográficos e históricos adicionais, um país em particular destacou-se como pioneiro das rotas oceânicas: Portugal.

No início do século XV, a Europa oferecia uma boa base para a expansão. Comercialmente, tinha motivos óbvios para buscar novas rotas comerciais. Embora fosse, em larga medida, um mundo auto contido, seu apetite por certos artigos de luxo que vinham do Oriente desde o tempo dos romanos fazia com que a demanda excedesse em muito a oferta. Por um período de quase um século, a partir de 1250, vários exploradores europeus tinham atravessado por terra a Ásia central – na época, unificada sob domínio mongol – em busca de uma relação direta com os fornecedores; o mais conhecido desses viajantes foi o mercador veneziano Marco Polo. Em meados do século XIV, porém, a rota terrestre já estava interrompida. No Oriente, o império mongol, que garantia a paz e assim tornava possível essas jornadas, estava desbaratado. E nos limites ocidentais da Ásia, os turcos otomanos, defensores ferozes do islã, tinham construído uma nação expansionista e virulentamente anticristã sobre as ruínas do Império Bizantino. Os velhos canais de comércio que ligavam a Ásia ao Oriente Médio e às costas orientais do Mediterrâneo estavam firmemente nas mãos de intermediários mulçumanos.

Embora o tráfico asiático fosse bem pequeno em comparação com os carregamentos de grãos, lã e outras mercadorias essenciais que movimentavam o volumoso comércio europeu, ele sempre estivera associado a grandes lucros. Havia muito dinheiro a ser ganho com os artigos de luxo do Oriente: sedas da Pérsia e da China, algodão da Índia, pedras preciosas as mais variadas – diamantes e esmeraldas indianas, rubis da Birmânia, topázios, safiras e granadas do Ceilão e, acima de tudo, especiarias.

As especiarias desempenharam um papel especial na vida econômica, política e culinária da Europa. Os europeus eram carnívoros de preferência, mas a oferta de carne era sazonal. A escassez de forragem no inverno obrigava a matar muito gado no outono. A carne se deteriorava logo, mesmo quando preservada com sal; os temperos ajudavam a torná-la mais palatável. Além disso, muitas especiarias tinham fama de serem medicinais, sendo que algumas inspiravam uma reverência quase mística. Embora a variedade de artigos oferecidos pelos mercadores de especiarias fosse enorme – um guia popular listava 288 substâncias diferentes, incluindo açúcar, ceras, gomas, cosméticos, perfumes, drogas e corantes -, os mais procurados eram pimenta da Índia, canela do Ceilão e itens exóticos como noz-moscada, cravo e macis, que vinham de umas poucas ilhas das Molucas, na atual Indonésia. Em meados do século XV, a Europa tinha uma população crescente e um mercado em expansão para muitas mercadorias, inclusive uma demanda quase insaciável de especiarias por parte de quem tinha condições de pagar por elas.

Tradicionalmente, esses produtos eram trazidos por via terrestre por animais de carga até a margem do Mediterrâneo e do mar Negro. À medida que as mudanças políticas tornaram essas rotas precárias, as mercadorias passaram a ser transportadas por barco: em juncos chineses até a Malásia e dali, em navios árabes, até a Índia, África Oriental, Pérsia e Arábia; através do mar Vermelho e do golfo Pérsico, seguiam seu caminho e, após atravessar um pequeno trecho terrestre, chegavam aos grandes portos do Mediterrâneo. Só então caíam nas mãos dos europeus, através dos mercadores de Gênova e Veneza, que dominavam esse comércio marítimo havia quinhentos anos. A cada etapa, o preço subia. A pimenta comprada por menos de três ducados na Índia, custava 68 no Cairo e cerca do dobro disso em Veneza – um aumento de quase cinqüenta vezes. Era óbvio que, se pudesse negociar diretamente com a fonte das especiarias – navegando até lá, por exemplo – qualquer mercador faria fortuna, bem como a pessoa ou instituição que financiasse a viagem.

Tal idéia, no entanto, era muito vaga no início do século XV, quando os limites do conhecimento geográfico faziam com que uma aventura dessas fosse um salto no desconhecido. Para os poucos estudiosos europeus interessados no assunto, o mundo para além do mar Negro, ultrapassando o deserto do Saara e o oceano Atlântico, era um grande vazio. Aceitava-se desde os tempos clássicos que a Terra era esférica. Mas o que continha na verdade era objeto de mitos e especulações, baseados nas idéias herdadas de Aristóteles e do mundo antigo, tal como refletidas pelo prisma da ortodoxia cristã. Os mapas medievais do mundo mostravam um disco com Jerusalém no centro; irradiando-se dela, viam-se representações fantasiosas dos três continentes conhecidos, com o Jardim do Éden e outros locais bíblicos desenhados em determinados pontos.

Informações mais exatas, obtidas pela observação direta, estavam disponíveis: o livro que descrevia as viagens de Marco Polo ao Oriente tinha sido muito popular. Mas o próprio sucesso dele dera origem a imitações apócrifas, baseadas em nada mais substancial do que a imaginação de seus autores, e o público leitor não tinha maneira de separar o que era verdade do que não era. Um livro de pura fantasia, como o amplamente traduzido Viagens, de sir John Mandeville, era tão digno de crédito quanto a narrativa sóbria de Marco Polo, apesar dos relatos artificiais de Mandeville sobre gente sem cabeça, com olhos e boca nos ombros, e homens com as orelhas caindo até os joelhos. Os escritos do grande viajante árabe Ibn Battuta, que fora de seu Marrocos natal, via Índia, até o Extremo Oriente em meados do século XIV, eram totalmente desconhecidos na Europa. Mas os árabes tampouco haviam explorado o Atlântico. Para eles, da mesma forma que para os europeus, o oceano além do estreito de Gibraltar era um “verde mar de escuridão”, um mundo inavegável de pesadelo que levaria a zonas frias o suficiente para congelar o sangue, ou quentes a ponto de fervê-lo. Mas havia uma fonte recente de informação mais prática. Em 1406, ou pouco depois, apareceu um livro que deu início a uma revolução no conhecimento e nas atitudes: a tradução para o latim, língua usada por todos os europeus cultos, da Geografia escrita por Claudio Ptolomeu durante o século II da era cristã. Seu texto, que sumariava o conhecimento da Terra no auge do Império Romano, continha um dicionário de lugares conhecidos. Descrevia também um sistema de referências baseado em um globo dividido em uma grade de dois conjuntos de círculos de 360 graus – as hoje familiares coordenadas de latitude e longitude. Um mapa do mundo ptolemaico acompanhava o texto, mostrando os continentes conhecidos da Europa, Ásia e África com alguma acuidade, embora se tornassem cada vez mais distorcidos à medida que se distanciavam da região mediterrânea que Ptolomeu, um grego que vivia em Alexandria, no norte da África, conhecia diretamente. Seu erro mais importante era mostrar a África unida no sul a um vasto continente que cercava o oceano Índico e tocava a Ásia. Tratava-se de um reflexo da teoria aristotélica segundo a qual o mundo estaria constituído por pelo menos 51 por cento de terra para poder ficar livre do oceano circundante e de que a massa de terra setentrional tinha de ser equilibrada por um continente de tamanho igual no hemisfério meridional.

Apesar de seus erros, o mapa de Ptolomeu representava um grande progresso sobre qualquer outro existente. Continha uma riqueza de detalhes e resumia a sabedoria e o conhecimento do mundo clássico numa época em que a Europa começava a redescobrir as literaturas grega e romana. Folheando-o, os exploradores em potencial não só viam o resto do mundo como acessível, mas também tinham um modelo com o qual comparar suas descobertas.


Portugal foi o primeiro país em que o novo espírito especulativo produziu resultados práticos. De muitas formas, essa faixa costeira onde viviam menos de um milhão de habitantes, em sua maioria camponeses pobres, era um líder improvável de empreendimentos comerciais e geográficos. Mas possuía algumas vantagens. Sua localização, na ponta mais extrema do continente europeu, dera a seus marinheiros experiência de navegação no oceano Atlântico, bem como no Mediterrâneo. Negociando vinho, azeite e frutas secas com capitães do mar do norte da Europa, os navegadores portugueses estavam longe de sofrer ameaças dos mercadores italianos que dominavam o Mediterrâneo oriental.

Foram vários os motivos que levaram os governantes e navegantes desse pequeno país a realizar grandes descobrimentos. O desejo de conhecimento desempenhou indiscutivelmente um papel. Mais importante, porém, foi a busca de riqueza através do comércio, embora isso, por sua vez, estivesse mesclado com um propósito mais nobre. Como dogma inquestionado, reis e marinheiros acreditavam em seu dever sagrado de procurar seus correligionários no estrangeiro e levar a palavra de Deus para os pagãos de terras distantes. Quando Vasco da Gama chegou pela primeira vez à Índia, perguntaram a um membro de sua tripulação que diabos estavam fazendo lá. Ele respondeu: “Viemos em busca de cristãos e especiarias”.

Os portugueses traziam em sua missão uma ambição afoita que se adequava perfeitamente aos riscos tremendos envolvidos pelas viagens de exploração. Eram grandes individualistas, ansiosos para deixar sua marca no palco do mundo. A epopéia portuguesa de Os Lusíadas, escrita no século XVI por Luís de Camões para celebrar as realizações de seus compatriotas, relembra o espírito jactante que acompanhou os feitos dos navegantes lusos:

Em perigos e guerras esforçados,

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram; (...)

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta

Eram homens de uma nação orgulhosa, que apenas recentemente alcançara a independência. As origens de Portugal vinham de 1139, quando um governante cristão se declarou rei pela primeira vez, após uma vitória sobre os mouros que dominavam então a maior parte da península ibérica. Mas foi só em 1249 que os últimos mouros foram expulsos e a nação portuguesa se estabeleceu aproximadamente nos atuais limites. Mesmo então, continuava sob ameaça do reino cristão de Castela. Em 1385, uma vitória decisiva na batalha de Aljubarrota confirmou a existência independente do país, embora ocorressem escaramuças por mais alguns anos. Conquistada a independência, a localização geográfica de Portugal, de frente para o Atlântico e com as fronteiras terrestres envolvidas pelo reino de Castela, juntou-se ao fervor patriótico e cristão, para fazer com que a atenção de seus habitantes se voltasse para o território muçulmano no norte da África e para o mundo desconhecido.

O movimento para fora foi estimulado por um homem: o infante dom Henrique, irmão do rei de Portugal, que financiou e inspirou os exploradores portugueses entre 1419 e sua morte, em 1460. O cronista Gomes Eanes de Zurara disse a seu respeito: “Fortaleza de coração e agudeza de engenho foram em ele mui excelente grau. Sem comparação, foi cubiçoso de acabar grandes e altos feitos”. Para essa ambição, o biógrafo ofereceu várias razões. Uma era a simples curiosidade de descobrir o que havia adiante do cabo Bojador. Outra era o desejo de determinar a extensão exata dos domínios muçulmanos na África e saber se havia terras habitadas por cristãos ou outros povos de disposição amigável para além deles; se fosse assim, poderiam estabelecer laços comerciais ou até unirem-se a eles numa guerra santa contra o infiel, “para acrescentar em a santa fé de Nosso Senhor Jesus Cristo e trazer a ela todalas almas que se quisessem salvar”.

Esse último elemento do pensamento do infante era, sem dúvida, influenciado por uma lenda popular da época: a crença de que um poderoso padre-rei chamado Preste (uma corruptela da palavra “presbítero”) João governava um reino cristão perdido em algum lugar para além das terras muçulmanas. Zurara, refletindo as superstições da época, acrescentou outro motivo para explicar as preocupações de Henrique: o horóscopo do príncipe previa “que este senhor se trabalhasse de conquistas altas e fortes, especialmente de buscar as coisas que eram cobertas aos outros homens”, e ele mostrava-se ansioso para cumprir o que estava escrito nas estrelas.

A personalidade do homem que, mais do que qualquer outro, colocou em movimento o processo dos descobrimentos era rica em contradições. Apesar do epíteto de “o Navegador”, que ganhou dos historiadores, dom Henrique jamais participou pessoalmente de qualquer expedição exploradora. Talvez tenha fundado uma escola de navegação em Sagres, no sul de Portugal, mas não existem provas disso. Pessoalmente, era um asceta: nunca se casou e sempre usou uma áspera camisa de silício sob as roupas principescas, como penitência. Seu retrato sugere uma figura dura e reservada, mais apropriada a dar ordens do que a inspirar homens. Em sua encarniçada hostilidade aos muçulmanos, mostrava um zelo de cruzado mais típico do século XII do que seu próprio tempo.

Ainda jovem, Henrique conseguiu tanto o poder como a oportunidade para expressar suas ambições. Em 1411, Portugal finalmente fez as pazes com a vizinha Castela. Com um exército de cavaleiros agora ocioso, o país voltou-se para seus velhos inimigos, os mouros, que ainda estavam firmemente entrincheirados no califado de Granada, diante de seus limites a sudeste, bem do outro lado do estreito de Gibraltar, na costa africana. O rei português dom João I escolheu como alvo Ceuta, um rico porto que guardava o lado africano do estreito, e delegou a Henrique, seu terceiro filho, a tarefa de organizar a construção dos navios e o recrutamento das tripulações necessárias para a expedição. Dessa forma, o jovem príncipe ganhou experiência na atividade de organizar empreendimentos marítimos de larga escala. Em 1415, quando a armada finalmente atacou, o porto foi derrotado pelos duzentos barcos portugueses em um só dia.

Henrique acompanhou a frota e sua bravura em ação valeu-lhe o governo do Algarve, a província mais meridional de Portugal. Em 1420, aos 26 anos de idade, tornou-se grão-mestre da Ordem de Cristo. Foi então como governador e cruzado que pôs em andamento seu plano grandioso: não satisfeito com a conquista de Ceuta e o enfrentamento dos mouros no norte da África, decidiu também flanqueá-los, abrindo uma rota marítima para a África subsaariana.

Para atingir seus objetivos, Henrique precisava de navios de alto-mar, mapas corretos e homens treinados em navegação oceânica. A princípio, tudo isso estava em falta. Simplesmente não havia tradição européia de navegação em mar aberto. Até então, os navegadores eram apenas pilotos que avançavam ao longo dos litorais, indo de um cabo a outro baseados nas informações que o vigia podia captar do alto do mastro. Para ajudá-lo nessa tarefa, o navegador podia consultar portulanos, mapas que traçavam as costas do norte da Europa e do Mediterrâneo em detalhes e davam rumos magnéticos a serem seguidos de um ponto a outro. (Sabia-se há pelo menos quatro séculos que uma agulha magnetizada, girando livremente, apontava sempre para o norte magnético).

Abandonar a vista do litoral, particularmente nas águas tempestuosas do Atlântico, era cortejar o perigo. Ao deixar de lado os marcos familiares, a navegação caía na pura conjetura. Era teoricamente possível ter uma idéia da posição norte-sul de uma embarcação medindo o ângulo da estrela Polar ou do Sol de meio-dia com o horizonte. Mas o astrolábio, instrumento usado para fazer esse cálculo, era um equipamento bastante complexo que exigia muita perícia para fornecer dados confiáveis. Os ângulos mudavam levemente a cada dia, tornando necessário o uso de cartas, e era difícil conseguir uma medida precisa a bordo de um navio balouçante, mesmo com tempo calmo. Poucos capitães se preocupavam com isso. Na melhor das hipóteses, usavam a mão para medir o ângulo: dois graus, para um dedo acima do horizonte, oito, para um pulso, dezoito, para a mão inteira.

Mesmo com a localização norte-sul, não havia maneira de descobrir a longitude – posição leste-oeste – pelo sol ou pelas estrelas. A leitura da longitude só pode ser feita comparando-se a hora local com a hora de algum ponto conhecido, o que, por sua vez, exige um relógio preciso. Não existia um cronômetro assim no século XV. O melhor que um piloto podia fazer era manter um registro cuidadoso de seu avanço, estimando a velocidade com que seu barco passava por objetos flutuantes e as distâncias navegadas, levando ainda em consideração os efeitos de correntes e ventos. (A técnica de alto-mar de deixar uma corda com nós ser puxada para fora do barco pela pressão da água e medir assim a velocidade em “nós” só surgiria no século seguinte). No século XV, a navegação era um negócio tosco, no qual a experiência era tudo.

Os navios da época também não eram adequados a viagens oceânicas, pois tinham sido desenvolvidos para suprir as necessidades da navegação costeira do Mediterrâneo e do Atlântico. Cada uma dessas regiões possuía uma tradição própria. No Mediterrâneo, além das galeras leves de guerra, ainda impulsionadas por remos, como nos dias da Roma antiga, dois tipos de barcos à vela eram usados: enormes navios mercantes de até mil toneladas e embarcações menores, de dois ou três mastros, de cerca de 250 toneladas, equipadas com remos para ajudar nas manobras de atracação e desatracação. Ambos eram difíceis de manobrar. As velas redondas, com cabos frouxos como se usava na época, forçavam os marinheiros a depender de ventos favoráveis. E com lemes laterais ou desajeitados lemes de popa curvados para se adequar ao formato do casco, os barcos demoravam a obedecer a ação do piloto. Além disso, as quilhas curvas exigiam um suporte muito cuidadoso quando os navios eram abicados para revisão.

Os mercadores costeiros do Atlântico usavam cogs flutuantes atarracados, um estilo de embarcação mais adequado às vagas do Atlântico. As quilhas e popas eram retas, permitindo assim o uso de leme de popa reto. A vela, colocada em um único mastro, podia ser facilmente colhida ou rizada. Mas sendo grande, redonda e de bolinas frouxas, dificultava também a maneabilidade.

Havia, porém, uma terceira tradição de construção naval que era familiar, pelo menos em conceito, aos marinheiros europeus. Havia uns bons trezentos anos que os árabes usavam um aparelho completamente diferente: uma vela triangular presa a uma longa verga disposta em ângulo sobre o mastro. Essa vela, chamada de latina pelos cruzados do século XII, que a associavam aos países latinos, tinha uma grande vantagem sobre a redonda: como a verga podia ser movida e a posição da vela mudada, os navios podiam navegar à bolina, permitindo que penetrassem em águas internas, entrassem e saíssem de portos e tomassem rotas diretas em oceano aberto sem precisar esperar ventos favoráveis. Mas embora fosse conveniente para pequenas embarcações, apresentava algumas desvantagens. Enrizar a vela para enfrentar um vento forte era uma operação difícil e o barco não podia virar de bordo com facilidade, como fazem os iates modernos, porque a vela tinha de ser arriada e recolocada, um trabalho que exigia muita mão-de-obra e colocava sérias restrições ao tamanho dos barcos. Uma embarcação de vela latina de qualquer tamanho requeria quinze homens apenas para manobrar as velas.

No início do século XV, alguns marinheiros audaciosos - provavelmente espanhóis e portugueses - já tinham adaptado a vela latina ao cog, produzindo navios mais versáteis conhecidos como caravelas. Esses barcos de dois e três mastros, com cerca de 20 metros de comprimento e 60 a 70 toneladas de peso, iram tornar-se os burros de carga das explorações portuguesas. A caravela maior e mais refinada usava uma combinação variável de velas latinas e redondas, permitindo o melhor uso dos ventos de popa e também melhor maneabilidade para entrar e sair de baías e estuários não mapeados. Algumas vezes, os barcos também mudavam de aparelho no curso das viagens.

Embora mais fáceis de manejar que seus antecessores, esses navios eram igualmente desconfortáveis para os marujos. Uma caravela típica tinha um convés arqueado para que as águas de um mar mais violento escorressem para fora. O capitão gozava amiúde do luxo relativo de uma cabine minúscula na popa, mas o resto da tripulação – cerca de trinta a quarenta homens – dormia onde pudesse: no convés, em tempo quente; embaixo do convés, com a carga, quando fazia frio. A maior parte do tempo, a tripulação passava esgotando os porões (todos os navios de madeira faziam água), lançando a sonda para determinar a profundidade do oceano e trabalhando com as velas.

Essa vida, embora dura e, às vezes, perigosa, não era particularmente insalubre. Nas primeiras décadas da era das explorações, as viagens raramente duravam mais de dois meses, mantinham-se usualmente próximas da costa e, em geral, incluíam vários desembarques para reabastecer os suprimentos. Salvo tempestade ou guerra, as tripulações se alimentavam razoavelmente, com alimentos frescos e água potável. Mas com o prolongamento das viagens, tudo isso mudaria.


Em 1433, encorajado por saber que seus marinheiros viajavam em embarcações cada vez melhores, o príncipe Henrique – após incursões preliminares às ilhas da Madeira e Canárias, já conhecidas há várias gerações – decidiu despachar um navio comandado pelo capitão Gil Eanes, com ordens de ultrapassar o cabo Bojador, a península cerca de 300 quilômetros ao sul das Canárias que ainda era o limite do mundo conhecido. Parece que faltou coragem a Eanes para cumprir a missão. De volta a Portugal, pediu desculpas ao infante, citando os terríveis perigos que enfrentara e, sem dúvida, relembrando as “zonas tórridas” e monstros que supostamente existiam adiante. Mas Henrique não teve paciência com ele. “E em verdade, eu me maravilho que imaginação foi aquesta que todos filhaes, de uma coisa de tão pequena certidão”. E mandou Eanes refazer a viagem, “que com a graça de Deus, não podereis dela trazer senão honra e proveito”.

No ano seguinte, Eanes voltou para casa triunfante: tinha costeado os baixios que se estendem por 30 quilômetros diante do Bojador, aportado 150 quilômetros adiante do cabo e até colhido uma seleção de plantas para trazer de volta a Portugal. Acabara sendo uma viagem fácil. Constatou que a barreira do Bojador era mais psicológica do que geográfica.

Nada havia agora para deter as explorações. Estimulados por Henrique, capitães ousados avançaram cada vez mais costa africana abaixo. Logo surgiram indícios de que a empreitada podia ser lucrativa. Em 1436, um capitão chamado Afonso Baldaia desembarcou numa enseada a 200 quilômetros do Bojador e achou pegadas humanas na areia. A notícia excitou Henrique, que mandou Baldaia imediatamente em nova expedição. Desta vez o capitão despachou dois jovens a cavalo para fazer um reconhecimento dos habitantes. Acharam mais do que buscavam, escapando por pouco de um bando de guerreiros armados de lanças. Baldaia teve mais sorte com a fauna local: localizou algumas focas – batizou-as de “lobos do mar” – que matou e esfolou. Suas peles de foca constituíram o primeiro carregamento comercial a chegar em Portugal, vindo da África.

Quatro anos depois, uma expedição de dois barcos voltou com uma carga mais sinistra: uma dúzia de africanos. Para Henrique, os prisioneiros foram uma fonte de informação, mas outros logo descobriram uma utilidade diversa para os negros: destiná-los ao trabalho escravo, para resolver a falta de mão-de-obra que praticamente paralisara o país desde a Peste Negra, no século anterior. E assim começou um tráfico que seria a espinha dorsal do processo subseqüente de descobertas. Em 1488, os portugueses estabeleceram um forte na ilha de Arguim, 750 quilômetros ao sul do Bojador, e logo depois outros duzentos cativos negros apareceram em Lagos, onde foram vendidos em leilão público.

Zurara descreveu a cena em detalhes: “Mas qual seria o coração, por duro que ser podesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companhia? Que uns tinham as caras baixas e os rostos lavados com lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos céus”. A pior parte era a divisão das famílias: “Que tanto que os tinham posto em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados”. O tráfico de escravos – usados, em particular, nas plantações de açúcar da ilha da Madeira – tornou-se a base dos empreendimentos portugueses e continuaria a ser parte essencial da economia doméstica e imperial de Portugal por quatro séculos.

Na década seguinte, dois outros navegantes a serviço de Henrique – o nobre veneziano Alvise Cadamosto e o português Diogo Gomes – avançaram ainda mais pela costa da África Ocidental. Quando o infante Henrique morreu, em 1460, os portugueses já tinham chegado a Serra Leoa, assim batizada devido às trovoadas que rugiam como leões em torno das elevações costeiras.

Com a morte de seu grande patrono, a tarefa de financiar e inspirar mais explorações ficou com o rei Afonso V, sobrinho de Henrique. Dom Afonso era tão ambicioso quanto o tio, porém mais cauteloso em relação aos riscos econômicos envolvidos em negócio tão incerto. Assim, em 1469, concedeu direitos sobre o comércio africano a Fernão Gomes, com a condição de que seus marinheiros explorassem mais 600 quilômetros de costa anualmente durante os cinco anos seguintes. Esse novo arranjo foi satisfatório para ambas as partes. Gomes ficou rico e Portugal adquiriu conhecimento de mais 3 mil quilômetros de costa, com seus marujos circunavegando o bojo da África Ocidental. O fato de a costa prolongar-se para o leste, de Serra Leoa à baía de Biafra, deve ter despertado esperanças de que o caminho para as Índias poderia estar aberto.

Quanto maiores as esperanças e ambições, maior era o ciúme com que se guardavam as rotas marítimas. Em 1480, o rei Afonso, então envolvido numa acirrada disputa de quatro anos pela sucessão do trono espanhol, deu ordens rigorosas para seus capitães: se cruzassem com espanhóis “que estão, ou podem estar, a caminho da dita Guiné ou voltando de lá, ou que se encontram lá (...) assim que essas pessoas forem capturadas, sem necessidade de mais ordem ou procedimento legal, devem todas ser jogadas ao mar, para que tenham morte natural”.

Dom Afonso morreu no ano seguinte, sendo sucedido por seu filho, dom João II, que se revelou um grande entusiasta das viagens. No decorrer da década de 1480, as expedições avançaram ainda mais, até as praias desertas de Angola e da Namíbia. Para marcar suas posses, o rei fazia com que seus capitães plantassem marcos de 2 metros, conhecidos como “padrões”, nas terras descobertas. Enquanto isso, construía-se um forte onde hoje é Gana, para funcionar como base de suprimentos ao tráfico de ouro, escravos e pimenta (de qualidade inferior à do Extremo Oriente, mas mesmo assim negociável).

O encurvamento da costa em direção sul, após passar a baía de Biafra, desapontara os que buscavam uma rota para as Índias e trouxera de volta velhas dúvidas sobre o formato da África; talvez Ptolomeu tivesse razão e ela estivesse unida a um vasto continente meridional. A única maneira de resolver a questão era mandar uma expedição em busca da ponta meridional da África, se é que ela existia. Mas um empreendimento desse porte seria muito maior do que qualquer das viagens já feitas e exigiria façanhas de navegação mais extraordinárias.

Acontece que os meios para melhorar as condições de navegação já existiam. Em 1484, João ficou sabendo que uma tabela compilada pelo astrônomo espanhol Abraão Zacuto, listando a posição meridiana do sol acima da península ibérica para cada dia do ano, tornava agora possível descobrir com precisão a latitude de um navio apenas com a medição do ângulo do sol ao meio-dia. Isso significava que um capitão podia saber o quanto viajara para o sul mesmo não tendo terra à vista. Quando chegava à latitude desejada, tinha apenas que virar o navio para a costa e usar as técnicas já existentes para ir em linha reta até o continente. Encorajado por esse novo dado, João achou que chegara o momento de resolver a questão: se havia um extremo sul da África, seus navios o descobririam.

A pessoa que escolheu para levar a cabo a busca foi Bartolomeu Dias. Pouco se sabe sobre esse homem, mas devia ser um capitão experiente e confiável, pois a expedição deixada a seus cuidados foi organizada em larga escala. Além de duas caravelas, levava um barco de suprimentos para enfrentar uma eventual dificuldade de encontrar alimento e combustível na costa meridional africana. Quando içou velas, em agosto de 1487, sua missão estava clara: viajar para o sul até encontrar a ponta mais meridional do continente africano.

Dias levou três meses para chegar à baía de Angra das Aldeias, na costa da atual Angola, onde reabasteceu as caravelas e deixou o barco de suprimentos, guardado por nove marinheiros. Então passou pelo padrão deixado no ano anterior pelo explorador Diego Cão e entrou em águas desconhecidas. Durante mais de um mês, seus navios avançaram lentamente ao longo da costa, enfrentando ventos de proa cada vez mais fortes. Por fim, no início de janeiro de 1488, Dias decidiu distanciar-se da costa em busca de condições mais favoráveis de navegação. A aposta deu certo: por duas semanas, ventos crescentes empurravam os barcos para o sul. Quando resolveu finalmente voltar para a costa, foi varrido para leste por ventanias; mas onde deveria haver terra, segundo seus cálculos, não havia nada. Dias dirigiu-se então para o norte e deu com terra à vista, mas encaminhou-se mais para o leste do que para o sul. Deve ter adivinhado que contornara algum tipo de cabo. Resolvido a investigar, avançou por mais um mês, apesar das queixas da tripulação. Finalmente, concordou em voltar, depois de deixar seu padrão mais avançado num promontório desolado – possivelmente no lugar conhecido hoje como Kwaaihoek, perto do rio Great Fish, na África do Sul. Após certificar-se de que a corrente era tropical e vinha do nordeste – evidência clara que circunavegara a ponta da África – Dias voltou, de acordo com João de Barros, cronista da viagem, “com tanta dor e sentimento como se estivesse deixando um filho amado em exílio eterno”.

Na viagem de volta ao longo da costa da África meridional, encontraram um “grande e nobre cabo”, com penhascos de granito, tendo atrás uma montanha de topo plano. Ali desembarcou e deixou um segundo padrão para marcar o que acreditou ser o ponto mais meridional da África (Na verdade, não encontrara esse ponto, que é o cabo Agulhas, mais de 200 quilômetros para sudeste). A essa descoberta deu o nome de cabo da Boa Esperança.

Ao reencontrar o barco de suprimentos, Dias ficou sabendo que a maioria dos marinheiros ali deixados fora morta por gente das tribos locais. Dos três sobreviventes, “um ficou tão pasmo de prazer ao ver seus companheiros que morreu logo depois, pois estava muito magro de doença”. Sem homens para tripular o barco de suprimentos, Dias recolheu as provisões e queimou a embarcação antes de voltar para casa. No final de 1488, chegava como herói a Portugal, após uma viagem de dezesseis meses. O caminho para a Índia estava finalmente aberto.


Mas antes que os portugueses atingissem o objetivo que buscavam havia tanto tempo, surgiu uma nova figura em cena para complicar as coisas. O intrometido era um navegador genovês de 37 anos de idade, uma teoria sobre o mundo e a determinação necessária para testar suas idéias na prática. Cristovão Colombo passara oito anos em Portugal – de 1476 a 1484 – tentando obter apoio para uma expedição que teria marcado uma mudança radical para o monarca português. O genovês acreditava também que grandes fortunas aguardavam quem negociasse diretamente com o oriente, mas estava convencido de que o caminho mais rápido para chegar lá não era contornando a África, mas navegando em linha reta para oeste.

Suas idéias vinham de várias fontes, que incluíam os relatos de Marco Polo e textos bíblicos. estudara Ptolomeu e estava familiarizado com a teoria dele de que a massa de terra eurasiana ocupava a metade do globo. Dos cálculos de Toscanelli, Colombo deduziu que as Índias estavam a meros 3 900 quilômetros a oeste das ilhas Canárias. Como se saberia mais tarde, esse número estava completamente equivocado quanto à Ásia, mas por coincidência era quase exato em relação ao até então desconhecido continente americano.

Os conselheiros do rei João rejeitaram o projeto de Colombo. O próprio monarca, totalmente empenhado na busca da rota africana, desqualificou o genovês como “um grande falador, cheio de fantasia e imaginação”. Sem esmorecer, Colombo levou suas idéias para a Espanha, onde, após mais alguns anos de rejeição, encontrou finalmente um apoio aristocrático e a aprovação real para uma expedição.

Saindo do porto de Palos, na região da Andaluzia, com três caravelas – Pinta, Niña e Santa Maria – e cerca de noventa homens, Colombo dirigiu-se primeiro para as ilhas Canárias, onde reabasteceu seus navios antes de navegar para oeste, no dia 6 de setembro. Passados 33 dias, seus homens avistaram terra: a ilha de San Salvador, nas Bahamas. Os barcos visitaram Cuba e Hispaniola, onde a Santa Maria encalhou e teve de ser abandonada. As duas caravelas restantes voltaram para o velho Mundo com a momentosa notícia da descoberta.

Em março de 1493, Colombo aportou em Lisboa para realizar consertos em sua nau capitânea. A história que tinha para contar era, do ponto de vista do rei português, tão desagradável quanto sensacional. Se estava falando a verdade, Colombo chegara às ilhas que os portugueses buscavam tanto, mas por uma rota totalmente diversa. Zombando do rei por ter jogado fora a oportunidade de reclamar para si tal riqueza, Colombo tornou-se jactancioso, “descortês e eufórico”. A reação inicial de João foi a de mandar prendê-lo e vários membros da corte aconselharam-no a matar o arrogante. João tem a seu crédito o fato de ter engolido o ressentimento e mandado Colombo em paz para a Espanha.

O monarca português sabia muito bem que Fernando e Isabel, os patrocinadores de Colombo e monarcas conjuntos de um reino espanhol recém-unificado, procurariam explorar a descoberta de seu protegido e que Colombo seria enviado para o Ocidente de novo. Havia agora dois competidores no jogo da exploração de novas terras e a Espanha parecia estar ganhando condições para reivindicar as terras que Portugal gastara tanto tempo e esforço em buscar. As possibilidades de conflito entre as nações vizinhas eram imensas, a não ser que concordassem numa divisão mutuamente aceitável do espólio.

Na Europa daquela época, só havia um poder supranacional com autoridade para arbitrar a respeito desses assuntos: o papa. Os reis espanhóis requisitaram uma decisão papal. Acontece que no trono do Vaticano estava Alexandre VI, um espanhol que fora eleito no ano anterior com apoio da rainha Isabel. Não foi surpresa, portanto, quando Alexandre propôs dar aos espanhóis os direitos sobre todas as descobertas feitas a mais de 100 léguas – cerca de 600 quilômetros – a oeste das ilhas de Cabo Verde. Os portugueses ficaram indignados. A proposta não só ameaçava o controle português das Índias, como também colocava em perigo novas explorações, pois o navegadores de dom João estavam descobrindo que para fazer melhor uso da rota em torno da África precisavam afastar-se do continente em busca de ventos e correntes favoráveis, invadindo águas que passariam a ser espanholas, segundo a divisão do Vaticano.

Dom João começou a debater o assunto com Isabel, enquanto espalhava rumores de que tencionava desafiar a linha com uma grande frota se não chegassem a um acordo. Os espanhóis, no entanto, mostraram-se receptivos e, após uma ano de negociações na pequena vila de Tordesilhas, distante 150 quilômetros de Madri, assinou-se um tratado que mudou a linha demarcatória de fronteira entre os dois impérios nascentes para mais 1 500 quilômetros a oeste. Na época, a exata distância escolhida parecia não ter muito significado. Acontece, porém, que ela deixava a ainda não descoberta costa do Brasil dentro da esfera de influência de Portugal e, em conseqüência, criaria um enclave português num continente espanhol.

O Tratado de Tordesilhas dividiu todo o mundo não descoberto entre Portugal e Espanha. Sua própria amplitude significava que estava destinado a ficar sem efeito a longo prazo. A curto prazo, porém, serviu bem a seus objetivos, deixando as duas nações livres para seguir seus próprios cursos de exploração. A Espanha mandou Colombo em mais três viagens à América, enquanto Portugal continuou a se concentrar na rota em torno do cabo da Boa Esperança.


O hiato entre a volta de Bartolomeu Dias, em 1488, e a assinatura do tratado, em 1494, foi talvez preenchido com viagens que não deixaram registros duradouros. Uma expedição que ainda estava em andamento, no entanto, era a extraordinária viagem de um explorador e espião chamado Pero de Covilhã, a única grande aventura terrestre em um século de empreendimentos marítimos. Covilhã foi despachado alguns meses antes da viagem de Dias, com instruções para abrir caminho até a Índia e voltar com um relatório sobre o que descobrira; ao mesmo tempo, seguia com ele um companheiro para percorrer a África em busca de Preste João.

Covilhã realizou sua missão sob o disfarce de um mercador árabe, viajando com uma caravana do Cairo até Aden, na entrada do mar Vermelho, e dali até o porto indiano de Calicute por barco. Uma vez na Índia, percorreu a costa ainda disfarçado de árabe, identificando novos portos. Depois, cruzou o oceano Índico até a África e foi para o sul, visitando prósperas cidades mercantis islâmicas da costa oriental africana. Com um rico cabedal de informações, Covilhã retornou ao Cairo para se encontrar com seu companheiro e com emissários do rei.

As notícias que recebeu não devem tê-lo alegrado. Ficou sabendo que seu companheiro de viagem morrera e que a tarefa de encontrar o Preste João recaía agora sobre seus ombros. Embora certamente cansado de suas muitas aventuras, Covilhã não hesitou em cumprir seu novo dever: partiu para o sul novamente e chegou à Etiópia, onde foi obrigado a permanecer, em parte como convidado, em parte como prisioneiro, pelo soberano cristão do país. Trinta anos depois, foi visto lá pelos membros de uma expedição portuguesa. Então, já era um homem velho e preferiu ficar, em vez de retornar a Portugal.

Presume-se que Pero de Covilhã mandou do Cairo para Lisboa um relatório de suas viagens, embora jamais tenha se encontrado tal texto. Se assim o fez, as informações que continha devem ter sido úteis para o planejamento da última grande viagem do século XV, iniciada em 1497. Dom João II já estava morto, mas seu sucessor, dom Manuel, deu de bom grado continuidade à obra dele. Assim sendo, a expedição que planejou estava mais ambiciosamente equipada do que qualquer outra anterior, pois tinha por missão desafiar diretamente o monopólio árabe do comércio no oceano Índico.

Sob o olhar experiente de Bartolomeu Dias, quatro navios foram preparados para a viagem. Um era uma caravela pequena de vela latina, de cinqüenta toneladas, para navegação costeira rápida e de reconhecimento. Outro era um navio de suprimentos de 300 toneladas, grande o suficiente para levar provisões para três anos e um carregamento de bugigangas que tinham se revelado úteis como objetos de troca e presentes nas jornadas à África: algodão, azeite de oliva, açúcar, corais, gorros, contas, tigelas de cobre e os pequenos sinos redondos que os falcoeiros costumavam prender nas pernas das aves. Os outros dois barcos, porém, eram algo novo: mais robustas que as caravelas, essas embarcações de três mastros e vela redonda, conhecidas como naus, estavam equipadas com dez canhões cada uma. A presença das armas era o reconhecimento tácito de que essa jornada, ao contrário das anteriores, podia terminar com derramamento de sangue.

Da mesma forma, seu líder precisava ser, além de excelente marinheiro, um homem ousado. Em Vasco da Gama, dom Manuel encontrou todos esses atributos. Então com 37 anos, o futuro herói de Os Lusíadas vinha de uma nobre família de militares. Tinha uma aparência terrível – seu retrato revela um nariz e uma boca enormes, barba negra, uma carranca assustadora e olhos penetrantes – e um caráter à altura: vontade férrea, arrogante, impiedoso e bem capaz de crueldades (certa vez extraiu informações de um cativo derramando azeite quente na barriga do pobre-diabo). Em compensação, tinha a reputação de ser justo, honesto e devoto.


Em 8 de julho de 1497, sacerdotes levaram Gama e seus 170 homens em procissão solene pelas ruas de Lisboa e abençoaram sua partida. A pequena frota passou pelas ilhas de Cabo Verde e depois seguiu para oeste, atravessando o Atlântico em busca de ventos favoráveis para a longa jornada em direção ao sul. A rota afastou os barcos da visão da terra por três meses – o próprio Colombo levara apenas cinco semanas entre as Canárias e seu desembarque na América – mas valeu a pena. Conhecendo apenas a posição das ilhas de Cabo Verde (16 graus norte) e do próprio cabo (34 graus sul), sem cartas ou tabelas de ventos e correntes, Vasco da Gama levou sua tripulação de volta ao litoral africano menos de 200 quilômetros ao norte de seu objetivo, o cabo da Boa Esperança.

A parte seguinte da jornada podia ser feita em etapas mais fáceis. Durante cinco meses, a expedição sondou a ponta da África, fazendo trocas pacíficas com as tribos de hotentotes da região. Depois, para acelerar a viagem, Vasco da Gama queimou o barco de suprimentos e transferiu seu conteúdo para as outras embarcações. Ultrapassou o último padrão de Bartolomeu Dias e mais 1 500 quilômetros de costas inexploradas, até chegar à fronteira do mundo mulçumano: os portos da África Oriental de Sofala e Moçambique, com suas casas caiadas, vinhas em flor, mesquitas reluzentes e dhows – barcos árabes - de popas pontiagudas. Dali para o norte, a costa estava dividida entre cidades-estados independentes, cada uma governada por um sultão cioso de seu próprio poder. Ali, os portugueses eram considerados não só inimigos em potencial, como, para surpresa deles, bárbaros. Na cidade de Quíloa, os habitantes tentaram até um ataque furtivo, frustrado pelos canhões de Gama. Mas em Malindi, na costa do atual Quênia, os portugueses tiveram a sorte de encontrar um sultão amistoso que viu neles aliados potenciais contra seus rivais e ajudou Vasco da Gama a contratar os serviços de um navegador experiente, chamado Ahmed ibn Majid, para a próxima etapa da viagem: a travessia do oceano Índico até a Índia tão sonhada. Com a orientação de Majid e ventos favoráveis, a jornada de 4 mil quilômetros levou apenas um mês. A frota – a primeira de barcos europeus a alcançar a Índia – ancorou ao largo de Calicute em meados de maio.

A estadia de Vasco da Gama em Calicute não foi feliz. Sua presença não foi bem recebida pelos mercadores muçulmanos que detinham o controle comercial do porto e o governante hindu da cidade ofereceu-lhe no máximo uma acolhida civilizada. Houve pouco interesse pelas mercadorias que os portugueses traziam consigo e foi com grande dificuldade que conseguiram um pouco de cravo, canela e jóias.

O pior estava por vir. O navegador Majid desapareceu durante a estadia da tripulação em Calicute e a frota de Vasco da Gama levou três meses para atravessar de volta o Índico, navegando contra os ventos. Com poucas provisões, os marinheiros portugueses experimentaram pela primeira vez todos os horrores das longas viagens em alto-mar. Alimentos apodrecidos e excrementos acumulavam-se no fundo dos navios, formando um lodo fedorento que alimentava ratos, piolhos e larvas. A tripulação sobreviveu comendo peixe fresco, carne de porco salgada e bem temperada com alho, para disfarçar o gosto de estragado, e bolachas duras fervilhantes de brocas. Sem comer frutas e verduras, os homens acabaram presas fáceis do escorbuto. As gengivas ficavam lívidas e apodrecidas, as juntas inchavam, as vítimas caíam em coma. Quando a frota finalmente voltou a Malindi, onde o mesmo sultão amistoso salvou-lhes a vida com suprimentos frescos de carne, frango, ovos e laranjas, trinta membros da tripulação estavam mortos.

As dificuldades não estavam de forma alguma superadas. Vasco da Gama não tinha mais homens suficientes para tripular os três barcos e foi forçado a queimar um deles logo depois de deixar Malindi para a longa viagem de retorno. Houve outras perdas de vida durante o resto da viagem, inclusive a do irmão do comandante da expedição. Por fim, no final do verão de 1499, depois de outros seis meses de navegação, os dois navios sobreviventes chegaram a Lisboa. Dos 170 homens que haviam partido, apenas 54 estavam de volta.

Dom Manuel ficou extremamente satisfeito com a façanha de Vasco da Gama. Recebeu os sobreviventes com uma grande parada, mandou cunhar uma moeda e construir uma igreja e um mosteiro perto da foz do rio Tejo para santificar a terra que era chamada de “a praia das lágrimas por aqueles que partem e a praia da alegria por aqueles que retornam”. Embora o preço da viagem em vidas tenha sido alto e as poucas mercadorias trazidas de volta da Índia não cobrissem de forma alguma o custo do empreendimento, a expedição cumprira seu objetivo. Chegara à Índia, fato que justificava todos os gastos e padecimentos de um século.


A viagem de Vasco da Gama traçou uma linha divisória na história das grandes navegações. As primeiras décadas do século seguinte veriam uma aceleração no ritmo das descobertas, com Portugal e Espanha, em suas respectivas esferas, buscando transformar o conhecimento adquirido por seus navegadores em impérios lucrativos. A Espanha obteve rapidamente, com as explorações de seus conquistadores, possessões nas Américas que fariam dela a nação mais rica e poderosa do mundo; nesse processo, ela destruiria o edifício sofisticado das culturas asteca e inca.

Os navegantes portugueses trataram de explorar o caminho aberto por Vasco da Gama e os resultados vieram rápida e espetacularmente. Menos de seis meses após a volta do descobridor do caminho para as Índias, uma armada de treze navios e 1 200 homens foi despachada sob o comando de um nobre de 32 anos chamado Pedro Álvares Cabral. A expedição foi um sucesso completo. Ao penetrar Atlântico adentro, a frota afastou-se para oeste o suficiente para tocar as costas do Brasil, que Cabral reivindicou para Portugal. Circunavegando o cabo da Boa Esperança, os navios chegaram a Calicute, onde impressionaram o governante com presentes, para depois travar – e vencer – uma sangrenta guerra pelo comércio contra os recalcitrantes mercadores árabes. Mais tarde, Cabral bombardeou Calicute, acusando seu governante de ficar ao lado dos mulçumanos, e seguiu viagem, estabelecendo relações comerciais amistosas com dois outros portos indianos, Cochim e Cananor. Retornou a Lisboa em junho de 1501, com apenas sete barcos e a metade de seus homens, mas trazendo um carregamento de especiarias, porcelana, incenso e jóias que recompensava amplamente os custos da viagem.

A combinação de comércio e força traria ricas recompensas nos anos seguintes. Organizaram-se expedições anuais à Índia e os portugueses abriram uma bolsa no centro comercial de Antuérpia, nos Países Baixos, de onde podiam vender suas especiarias para toda a Europa. Dom Manuel nomeou um funcionário com o imponente título de vice-rei para supervisionar a expansão do comércio no oceano Índico. O primeiro deles, Francisco de Almeida, comandou uma frota de 22 navios que, tendo partido em 1505, saqueou Mombaça e capturou os portos de Sofala e Quíloa, na África Oriental, para depois alcançar uma vitória decisiva em 1509 sobre uma frota egípcia enviada para proteger os mercadores muçulmanos no porto de Diu, ao norte de Calicute.

Com bases seguras no oceano Índico e um domínio confirmado dos mares, os portugueses estavam agora livres para satisfazer a ambição que os guiava desde os dias do infante dom Henrique, o Navegador: chegar às ilhas das especiarias. Em 1509, uma primeira frota aportou em Málaca, perto da atual Singapura; em 1511, essa importante base comercial estava em mãos portuguesas. Era apenas o primeiro elo de uma cadeia de lugares que viriam a incluir Hormuz, na estrada do golfo Pérsico, as ilhas do Ceilão e Ternate, centros de produção de cravo-da-índia, os portos de Diu e Goa, na Índia, e Macau, na China. Em 1520, Portugal dominava os mares da Ásia meridional. O comércio muçulmano a leste de Aden declinou tremendamente, assim como a fortuna dos mercadores venezianos que eram os intermediários no tráfico para a Europa. O equilíbrio do comércio mundial pendeu decisivamente para oeste e o soberano de Portugal podia se autoproclamar agora – de forma um tanto otimista, é verdade – rei “daqui e d’além mar na África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”.

Uma última realização faltava para completar o processo de descobrimentos iniciado pelo infante Henrique cem anos antes: a circunavegação do mundo. Ela também foi obra de um navegante português, embora ele viesse a morrer antes de completar sua missão e estivesse viajando sob bandeira espanhola. Fernão de Magalhães prestara serviços honrosos aos portugueses nas Índias Orientais – onde, em 1509, salvara uma expedição a Málaca do desastre ao avisar de um ataque de surpresa – e no norte da África, antes que acusações falsas de desonestidade o levassem a procurar serviço na Espanha. Ali obteve apoio financeiro de um nobre influente e o entusiasmo do rei para seu grande projeto de descobrir uma passagem no extremo sul do continente americano para o recentemente descoberto oceano Pacífico.

Magalhães partiu em 1519 com cinco navios e 260 homens. A viagem foi uma aventura épica que levou mais de três anos para se completar e custou a vida não só do próprio comandante – derrubado por lanças dos nativos das Filipinas – como também da vasta maioria da tripulação. Os dezoito sobreviventes que retornaram a Sevilha contaram histórias terríveis de motins, escorbuto e naufrágios e o rendimento da pequena carga de cravo-da-índia que um dos barcos trazia foi insuficiente para pagar os remanescentes da tripulação.

Mas em termo de pioneirismo, a viagem de Magalhães não tinha preço. O último oceano desconhecido fora cruzado e o mundo estava revelado por inteiro, ainda que em linhas gerais. Restava muito para mapear – Austrália, Nova Zelândia e Antártida, bem como o interior das terras descobertas, ainda estavam inexplorados -, mas o contorno estava pronto para as futuras gerações preencherem.

Os exploradores do século XV e início do XVI não pretendiam realizar uma revolução do conhecimento, mas foi isso que fizeram – isso e muito mais. Os portugueses não acabaram simplesmente com o isolamento da Europa: eles a colocaram inadvertidamente no caminho da expansão mundial. Suas viagens de descobertas marcam os primórdios da primeira cultura global do mundo.



AVENTUREIROS DO OCEANO é o primeiro capítulo do livro VIAGENS DE DESCOBRIMENTO, que retrata fatos e acontecimentos no perído do ano 1400 ao ano 1500 da nossa era.

Os demais capítulos são: A RENASCENÇA ITALIANA, A QUEDA DE CONSTANTINOPLA, GUERRAS SANTAS DA BOÊMIA, O ÚLTIMO GRANDE IMPÉRIO HINDU e IMPÉRIOS PERDIDOS DAS AMÉRICAS.

É parte integrante da coleção HISTÓRIA EM REVISTA de TIME-LIFE BOOKS.

Original edition, Copyright 1989 - Time-Life Books Inc.

Consultores

Geral:

GEOFFREY PARKER, professor de História, Universidade de Illinois, Urbana-Champaign, Illinois, USA

CHRISTOPHER BAYLY, professor de História Moderna da Índia, Faculdade St. Catharine, Universidade de Cambridge.

Viagens oceânicas:

GEORGE WINIUS, professor do Centro para Estudo da Expansão Européia, Universidade do Estado de Leiden, Holanda.

Publicado pela ABRIL LIVROS LTDA

Authorized Portuguese edition, Copyright 1991 - Abril Livros Ltda

Av. Rio Branco, 143/13 - Rio de Janeiro - RJ

Tradução e adaptação para a língua portuguesa: Pedro Paulo Poppovic Consultores Editoriais S/C Ltda - São Paulo

Tradução: PEDRO MAIA SOARES