terça-feira, 15 de novembro de 2011

MARECHAL DEODORO


     Manuel Mendes, vereador na cidade das Alagoas, estava furioso com a idéia do Governo de transferir a sede provincial da cidade das Alagoas para a vila de Maceió.
     “Não percebem que isso prejudica os interesses de proprietários, comerciantes e demais cidadãos, todo fiéis servidores do Império?”, pensava o vereador. A mudança da capital começava. O povo nas ruas protestava, e pedia a Manuel Mendes que usasse seu prestígio para impedir a transferência. Manuel Mendes, vereador e militar, estava diante de um dilema: sempre cumprira ordens, era um soldado saído do corpo de tropa, que só atingira o oficialato em 1823, aos 38 anos de idade. O presidente da Província era um superior a quem devia obediência. Mas e esse povo que grita nas ruas? Essa gente que se volta para ele pedindo ação?
     E o Major Manuel Mendes da Fonseca Galvão decidiu-se. Puxou a espada e mandou que as tropas saíssem à rua. Soldados e povo confraternizaram. E a população das Alagoas desafiou o Império.
     Pobre rebelião, grito de agonia de uma pequena cidade. Sem qualquer dificuldade, o Governo dominou a insurreição, e em dezembro de 1839 Maceió era a nova capital.
     A Manuel Mendes, cabeça da revolta, restou a fuga. Seguiu para Sergipe, deixando em Alagoas a esposa Rosa Maria Paulina e os filhos: Hermes Ernesto, Severiano, Manuel Deodoro, Pedro Paulino, Hipólito, Eduardo Emiliano, João Severiano, Emília Rosa e Amélia Rosa. Anos depois, teria ainda outro filho, Afonso Aurélio, nascido em 1845.
     Mas em 1839, como foragido político, Manuel Mendes não podia pensar no futuro. Sua carreira militar estava praticamente encerrada, e só seria revivida por seus filhos, que ingressariam no Exército. Manuel Mendes refugiou-se em Sergipe. Manuel Deodoro da Fonseca tinha, então, doze anos.

          Outro tempo, outro lugar, outra revolta

     Pernambuco, 1849. De cada quatro habitantes, três vivem no litoral sem conseguir trabalho fixo.
     As terras férteis pertencem a poucas famílias, proprietárias de todos os engenhos de açúcar. Nas fazendas não há emprego para homens livres, todo o trabalho é feito por escravos.
     O comércio nas cidades é dominado pelos portugueses, desde os tempos da Colônia. Há muito que os pernambucanos almejam a nacionalização do comércio para obter trabalho em condições de igualdade com os estrangeiros, e a aplicação dos impostos territoriais progressivos, que obrigue os grandes proprietários a se despojarem de parte das suas terras.
     Desde 1845, Chichorro da Gama, presidente da Província, vinha dando apoio à ala radical do Partido Liberal pernambucano – conhecida com Praia -, que encabeçava as duas reivindicações básicas e investia sistematicamente contra os privilégios dos conservadores. Mas as conquistas eram lentas, as promessas muitas.
     Em 1847 ocorreram os primeiros conflitos: grupos armados de praieiros decidiram apelar à violência para apressar as reformas. Os liberais mais moderados, que olhavam com desconfiança a evolução dos acontecimentos, retraíram-se. Chichorro acaba se demitindo. E a situação torna-se ainda mais alarmante para os praieiros quando, em setembro de 1848, cai o Gabinete liberal de Francisco de Paula Sousa e o jovem imperador chama para organizar o novo Gabinete Pedro de Araújo Lima, o mais convicto conservador de Pernambuco. O destino da Praia estava selado.
     Inicia-se a repressão, tentando sufocar pela força o movimento.
     O povo de Pernambuco e as guarnições de Olinda e Igaraçu rebelam-se.
     As tropas legais correm a abafar a revolta. Entre os soldados que, a 2 de fevereiro de 1849, tomaram a sede do Governo revolucionário estava o segundo-tenente de Artilharia a Pé, o jovem Manuel Deodoro da Fonseca que, há apenas doze meses, terminara seus estudos na Escola Militar.
     Iniciava sua carreira com um batismo de fogo, participando de uma luta entre irmãos. Não lhe competia discernir se a causa era boa ou má.
     Acima de tudo estava o dever a cumprir, a obediência que, como soldado, devia aos superiores. Contudo, havia também a dignidade pessoal, a honra humana.
     Quarenta anos depois, na qualidade de chefe, seria um rebelde. Começou a carreira militar ajudando a sufocar uma rebelião, e encerrou-a encabeçando uma revolução.

          Uma rápida viagem à fronteira sul

     Foi preso pela primeira vez em 1851. Deixara de apresentar a ordem do dia. Nos dois anos seguintes, mais quatro prisões disciplinares. Jovem e impulsivo, Deodoro tinha dificuldade em conter seu temperamento e sujeitar-se ao severíssimo regulamento militar.
     Por fim, desacatou o comandante; depois de nova prisão, foi chamado à Corte.  Ali, alguém – sua mãe Rosa Paulina ou o irmão Severiano – deve ter tido uma influência moderadora. Deodoro tornou-se mais controlado, disciplinou-se e logo mereceu um elogio do comandante da Fortaleza de Santa Cruz. Sua carreira voltava à tranqüilidade, só quebrada com a passagem a capitão (1856), a nomeação para ajudante-de-ordens do presidente da Província de Mato Grosso, e o casamento com Dona Mariana Cecília de Sousa Meireles (1860).
   O Natal de 1864 encontra Deodoro com a família. Está-se despedindo; no dia seguinte embarcará rumo ao Sul. Ele não pensa em ausentar-se por muito tempo. A campanha no Sul, supõe, será rápida. Trata-se apenas de solucionar alguns atritos entre o Brasil e o Uruguai. Mas estava enganado. Tinha início a longa e difícil Guerra do Paraguai.

          “Fiz essa guerra de fio a pavio”

     Itororó, 6 de dezembro de 1868. O troar dos canhões, o tagarelar da metralha, o gemido dos homens.
     Deodoro no chão, um ferimento de bala no ventre. Antes de ser atingido, vira o irmão, Hermes Ernesto, cair com um tiro na perna. A padiola em que o colocam pode ser a mesma em que momentos antes estava deitado, coberto por um lençol de sangue, o corpo morto de outro irmão, o Major Eduardo Emiliano.
     Desde o princípio Deodoro dera mostras de seu valor. No desembarque em terras do Paraguai, impediu que as tropas do General Osório fossem cercadas. Promovido a major, participara da terrível vitória de Tuiuti e da terrível derrota de Curupaiti. Depois, Potrero Obella e Taji, onde o comandante, Caxias, mencionou-o na ordem do dia “pela perícia e denodo com que se houve, patenteando a bem merecida reputação de que goza”. Por atos de bravura, tornou-se tenente-coronel.
     Os paraguaios resistem. A ponte de Itororó é tomada e perdida muitas vezes. Onde estariam os irmãos? O caçula, Alferes Afonso Aurélio, morrera em Curuzu, o Capitão Hipólito, em Curupaiti. Os que não estão feridos, como Deodoro, lutam ainda. No hospital de campanha, para onde é levado, sabe da grande vitória em Itororó. A guerra está decidida. Agora, é uma questão de tempo. Na Corte, as casas se encheriam de guirlandas e bandeirolas, as fachadas iluminadas para saudar a vitória. Eu sua casa haveria festa. A mãe, Rosa Paulina, escondendo as lágrimas pela morte dos filhos, diria: “O que importa é a vitória alcançada pela nossa Pátria, que eles foram defender”.
     Mas no campo de batalha era diferente. Do fogo, para o hospital. Do hospital, para o fogo. Deodoro volta à luta na campanha da Cordilheira, guerra de perseguição às tropas de Solano López. No entanto, seus ferimentos nunca cicatrizarão. Ele diria: “Nem sei como prossegui”, mas participa da captura de Peribebuí e do ataque a Nhu Guaçu.
     Finalmente, na manhã de 1º de março de 1870, as tropas brasileiras encurralam o último contingente paraguaio. E a guerra acaba.
     Haviam passado cinco anos. O Coronel Deodoro da Fonseca já pode voltar para casa.

          Idéias estranhas para súdito do Império

    Rio Grande do Sul, 1885. Os cabelos ralos, a barba branca, Deodoro – marechal de campo – envelhece na rotina dos quartéis.
     O equilíbrio político do Império, baseado no interesse comum das oligarquias regionais, estava-se modificando. Novas forças surgiam no cenário político. A proclamação da República francesa (1870) e a filosofia positivista de Augusto Comte haviam tomado conta da intelectualidade brasileira. Falava-se na vocação republicana da América, e o Império era combatido em nome da ciência e da razão. Benjamim Constant, professor da Escola Militar, seduzia com suas idéias os jovens oficiais. O equilíbrio econômico se rompera. As zonas cafeeiras de São Paulo desejavam maior força política e o poder moderador de Pedro II, acomodando também os interesses das regiões pouco produtivas, não ligadas ao café, era um obstáculo às pretensões dos cafeicultores.
     Por outro lado, boa parte das lavouras de café era de formação recente, posterior à abolição do tráfico de escravos (1850), e lutava contra a falta de mão-de-obra, mostrando-se favorável à substituição dos escravos – em número cada vez menor – por trabalhadores assalariados. Por diferentes razões e objetivos, a lavoura do café e as camadas urbanas estavam erguendo duas bandeiras, às vezes em separado, às vezes em conjunto: Abolição e República.
     Abolicionistas e republicanos buscavam a adesão do Exército, cujos membros haviam saído, em sua maioria, dos setores urbanos. Porém, os partidos oficiais também desejavam o apoio militar. Por isso, Henrique Pereira de Lucena, presidente da Província do Rio Grande do Sul, insistiu para que Deodoro assumisse o cargo de vice-presidente, sem prejuízo de suas demais funções. O militar, entretanto, não tinha pretensões de envolver-se em política.
     Para Deodoro, as virtudes do homem eram a honra, a honestidade e a franqueza. Jamais teria aceito o convite, se soubesse que, antes de assumir o Governo do Rio Grande do Sul, Lucena tivera uma conversa preliminar com Cotegipe, chefe do Gabinete conservador:
     “Procure fazer de Deodoro seu amigo”, dissera Cotegipe. “É o comandante das armas da Província e será o primeiro vice-presidente para substituí-lo quando você vier assumir sua cadeira de deputado”.
     Cotegipe planejava transformar Deodoro no grande marechal conservador, esteio militar do regime. No ano seguinte, 1886, o Barão de Lucena regressa à Corte e Deodoro assume a presidência do Rio Grande.
     Os planos do ministro pareciam caminhar tranqüilamente.

          Uma questão importante, a militar

     Mas os militares iam-se distanciando dos partidos políticos do Império. Algumas idéias, azedas aos políticos, eram-lhes cada vez mais caras.
     A idéia de abolir a escravidão, por exemplo, generalizava-se no Exército, cujas fileiras eram formadas por numerosos negros e mulatos.
     Também servindo em diversos pontos do País, os militares podiam ver homens do Norte  nomeados para governar o Sul, que desconheciam, ou vice-versa. As províncias aguardavam meses ou anos para que viessem da Corte instruções sobre assuntos corriqueiros. Era preciso descentralizar o Governo e criar uma federação.
     Se bem que a idéia de federação não desembocasse necessariamente em república, eram os republicanos os principais defensores da medida, e iam ganhando adeptos.
     Em pouco tempo, o Exército e Ministério entraram em conflito.
     O Coronel Cunha Matos, veterano da Guerra do Paraguai, inspecionando a guarnição do Piauí, denunciou irregularidades nos fornecimentos ao Exército. O deputado conservador Simplício Coelho de Resende, da tribuna da Câmara, atacou o militar que acusara seus correligionários. A resposta de Cunha Matos, pela imprensa, foi igualmente violenta. Em conseqüência, o ministro da Guerra, Alfredo Chaves, puniu-o por indisciplina. Iniciava-se a Questão Militar.
     No Senado, o Visconde de Pelotas expressava o pensamento do Exército:
     - Mas o honrado ministro, em vez de defender o honrado oficial, preferiu conservar-se mudo, reservando toda a sua veemência para castigar o oficial, quando este protestou pela imprensa. É preciso pedir licença até para gemer.
     No Rio Grande do Sul, o Tenente-Coronel Sena Madureira, atacava o Senador Franco de Sá pelas páginas de A Federação, jornal republicano de Júlio de Castilhos. Instado pelo Governo, Deodoro recusou-se a censurar o oficial sob seu comando, e argumentou que não havia indisciplina, pois a discussão não era entre militares.
     Cotegipe telegrafou:
     - V. Exa., em seu ofício, procura justificar os promotores das manifestações... provocado pelo que V. Exa. Chama de imposição do Sr. Ministro da Guerra. Deodoro respondeu-lhe:
     - Houve motivos para tumultuosas reuniões porque militares não podem nem devem estar sujeitos a ofensas e insultos... conhecerá V. Exa. Que prefiro ser desagradável levado pela verdade do que agradável pela reserva ou mentira.
     A 5 de dezembro de 1886, uma seca comunicação destitui Deodoro dos cargos que ocupava na Província.
     Os conservadores perdiam o “seu” marechal. E a Questão Militar continuava sem solução.
    
          Abolição, um passo para a República

     Deodoro, doente, não compareceu a uma audiência com o imperador. Iria pedir, em nome do Exército, que Pedro II anulasse as punições contra Cunha Matos e Sena Madureira, numa solução do conflito “digna do Governo e da classe militar”. Enfermo, valeu-se de um ajudante-de-ordens para levar sua posição definitiva: se não fossem os militares atendidos, ele, Deodoro, requeria respeitosamente exoneração das Forças Armadas.
     A Questão Militar incompatibilizara certas áreas políticas e o Exército. A comunicação de Deodoro a Cotegipe mostra a extensão do conflito:
     - Se a sorte determinar o rebaixamento da classe militar, no dia em que eu desconfiar que na frente de soldados não passarei de simples vulto político, quebrarei minha espada; envergonhado, irei procurar como meio de vida, a exemplo de muitos, uma cadeira de deputado para poder insultar a quem quer que seja.
     Muitos militares eram abolicionistas e partidários da federação. Quanto à república, os veteranos do Exército devotavam ainda um profundo respeito ao imperador, que a seu ver não era o responsável pela situação.
     Deodoro e os militares da sua geração ignoravam as palavras de Quintino Bocaiúva, ao apontar a farda do Tenente Lauro Muller: “É com isso que eu conto fazer a república”.
     Em outubro de 1887, através do seu órgão de classe, o Clube Militar, o Exército rompe definitivamente com os escravocratas. Deodoro, servindo mais uma vez de porta-voz, declara que o Exército não mais colaborará na perseguição e captura de negros fugidos, pois que os soldados brasileiros estavam sendo utilizados como capitães-do-mato, fim completamente estranho a tudo o que havia de mais nobre para o militar.
     Enfim, em março de 1888, o desprestigiado Cotegipe deixa o Governo. Seu sucessor, João Alfredo, prepara em dois meses o decreto da abolição da escravatura em terras do Brasil. O dia 13 de maio, em que a Princesa Isabel referendou a lei libertadora, foi seguido por mais de uma semana de comemorações públicas no Rio de Janeiro. Espetáculos teatrais gratuitos, bailes, paradas, passeatas, fogos de artifício. A abolição era uma festa nacional.
     Todos sabiam, porém, que o Gabinete conservador jamais a teria patrocinado por iniciativa própria. Além disso, a aliança entre os intelectuais republicanos, a juventude militar e os cafeicultores já se estabelecera.
     Nessas condições, o decreto João Alfredo, além de não atrair as simpatias oposicionistas, ainda afastava o apoio dos escravocratas.
     O Gabinete João Alfredo se enfraquecia sob uma oposição parlamentar (liberais) e extra-parlamentar, dirigida pelos jornais republicanos, onde pontificava Rui Barbosa.
     A 30 de setembro de 1888, a queda do trono parecia uma questão de tempo. A pressão republicana era cada vez maior. Poucos ainda diriam:
     -“República no Brasil é coisa impossível porque será uma verdadeira desgraça... Os brasileiros estão e estarão muito mal educados para republicanos; o único sustentáculo do nosso Brasil é a monarquia... Se mal com ela, pior sem ela”. Palavras de Deodoro.

          Uma rápida transformação

     Apenas um ano mais tarde Deodoro diria:
     - Só mesmo mudando a forma de governo. Da monarquia nada mais se pode esperar em benefício da Pátria e do levantamento do Exército.
     Era 4 de novembro de 1889 e Deodoro decidira-se. A transformação ocorrida em seu pensamento começara ainda no ano anterior. O Gabinete João Alfredo nomeara-o para Mato Grosso, o que equivalia a um desterro. Quintino Bocaiúva comentou; “O grande soldado vai ficar às ordens do presidente da Província”. Deodoro relutou, tentou protelar sua viagem, mas, soldado responsável, acabou seguindo para a nova guarnição. Os oficiais sob seu comando eram republicanos, e o marechal ouvia-os, já sem dizer que “a república é impossível”.
     A 19 de março morreu-lhe o irmão Severiano, Barão das Alagoas, monarquista por quem Deodoro tinha grande respeito. “Morreu a única pessoa que ainda podia me conter”, disse ele.
     Na Corte, Pedro II tenta continuar o velho jogo político, alternando ministérios liberais e conservadores no poder, e convida o liberal Visconde de Ouro Preto para formar novo Gabinete.  Pouco depois, Ouro Preto nomeia o Coronel Cunha Matos, que se reconciliara como o governo, para presidente da Província de Mato Grosso, colocando Deodoro sob suas ordens. Diante disso, o velho marechal, aos 62 anos, insubordinou-se. Sem dar satisfação aos superiores, abandonou o posto e voltou ao Rio.
     Contudo, ainda não estava decidido. A revolta era contra o Ministério. Não era fácil transformar toda uma vida dedicada ao imperador. Permanece hesitante e diz a Benjamim Constant, que se esforça por convencê-lo: “Que Pedro II permaneça no poder até a morte... depois então...”
     Em sua casa, a 4 de novembro, recebe notícias inquietantes. O Barão do Rio Apa fora incumbido de armar e adestrar a Guarda Nacional. A Guarda Cívica era rapidamente ampliada e comentava-se que obteria os melhores armamentos. O Império não confiava mais em seu Exército.
     - Só mesmo mudando a forma de governo...
     Os republicanos exultaram e a conspiração cresceu em torno do leito de Deodoro, abalado pela idade. Por que os republicanos necessitavam desse homem? Por que não marchavam sem ele? Os militares e políticos mais antigos não haviam rompido com Pedro II por apego à história de suas próprias vidas, respeito ao soberano e temor de que a república pudesse trazer uma crise de autoridade.
     Diz Tobias Monteiro: “Era preciso uma grande audácia e, sobretudo, um grande prestígio diante da tropa, para arcar contra 67 anos de tradições monárquicas e quase cinqüenta de reinado”. Deodoro tinha esse prestígio. E também a audácia. Sua história era a história do Segundo Reinado, sua autoridade uma garantia de que o País não se dissolveria. Sem Deodoro, a república seria uma aventura militar. Com ele, uma conquista pacífica.
     A 11 de novembro, em presença de Quintino Bocaiúva, Aristides Lôbo, Rui Barbosa, o chefe de esquadra Eduardo Wandenkolk e Benjamim Constant, o Marechal Deodoro da Fonseca dá sua palavra final:
     - Eu queria acompanhar o caixão do imperador, que está idoso e a quem respeito muito. Mas se ele já não governa, não há mais o que esperar da monarquia. Façamos a república.
     E Deodoro assume o comando.

          Rio de Janeiro, é madrugada

     A noite desceu sobre a cidade do Rio de Janeiro. Uma noite igual às outras. Os últimos boêmios que estavam a ouvir canções francesas na Maison Moderne já se foram. O Recreio Dramático está com a platéia vazia e as luzes apagadas, as cervejarias do Largo do Rossio fecharam as portas. A cidade dorme.
     Dorme Isabel, a princesa, em seu palácio nas Laranjeiras. Dorme também o Conde d’Eu, comandante-geral da Artilharia e marechal do Exército. Dorme arquejante Deodoro, cujo estado de saúde se agravou. Dormem muitos conspiradores, que aguardam chegar o dia 20, data marcada para fazer a república.
     Os quartéis, entretanto, estão em atividade. Espalhara-se pela guarnição o boato de que Quintino Bocaiúva e Aristides Lôbo tinham sido presos, e que Benjamim Constant e Deodoro da Fonseca também o seriam. Revolta-se o I Regimento.
     Por isso, Ouro Preto não dorme. Informado, comanda a resistência. Segue para o Arsenal da Marinha e de lá para o Quartel-General, onde se reunirá o Ministério.
     Também os conspiradores vão sendo avisados e não pretendem perder a oportunidade. Os alunos da Escola Militar da Praia Vermelha aderem aos republicanos. Benjamim Constant providencia apoio da tropa do quartel de São Cristovão, que sai às ruas.
     Três horas da manhã. Alguém acorda Deodoro e conta-lhe a situação. O velho marechal esquece a doença. Levanta-se, veste-se, arma-se de um revólver. Falta-lhe apenas a espada: o ventre dolorido não lhe permitia suportar o peso.
     Próximo ao gasômetro, Deodoro encontra-se com as tropas de São Cristovão e dirigem-se para o Quartel-General. Em pouco, a sede do Ministério estava sitiada pela artilharia. Deodoro, a cavalo, vê chegar a carruagem de um ministro retardatário, o Barão de Ladário, e manda detê-lo. Ladário reage e cai ferido por uma bala. Mostrava-se a determinação republicana.
     Do outro lado, a obstinação dos monarquistas. Ouro Preto pretende resistir. Manda que o Marechal Almeida Barreto assuma a defesa do Quartel-General. Em obediência, Almeida Barreto sai à frente de uma coluna. Defronta-se com Deodoro. Conversam, o monarquista hesita e, por fim, cede. Apoiaria Deodoro. Ouro Preto joga sua última cartada. Em termos ásperos, ordena ao ajudante-general que vá rechaçar os atacantes com os meios de que dispõe. Mas ele lhe responde: “Os galões que possuo, Exa., foram ganhos nos campos de batalha e não por serviços prestados aos ministros”. Era Floriano Peixoto.
     Ouro Preto, velho homem de Estado, sabe agora que a causa está perdida. Não se rende. Aguarda apenas que Deodoro invada o quartel e decida seu destino. O marechal ataca e não encontra resistência. Dirige-se a Ouro Preto e deixa extravasar sua mágoa:
     - Os demais estão livres, mas os senhores dois (Ouro Preto e Cândido Oliveira, ministro de Guerra) estão presos e serão deportados para a Europa... Vossa Excelência, senhor visconde, é homem teimosíssimo, mas não tanto quanto eu...
     Nenhuma palavra contra o Império. Deodoro monta outra vez a cavalo e põe-se à frente da tropa. Era a alvorada de 15 de novembro. A notícia da queda do Ministério já começara a circular. Uma multidão se comprimia pelas ruas próximas. Deodoro da Fonseca arranca o quepe e o agita no ar com um grito: “Viva a República Brasileira”.
     A multidão aplaude. Nenhuma resistência. Estava feita a República. Só faltava avisar a família imperial, que ainda dormia.

          Um Governo apenas provisório

     Exatamente um ano depois, a 15 de novembro de 1890, o novo regime submete-se pela primeira vez às urnas, para a eleição de uma Assembléia Constituinte. Nesse intervalo, sob a expectativa simpática da população, o Brasil vinha sendo administrado por um governo provisório, cuja principal missão era garantir a ordem, a liberdade e os direitos do cidadão.
     Deodoro, à frente do Governo, formara um Gabinete que se revelara uma autêntica fábrica de leis. No curto espaço de um ano criava-se o regime federativo, a Igreja separava-se do Estado, instituía-se o casamento civil, concedia-se nacionalidade brasileira a todos os residentes estrangeiros que a solicitassem, regulamentava-se o trabalho industrial dos menores e reformavam-se a lei hipotecária, a lei de falência e o Código Penal.
     De permeio, a inexperiência política de Deodoro levava também a erros, que provocariam ressentimentos. O ministro da Fazenda, Rui Barbosa, apresentou um plano para a criação de bancos emissores no Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre. Transformado em decreto, a despeito da oposição de alguns setores do Governo, tal plano deu lugar a violenta especulação financeira e acabou por levar a nação a uma crise econômica, que ficou conhecida como o Encilhamento, e cujos efeitos negativos ainda se fariam sentir quinze anos depois.
     A faceta autoritária de Deodoro manifestara-se na discussão desse decreto. Como seus ministros não chegassem logo a um acordo, ameaçou renunciar.
     O decreto aprovado custou a demissão do Ministro Demétrio Ribeiro, que a ele se opunha.
     Não obstante, Deodoro era uma figura popular e estimada na cidade. Outorgam-lhe o título de generalíssimo, que ele aceita como uma homenagem natural. As audiências que concedia ao povo no Itamarati tornaram-se célebres.
     A candidatura de Deodoro à presidência é lançada antes mesmo da eleição da Constituinte. Os homens da República parecem unidos em torno de Deodoro. Todos os ministros de seu Governo que se candidatam são eleitos, como também seus dois irmãos, Hermes e Pedro Paulino, e um sobrinho.
     No entanto, essa coesão era aparente. Na eleição para a mesa da Assembléia, as cisões começaram a aparecer. Saldanha Marinho, velho senador, era o candidato natural. Porém, os representantes dos cafeicultores conseguiram eleger Prudente de Morais. Um decreto de Rui Barbosa omitira, no primeiro momento, São Paulo entre os Estados merecedores de um banco emissor. Com isso, agastaram-se os paulistas, principalmente Campo Sales, com o apoio da facção gaúcha de Demétrio Ribeiro. A vitória que obtiveram pela liderança na Assembléia fazia prever o surgimento de um bloco de oposição.
     Finalmente, a primeira Constituinte republicana é promulgada a 24 de fevereiro de 1891. Divulga-se então os oposicionistas que Deodoro pretendera “sancionar” a Constituição. Conta-se que só a ação rápida do deputado governista Lopes Trovão impediu a publicação do decreto absurdo na imprensa oficial. No dia seguinte, 25 de fevereiro, a Assembléia reunida escolhia o presidente da República. Deodoro foi eleito por pequena diferença.

          Uma estranha festa

     Deodoro jurara que, quando fosse eleito presidente da República, tomaria posse com a farda de marechal e todas as condecorações que recebera. Pouco lhe importava que a Constituição houvesse abolido as distinções imperiais. Suas medalhas, ele as ganhara no campo de batalha, no inferno da metralha e à custa de sangue.
     Pouco se lha dava que fosse uma afronta à República. A República também o afrontara. Exemplo haviam sido as eleições. Não fosse por temor à tropa e talvez essa Assembléia houvesse eleito Prudente de Morais. Ele, que fizera a República, era escolhido por pequena margem. O vice-presidente, Floriano Peixoto, ligado aos jovens oficiais, elegera-se com uma votação muito superior.
     Alarmados, os governistas enviam a Baronesa das Alagoas, cunhada de Deodoro, para convencê-lo a abandonar a idéia. Pronto para a cerimônia, Deodoro não cede.
     A baronesa impacienta-se e resolve retirar ela mesma as grã-cruzes, placas e medalhas, desprendendo-as da farda de Deodoro. O marechal consente indignado, e nesse estado de espírito prepara-se para a posse.
     Era o dia seguinte à eleição. Os salões do Itamarati e a Rua Larga de São Joaquim apinhavam-se de gente.
     Fora do salão nobre, Deodoro acompanha o discurso de abertura proferido pelo presidente da Câmara, Prudente de Morais. É um discurso curto e frio.
     Finalmente, às 13h10, Deodoro entra no salão nobre. Algumas palmas são logo abafadas por imperiosos pedidos de silêncio.
     Deodoro tem a impressão de que alguma coisa se prepara contra ele. E a afronta surge com a entrada do vice-presidente, Floriano Peixoto. Uma ovação formidável o saúda. Palmas e palmas. É clara a provocação a Deodoro e o velho marechal empalidece. A custo contém-se para pronunciar o juramento de praxe.
     E assim tomou posse o primeiro presidente eleito da República do Brasil.

          Um cativo depois da abolição

     Deodoro impôs sua vontade ao Ministério até 15 de junho de 1891, quando se instalaram os trabalhos do Legislativo. Depois disso, o Parlamento o amarrou. Campos Sales chefiava a oposição, e Prudente de Morais, como vice-presidente do Senado, combatia sistematicamente os projetos do Governo. O Legislativo rejeitava todas as iniciativas presidenciais. Deodoro, em réplica, vetava os projetos que lhe chegavam às mãos. A república estava num impasse.
     O Ministério chefiado pelo Barão de Lucena era alvo de violentos ataques. Aníbal Falcão afirmava na Câmara:
     - Ficamos sob o látego do Sr. De Lucena! Já se foi o tempo dos senhores de engenho, da Câmara dos Servis, dos césares caricatos e dos barões assinalados!
     Procurando permitir a Deodoro um acordo político com a oposição, o Ministério exonerou-se.
     Mas o marechal não se dispunha a negociar. Se o Congresso não se subordinava e queria luta, teria luta. Não aceitou a demissão dos ministros:
     - Como se pretende tolher-me o direito de conservar um Ministério que merece minha inteira confiança?
     E voltou ao ataque:
     - Isso que aí temos não é um Congresso Legislativo, mas um ajuntamento anárquico que deve desaparecer para a felicidade do Brasil.
     Manda que seus batalhões tomem os edifícios da Câmara e do Senado. A 3 de novembro 1891, afrontando a Constituição, Deodoro dissolve o Parlamento e assume poderes absolutos.
     A parada militar do aniversário da República seria um fato importantíssimo. Corriam boatos de uma rebelião no Rio Grande do Sul, e a parada demonstraria a unidade militar. A doença dera a Deodoro uma noite de padecimentos. Não tinha forças para levantar-se e dois ordenanças tiveram de carregá-lo até a sala.
     O velho marechal vencia suas dores para comparecer à cerimônia. Faltava-lhe, no entanto, a companhia do vice-presidente. Floriano Peixoto não compareceu ao desfile. Dele só se recebeu um aviso lacônico: “A farda que tenho não está capaz”.
     A unidade do Exército estava ameaçada.
     Alastra-se a rebelião gaúcha. No Rio de Janeiro, os ferroviários entram em greve. Quintino Bocaiúva e o Almirante Wandenkolk estão presos, mas outro almirante, Custódio José de Melo, foge para o encouraçado Riachuelo e declara-se em rebelião.
     Na madrugada de 22 de novembro, os ministros permanecem indecisos. Deodoro dorme depois de violentos ataques de dispnéia. Somente às 6 horas da manhã é informado da situação. Arma-se imediatamente e prepara-se para reagir. Lucena faz-lhe ver que sua saúde não suportaria mais esse esforço e aconselha-o a desistir.
     Deodoro ouve de cabeça baixa e parece refletir. Finalmente, exclama:
     - Lamenha, diga a Saldanha que julgue sem efeito as ordens dadas.
     E a outro:
     - Lôbo Botelho, diga a Floriano que venha falar-me.
     Ao receber Floriano, passa-lhe o Governo e pede sua reforma dos serviços das armas. Aos 64 anos, Deodoro, afinal, cedia. E disse, ao assinar o termo de renúncia:
     - Acabo de assinar a carta de alforria do derradeiro escravo do Brasil.

          Nada mais. Só o fim

     Passa os dias numa poltrona, imóvel, o olhar perdido. Os poucos movimentos são para acariciar Tupi, seu pequeno vira-lata de pêlo branco.
     Os dias passam. Deodoro talvez pense nos antigos bailes onde comandava o compasso: “Les dames en avant, les chevaliers em arrière”. Os olhos longe, quem sabe estarão vendo uma pequenina rebelião, na perdida cidade das Alagoas? O sorriso é certamente para a lembrança de uma das muitas mulheres que cortejou. A última paixão foi a gaúcha J.B., de “olhos negros fatais, mas bem-amados, que zangados ferem, que sorrindo matam”. Um riso mais largo. Lembra-se de outro escrito seu: “A Guerra do Paraguai por um português – 10 décimas de grande comicidade, assim como várias cançonetas saltitantes e brejeiras que nunca foram divulgadas, por impróprias”.
     Já não usa farda e nem sai de casa. Coloca todas as fitas e condecorações numa lata que pretende atirar ao mar.
     Entre 19 de janeiro de 10 de abril de 1892, velhos companheiros de farda ainda voltam-se para ele, preparam-lhe manifestações, querem sua ajuda para enfrentar Floriano. Mas Deodoro está morrendo.
     Na manhã de 23 de agosto de 1892, Deodoro parecia um pouco melhor. Conseguira falar com a esposa e se confessara. Respirava mais livremente, sem aflição. De repente, os olhos rolam nas órbitas. O irmão segura-lhe o pulso. Deodoro morreu.
     Foi um dos maiores funerais que o Rio de Janeiro já conheceu. Presentes amigos e inimigos: Custódio de Melo, Rui Barbosa, Campos Sales, Saldanha da Gama, Serzedelo Correia. Atrás do coche fúnebre, cabisbaixo, segue Floriano Peixoto.
     No esquife, Deodoro em trajes civis, conforme seu desejo expresso. Sem insígnias ou condecorações. Nenhuma das honrarias que recebeu está consigo. No último momento, ele que fora tão afeito às homenagens, que lutara por usá-las em desobediência à Constituição, desprezou-as.
     Não queria consigo lembranças do poder e da glória passada. Nem mesmo os símbolos do heroísmo.
     Sobre seu peito apenas uma pequena medalha sem valor. Quase um pedaço de lata. Só ela o acompanharia ao túmulo. Só ela Deodoro quisera manter como símbolo de uma longa existência. Das suas muitas aventuras, só desejou levar aquela recordação. Fôra sua última decisão.
     A banda de música da Brigada Policial executa uma marcha fúnebre. Os militares perfilam-se. No Campo de Santana, um caixão baixa à sepultura. Dentro, o Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, herói de muitas batalhas, proclamador da República e seu primeiro presidente. Sobre o seu peito, a humilde medalha da Confederação Abolicionista.



MARECHAL DEODORO é um fascículo encadernável da coleção GRANDES PERSONAGENS DA NOSSA HISTÓRIA, integrante do volume III.
Uma edição da ABRIL CULTURAL.
Editor VICTOR CIVITA.
Copyright mundial, 1969, Abril Cultural Ltda.
O texto foi elaborado à base de monografia do seguinte colaborador:
SUELY ROBLES REIS QUEIRÓS, assistente do curso de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

    

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A CIDADE DE CONSTANTINO


     Quase mil anos antes de Constantino decidir-se a fazer de sua nova capital uma cidade cristã localizada no Oriente, um colonizador grego chamado Bizas zarpou de Mégara e, rumando para nordeste, cruzou o Egeu. Passou pelo sítio da antiga Tróia, depois penetrou nos Dardanelos e atravessou o mar de Mármara. Afinal chegou à entrada do Bósforo, o estreito canal que serpenteia numa extensão de 30 km entre uma dupla cadeia de colinas rochosas cobertas de arbustos para desembocar no mar Negro.

     Antes de partir, Bizas perguntou ao oráculo de Delfos onde devia estabelecer sua nova cidade colonial. Com a ambigüidade usual, respondeu-lhe o oráculo: “Em frente aos cegos”. Só ao chegar ao Bósforo compreendeu Bizas o que o oráculo queria dizer: na margem asiática, fronteira à península escarpada e triangular que rematava a massa continental européia, antigos colonos gregos já haviam fundado uma cidade – Calcedônia. Eles é que deviam ter sido cegos, pois só os cegos não notariam a evidente superioridade do local situado a mais ou menos um quilômetro, na margem oposta. Foi ali que Bizas fundou sua cidade, a qual tomou dele o nome. Bizâncio chamar-se-ia ela até o momento em que Constantino, o Grande, a transformasse em sua nova capital, denominando-a Nova Roma. Mas tarde, porém, tornou-se conhecida como Constantinopla, cidade de Constantino.  O nome de Bizas passaria à História como a designação moderna da civilização imperial que Constantino instituiu.

     A cidade de Constantino erguia-se num belo sítio dotado de defesas naturais e vantagens comerciais. Dominava a rota marítima norte-sul, da Rússia ao Mediterrâneo. Ao longo desta rota, saindo dos portos da Rússia meridional e do Danúbio, e atravessando o mar Negro, os navios transportavam trigo e peles, caviar e sal, mel e ouro, cera e escravos. Do sul, dos ricos jardins da Anatólia e dos celeiros do Egito, vinham víveres para alimentar a crescente população da cidade.

     Constantinopla situava-se no ponto em que as rotas terrestres que ligavam a Ásia à Europa Oriental encontravam sua mais estreita passagem marítima. Assim, para o por Constantinopla, procedentes de lugares tão distantes como a Índia, o Ceilão e a China, carreavam-se marfim e âmbar, porcelana e pedras preciosas, sedas e damasco; aloés e bálsamo, canela e açúcar, almíscar e gengibre, e muitas outras especiarias e medicamentos. A oeste da cidade havia outros distritos férteis onde floresciam uvas e cereais, e as águas do Bósforo e do mar de Mármara, que banhavam as praias da cidade, eram extremamente piscosas.

     Impressionantes eram as defesas com que a natureza brindara a cidade. Ao sul estendia-se o mar de Mármara, e, quase no ponto em que o Bósforo desaguava nesse mar, uma estreita enseada avança ao longo da costa setentrional da península triangular para formar um perfeito porto abrigado. É o Corno de Ouro, assim denominado por causa de sua configuração e da riqueza que o comércio do mundo depositou em suas docas. Como observou Procópio, escritor bizantino de VI século, o Corno de Ouro “é sempre calmo, sendo feito pela natureza de modo a nunca ser tempestuoso, como se se houvessem traçado limites aos vagalhões e fechado as portas ao mar encapelado em homenagem à cidade. E no inverno, quando ásperos ventos desabam sobre o mar e o estreito [o Bósforo], tão logo os navios alcançam a entrada da baía, podem prosseguir sem prático e atracar facilmente. Toda a baía mede uns oito quilômetros de comprimento e toda ela é porto, de sorte que quando um navio lá ancora, a popa fica a flutuar na água enquanto a proa assenta em terra firme, como se os dois elementos rivalizassem um com o outro no desejo de prestar o maior serviço à cidade”.

     Quando resolveu trasladar de Roma a capital, Constantino resolveu também fazer da nova capital outra Roma, se possível mais suntuosa que a antiga. Como Roma, Constantinopla era uma “cidade de sete colinas”, e, como Roma, a cidade dividia-se em 14 distritos. Da velha Roma, Constantino trouxe o talismã sagrado do Império Romano, o Paládio, estátua de madeira de Palas Atenéia que se acreditava tivesse caído do céu e tivesse sido transportada por Enéias de Tróia para a Itália. Também trouxe da antiga capital membros de famílias nobres para constituírem uma nova classe senatorial, e instalou-os em belas vivendas.

     Os principais edifícios imperiais foram construídos segundo modelos romanos. Todas as estátuas e outras obras de arte antiga em que pôde pôr as mãos, Constantino transferiu para sua cidade. Entre elas havia obras-primas como o chamado javali de Calidon e a coluna serpentina de Delfos, na qual se tinha inscrito os nomes das cidades gregas que derrotaram os persas em Platéia, no ano 479 a.C.

     Num único aspecto importante Constantinopla não era uma imitação da velha Roma, pois iria ser uma cidade cristã. Constantino iniciou a construção de Hagia Sophia (a Igreja da Santa Sabedoria) e concluiu muitas outras, inclusive a Igreja dos Santos Apóstolos. Nessa última, entre os 12 túmulos simbólicos dos apóstolos, colocou um 13º túmulo – o seu. Aí também foram enterrados muitos imperadores subseqüentes, visto que todos os imperadores bizantinos eram considerados como “os iguais dos apóstolos”.

     Em todos os lugares de sua nova cidade Constantino introduziu emblemas Cristãos, como cruzes e relíquias dos santos. Outros objetos ligados à nova fé – a enxó com que se supunha ter Noé construído a arca, o nardo com que se dizia ter Maria Madalena ungido os pés de Cristo – Constantino emparedou ao pé de uma coluna gigantesca. Esta coluna, constituída de seis grandes tambores de pórfiro cinzelados com folhas de louro circundantes, foi erigida no centro de um imponente foro elíptico, pavimentado com mármore e rodeado de colunatas. Era este o Fórum de Constantino.

     Com o passar dos anos, colunas, estátuas, monumentos comemorativos e objetos sagrados relacionados com a fé cristã multiplicaram-se pela cidade. Muitos reportavam-se expressamente à Virgem Maria, que era considerada a protetora especial  da cidade. “Não se acharia um lugar público ou habitação imperial, uma estalagem respeitável ou moradia particular de alguma autoridade onde não houvesse uma igreja ou um oratório da Mãe de Deus”, disse mais tarde um estudioso desse período. Numa igreja localizada na extremidade noroeste das muralhas do lado de terra, num ponto chamado Blachernae, guardava-se uma das mais preciosas dentre todas as relíquias da cidade, o manto da Virgem, que fora trazido da Palestina para Constantinopla no tempo de Leão I (457-474). Aí também havia um milagroso ícone da Virgem, coberto por um véu que, segundo se dizia, às vezes se abria misteriosamente para mostrar a imagem que recobria.

     Em outra igreja consagrada a Maria achava-se seu cinto, relíquia que operara grande número de milagres. Em fases de perigo, como nos muitos assédios suportados pela cidade, essas relíquias e ícones da Virgem desempenhavam importantíssimo papel. Durante um ataque dos russos em 860, quando a cidade se viu privada de toda esperança, foi o manto da Virgem levado em procissão ao redor das muralhas e ameias, e os russos abandonaram o cerco.

     “Em verdade”, escreveu uma testemunha contemporânea, o Patriarca Fócio, “esta sacratíssima veste é o manto da Mãe de Deus! Abarcou as muralhas, e os inimigos inexplicavelmente fugiram; a cidade envolveu-se nele, e o acampamento do inimigo dispersou-se como a um sinal convencionado; a cidade adornou-se com ele, e o inimigo viu-se despojado das esperanças que o animavam. Pois assim que o manto da Virgem passou em volta das muralhas, os bárbaros abandonaram o cerco e levantaram acampamento, enquanto nós nos livrávamos da captura iminente e obtínhamos inesperada salvação”.

     De todas as partes do mundo cristão foram trazidas relíquias para a capital. Estavam depositadas em igrejas, santuários e capelas, encerradas em caixas de ouro e prata, ornamentadas com pedras preciosas, muitas vezes embrulhadas num pano de seda. A cidade tornou-se um imenso relicário. Aqui estava a roupa branca usada pelo Menino Jesus, ali o manto coberto de sangue usado por Cristo na Cruz, a lança que lhe traspassara a ilharga, a Coroa de Espinhos, e a pedra do Túmulo; aqui repousavam as veneradas relíquias dos Apóstolos São Lucas e Santo André. E do companheiro de São Paulo, São Timóteo, e a cabeça de João Batista.

     O começo oficial de tudo isto data de 11 de maio de 330, dia da inauguração da cidade. Naquele dia uma estátua de Apolo – cuja cabeça fora substituída por uma cabeça de Constantino – foi içada no topo da coluna do Fórum. A estátua de Constantino-Apolo, tendo na mão direita um cetro e na esquerda um globo representando o mundo, sobreviveu até os primeiros anos do século XII, quando caiu em meio a uma tempestade e foi substituída por uma cruz de ouro.

     As atividades construtoras de Constantino foram intensas. Empregando mármore trazido das ilhas do mar de Mármara, e madeira das florestas que margeavam o mar Negro, ele ampliou o Hipódromo, construído pouco mais de um século antes por Setímio Severo. Uma lista compilada mais ou menos um século depois enumerava, entre os edifícios da cidade na época, dois teatros, oito banhos públicos e 153 privados (inclusive os famosos Banhos de Zeuxipo, também iniciados anteriormente), 52 pórticos, cinco celeiros, oito aquedutos ou cisternas, 14 igrejas, 14 palácios e 4.388 casas suficientemente grandes para serem mencionadas.

     Sob a pressão do crescimento da população, a área da cidade dilatou-se a ponto de abarcar outra língua de terra que se estendia entre o Corno de Ouro e o mar de Mármara. No século V, para defender essa expansão para o interior, construiu-se uma enorme linha tríplice de muralhas de cerca de cinco quilômetros de comprimento. Suas ruínas ainda podem ser vistas. Muralhas mais antigas tinham sido construídas ao longo da praia do mar de Mármara e do Corno de Ouro, de modo que a cidade se tornou praticamente uma fortaleza cercada.

     A maior modificação na aparência física de Constantinopla ocorreu no século VI, quando algumas das maiores glórias arquitetônicas do mundo bizantino foram construídas sob os auspícios do Imperador Justiniano. A oportunidade, e necessidade, de um grande surto de edificação foi proporcionada em 532 por tumultos seguidos de um incêndio que ardeu durante cinco dias e deitou por terra metade da primitiva cidade. Muitos dos principais edifícios públicos erigidos por Constantino e seus sucessores – inclusive a igreja central, Hagia Sophia – foram destruídos.

     Justiniano, sem perda de tempo, mandou remover o entulho e os restos carbonizados de edifícios cujas partes internas tinham sido consumidas pelo fogo. Convocando os maiores arquitetos que pôde encontrar – Isidoro de Mileto e Antêmio de Trales foram dois dos mais importantes – passou a trabalhar com uma energia que parecia sobre-humana a fim de reparar o dano. Justiniano pôs o selo da magnificência imperial na cidade. Reedificou inteiramente Hagia Sophia e empreendeu um vasto programa de construções públicas. Imperadores subseqüentes deram outras contribuições, tais como a ampliação do Palácio Imperial, a ereção de outra igreja, a ornamentação de um foro, o planejamento de um jardim público. Mas, em suas feições principais, a cidade ficou como Justiniano a deixou, até o momento em que foi tomada pelos turcos em 1453.

     Que a cidade apresentava uma visão espetacular nós o sabemos pelos comentários de viajantes de épocas posteriores. “Oh que esplêndida cidade”, exclamaria Foucher de Chartres no século XI, “quanta imponência, quanta beleza, quantos mosteiros, quantos palácios erguidos pelo mero prazer do trabalho em suas ruas e avenidas, quantas obras de arte maravilhosas de contemplar; seria cansativo dizer da abundância de todas as coisas boas; do ouro e da prata, dos trajes dos mais variados estilos, e de tantas relíquias sagradas. A todo momento entram navios neste porto, de modo que não há nada de que os homens necessitam que não seja trazido para cá”. Naquele período o Corno de Ouro era o porto das barcas dos dálmatas ou croatas, dos caíques vindos das ilhas gregas, das altas galés de Gênova, Veneza ou Amalfi, dos leves faluchos do leste, e das enormes dromundas da frota imperial bizantina, equipadas com tubos para projetar o misterioso “fogo grego”, arma secreta dos bizantinos.

     Dentro das grandes muralhas que circundavam a cidade havia algumas avenidas e um denso labirinto de ruas estreitas. Muitas dessas ruelas não podiam acomodar uma carroça de bom tamanho, e assim as mercadorias eram geralmente transportadas em camelos, muares, ou nas costas dos homens. Era comum ver-se um homem – ou mesmo uma criança – com o dorso em posição horizontal para suportar uma carga pesada, amarrada nas costas. Era muitas vezes mais barato e mais simples contratar um homem para transportar alguma coisa do que arranjar um animal para fazer o serviço. As ruas também estavam cheias dos pregões dos mascates oferecendo artigos os mais diversos, e de mercadores que iam de casa em casa vendendo pão, verduras e peixe fresco.

     Constantinopla não tinha quarteirões residenciais elegantes e isolados. As casas dos ricos eram quase sempre ladeadas por modestas moradias da classe média ou mesmo pelos telheiros dos pobres. Todavia, aos ricos era possível preservar certo grau de isolamento porque suas casas apresentavam à rua um muro de pedra quase sem abertura, enquanto os quartos davam para um pátio interno. O pátio tinha invariavelmente uma fonte e era quase sempre esmeradamente ajardinado. Mantidos por numerosos escravos e criados, os interiores dessas mansões ostentavam um esplendor de mobiliário chapeado de ouro com incrustações de marfim, tetos dourados e vestíbulos sustentados por pilares. Os cidadãos moderadamente prósperos em geral moravam em sobrados de madeira com sacadas de onde as matronas e as moças enclausuradas podiam ver o movimento da rua. Os pobres apinhavam-se em quartos de porões ou nos blocos de cortiços espalhados pela cidade. Como observou maliciosamente outro visitante francês, Odon de Deuil, “os ricos cobrem as vias públicas com suas construções e deixam os esgotos e os lugares escuros para os pobres e forasteiros. Aí cometem-se assassinatos, roubos e todos os crimes que infestam a escuridão...”

     Contudo, mesmo para os pobres o abastecimento de água – tão importante num clima mediterrâneo – era abundante. Canalizada das colinas circundantes para a cidade, através de aquedutos, a água era armazenada em muitas cisternas abertas e cobertas. Daí era encanada para fontes localizadas em esquinas de ruas e nas praças públicas, onde todos podiam servir-se dela, de graça. Os despejos dos esgotos e as águas servidas eram levados das casas para o mar por meio de um complicado sistema de drenagem subterrânea. A cidade possuía muitos banheiros públicos, abertos para homens e mulheres em horários diferentes; cuidados médicos e hospitalares eram proporcionados pelo governo e pela Igreja àqueles que não podiam pagar. Apesar dessas precauções, as enfermidades propagavam-se rapidamente e cobravam sempre um terrível tributo.

     A principal rua da cidade, que se estendia das muralhas do oeste quase até aos portões do Palácio Imperial, chamava-se Mesê, ou Rua do Meio. Orlada de pórticos colunários e interrompida por praças monumentais que continham as estátuas de imperadores e imperatrizes, era a estrada real. Todas as procissões imperiais mais importantes seguiam a Mesê. Nela também se achavam muitas das lojas elegantes da cidade, repletas de produtos das indústrias de luxo de Bizâncio: sedas e brocados, artigos de cobre e de ouro, couro e vidro, jóias e relicários. No ponto em que a rua terminava, perto do Palácio Imperial, os perfumistas tinham suas tendas, de modo que, no dizer de um escritor da época, “os doces perfumes podem elevar-se no ar (...) e ao mesmo tempo impregnar o vestíbulo do Palácio Imperial”.

     Era também nessa rua que se podia melhor observar um pouco da variedade da população da cidade, que se calcula tivesse uns 600.000 habitantes no tempo de Justiniano. Os moradores formavam um agrupamento inteiramente cosmopolita. Havia naturais da Capadócia e da Frígia, búlgaros de cabelo à escovinha e persas de turbante, judeus da Palestina e sírios de Damasco, ilírios, armênios e godos. Por volta do século IX poucos residentes podiam ufanar-se de pura linhagem grega ou romana; a maioria descendia de um amálgama dos muitos povos que o Império Bizantino abarcava. Os critérios de cidadania eram simplesmente o uso do grego na fala diária e a filiação à Igreja Ortodoxa.

     Mas, à parte a base cosmopolita de seus moradores, a cidade, como próspero porto marítimo e capital do mais vasto império do mundo, atraía de muito longe todos os tipos de visitantes. Da Britânia, da Espanha e da Gália, da Escandinávia e da Rússia, da Pérsia, da Arábia e da África vinha uma multidão de mercadores, marujos, diplomatas e viajantes. Misturando-se nas ruas com os bizantinos, cujas vestes eram simples, esses visitantes de trajes exóticos – mantos de cores brilhantes, peles, estranhos penteados – e de línguas desconhecidas, despertavam considerável atração. Também se podiam ver nas ruas os inúmeros escravos, amiúde prisioneiros capturados na guerra, que executavam os serviços domésticos em Bizâncio.

     De quando em quando, na rua principal, um dignitário da corte, envergando um traje de seda com brocados, passava a cavalo, ou uma dama abastada passava reclinada numa carruagem esplendorosamente ornamentada e puxada por mulas. Muito provavelmente estava ela a caminho dos Banhos de Zeuxipo, onde as mulheres elegantes da sociedade se reuniam para exibir vestidos novos e jóias, e comentar as últimas novidades. Nos feriados nacionais e nas celebrações religiosas, a cidade inteira acorria a assistir à grandiosa procissão do imperador e sua corte, acompanhados pelo patriarca e seu séquito. Muitos, na multidão de espectadores, podiam ser reconhecidos pelo tipo de roupa que vestiam: os filósofos geralmente usavam cinzento, os médicos azul, com o cabelo preso numa rede.

     A vida da cidade concentrava-se em torno de três grandes estruturas ou grupos de edifícios: o Hipódromo, o Sagrado Palácio Imperial e a Igreja de Hagia Sophia. Representavam os três principais componentes do mundo bizantino: o povo, a autoridade imperial e a religião. Apropriadamente, localizavam-se perto um do outro no planalto central e nas encostas meridionais e orientais do promontório em que se erguia a cidade. Aí fechavam por três lados a principal praça pública, o Augustacum, amplo pátio retangular calçado com lajes de mármore escuro e rodeado por uma colunata. Aí também um futuro imperador era levantado num escudo e aclamado pelos nobres e pela plebe ao ser conduzido à coroação em Hagia Sophia. Aí ainda assomava uma enorme estátua eqüestre de bronze do Imperador Justiniano, envolto na chamada armadura de Aquiles, usando um elmo emplumado e sustentando na mão esquerda um globo, o que significava, conforme escreveu Procópio, que toda a terra e o mar estavam subordinados a ele.

     O Hipódromo, depois de ampliado por Constantino, tinha lugar para cerca de 60.000 espectadores: media então 430 m de comprimento por cerca de 160 m de largura. Pelo centro passava a spina – a espinha dorsal – uma baixa barreira de pedra com três cones em cada extremidade, que assinalavam os momentos decisivos da corrida. Em toda a extensão da crista da spina assentavam obras de arte antiga. Uma dessas era um alto obelisco monolítico de pórfiro, que viera do Templo de Karnak, no Egito. Posto nessa posição no Hipódromo em 390, ainda lá se encontra sobre uma base ornada com um baixo-relevo que mostra o imperador e sua família no camarote real durante os jogos.

     Também ainda de pé está o chamado obelisco de Constantino VII Porfirogeneta. Revestido outrora de placas de bronze adornadas de baixos-relevos, é hoje apenas uma alta e fina coluna de alvenaria. Um terceiro monumento que ornamentava a spina e do qual ainda resta alguma coisa é a coluna serpentina de bronze, trazida de Delfos por Constantino, o Grande. Originalmente consistia em três serpentes entrelaçadas cujas cabeças sustentavam uma trípode de ouro. Hoje restam apenas uns seis metros e meio do que era provavelmente uma coluna de nove metros.

     Na extremidade nordeste do Hipódromo, que se estendia num flanco da praça do Augustaeum, ficava o camarote imperial, o kathisma. Dali o imperador e os altos dignitários da corte (embora não a imperatriz, que tinha um lugar especial numa das igrejas do palácio dando vista para o Hipódromo) assistiam às corridas e aos jogos públicos, e presidiam à execução de um criminoso ou à comemoração oficial de uma vitória das armas bizantinas em alguma remota fronteira do Império.

     Flanqueando o Hipódromo a leste e abrindo-se também para a praça do Augustaeum, localizava-se o Sagrado Palácio Imperial, a residência do imperador. Ostentava na entrada um vestíbulo monumental, conhecido como o Saguão de Bronze – o Chalkê – porque o eirado e as portas eram de bronze dourado. Os forros, reconstruídos por Justiniano e restaurados no século IX, estavam recobertos de mosaicos, alguns dos quais mostravam Belisário, o grande general de Justiniano, regressando vitoriosamente a Constantinopla. As paredes e pisos eram revestidos de vistosos mármores: esmeralda, vermelho e branco, entrecortados de ondulantes linhas azuis.

     Atrás do Chalkê surgia o palácio propriamente dito, vasto e tortuoso, a espraiar-se para o sul e sudoeste, descendo as encostas arborizadas do promontório até o mar de Mármara e o Bósforo. Compreendia vários grupos de edifícios entremeados de jardins, terraços, pavilhões de verão isolados, igrejas, fontes, um estádio particular, uma escola de equitação em recinto fechado, um campo de pólo, piscinas de natação e tanques de nenúfares. Havia também despensas, cozinhas, estábulos, dependências de criados, salas da guarda, calabouços.

     Um dos edifícios mais surpreendentes era o Chrysotriclinos, o salão de ouro. Era uma das salas do trono do imperador. O trono achava-se numa abside; acima dele via-se uma imagem de Cristo entronizado, e à frente pendia uma cortina de seda tecida com ouro e ornamentada com pedras preciosas. Em outros pontos do salão havia outros tronos imperiais, uma mesa de ouro e prata para banquetes, canapés, baixelas lavradas, coroas, candelabros, cruzes e vestimentas imperiais.

     Outro palácio tinha o nome de Magnaura. Nele se encontrava o famoso “trono de Salomão”. Situado no topo de seis degraus, era este sólio ladeado por leões de ouro e árvores de bronze dourado, em cujos galhos pousavam pássaros esmaltados e recamados de pedras preciosas.

     O Palácio Novo, construído no século IX e cujo salão principal tinha a forma de uma basílica, possuía uma colunata suntuosa em que oito colunas de mármore serpentino se alternavam com oito de ônix vermelho. A alcova imperial era pavimentada com faixas de mármore irradiadas de um medalhão central que emoldurava um pavão em mosaico. Quatro águias em mosaico abriam as asas ao pé das quatro paredes. As metades inferiores das paredes recobriam-se de placas de vidro multicor e tremeluziam como um campo de flores. Acima dos lambris e em contraste com um fundo de ouro sobressaíam retratos em mosaico de membros da família imperial, as mãos erguidas para a brilhante cruz verde do teto.

     Entre todos esses edifícios e o quebra-mar no sopé da colina, estendiam-se os jardins imperiais. Aqui havia alamedas e fontes sombreadas; de uma destas o vinho jorrava, através de um ananás dourado, numa bacia debruada de prata e cheia de amêndoas e pistácios. Íbis, pavões e faisões vagueavam entre arbustos e flores. Aqui se achava a alcova de pórfiro – ou púrpura – reservada para o nascimento das crianças imperiais, donde proveio o título de “nascido na púrpura” (Porphyrogenitus), conferido aos filhos da família governante. Aqui também se via a monumental escadaria que descia ao ancoradouro privado do imperador, o Boucoleon, onde os barcos reais de excursão e de recreio atracavam em cais de mármore ornamentados com esculturas.

     Mas nem mesmo todos os multiformes esplendores dos palácios, nenhum dos quais perdurou, excediam as magnificências da imponente igreja de Hagia Sophia, reconstruída por Justiniano. Ela sobrevive, servindo hoje de museu, como uma das supremas expressões artísticas do mundo cristão. “Glória a Deus que me julgou digno de concluir esta obra. Salomão, eu te suplantei!” Assim se afirma ter Justiniano exclamado ao contemplar pela primeira vez a imensa majestade do edifício terminado. Celebrou a consagração do templo em 537, com um banquete em que 6.000 carneiros, 1.000 bois, 1.000 porcos, 1.000 galinhas e 500 veados foram assados para o deleite da corte e também da plebe.

     Não se poupou despesa alguma para fazer dessa igreja uma admirável interação de pedra, mármore, luz, cor e espaço. Nenhuma descrição verbal poderá dar mais do que uma pálida idéia da igreja. Possivelmente, o que mais impressiona o visitante é a natureza fluida da arquitetura. Isto se conseguiu mediante a seleção das lajes de mármore que formam o piso e revestem as paredes. Cada laje tem um desenho próprio de veio, um tom e um matiz próprios, e, no entanto foi cortada uma e outra vez até poder harmonizar-se com a vizinha. Por isso, as pedras aparecem como campos de cor alternada, faixas móveis de azul esfumaçado, verde escurecido ou vermelho cálido. Renques de pilares – pórfiro, mármore serpentino verde – formam a nave e sustêm os pequenos arcos que suportam as galerias. Os arcos maiores são encimados por meias-cúpulas, e acima delas avulta a grande cúpula – a cúpula de todas as cúpulas do mundo bizantino. Vista de baixo, dá a impressão de pairar em imponderável indeterminação; como disse Procópio, “não parece repousar em sólida alvenaria, mas cobrir o espaço embaixo como se estivesse suspensa no céu”. Esse efeito é acentuado pela coroa de janelas acima de sua cornija interior, o que faz com que as bases das poderosas nervuras que sustentam a cúpula de Hagia Sophia pareçam menos substanciais; na realidade as nervuras tornam-se mais delicadas à medida que se alteiam até à coroa da cúpula.

     A luz é um dos elementos essenciais que contribuem para o efeito global da igreja. Derramando-se da coroa de janelas da cúpula, transbordando das lunetas nas meias-cúpulas, impregna de fulgor a nave central. À noite os bizantinos davam continuidade a esse jogo de luz por meio de lâmpadas e velas. Milhares de lâmpadas pendiam da cúpula e dos tetos, presas em longas e retorcidas correntes de latão batido, projetando seu clarão no bruxuleante mosaico dourado de abóbadas e arcos, oscilando suavemente sobre as delicadas superfícies do mármore colorido e transformando toda a igreja num deslumbrante facho de luz. Um poeta daqueles tempos, Paulo, o Silenciário, descreve o esplendor da igreja à noite num longo poema escrito para a consagração do templo:

     “Assim, pelos espaços da imponente igreja cruzam-se raios de luz, expulsando nuvens de inquietação e enchendo o espírito de alegria. A luz sagrada a todos anima; até o marujo que conduz seu veleiro sobre as ondas, deixando atrás de si os vagalhões hostis do Ponto enfurecido, e seguindo um curso sinuoso em meio a angras e rochedos, o coração temeroso ante os perigos de suas peregrinações noturnas – talvez tenha deixado o Egeu e guie seu barco de encontro às correntes adversas do Helesponto, aguardando com o estai do traquete retesado a investida de uma tormenta vinda da África – não orienta seu carregado veleiro pela luz de Cinosura, ou pela circulante Ursa, mas pela divina luz desta igreja. No entanto, ela não apenas norteia o mercante à noite, como os raios de Faros na costa da África; também indica o caminho que conduz ao Deus vivo”.


     Hagia Sophia era a glória culminante da cidade que era a capital, e o coração, do mundo bizantino, a “rainha das cidades”. Inquieta mistura de Grécia e Roma, de Europa e Ásia, metrópole do comércio e manancial de cultura, atraiu a si judeus e muçulmanos, russos e italianos, espanhóis e egípcios. Sua arquitetura influenciou a arquitetura eclesiástica de outras cidades históricas: Ravena, Veneza, Kiev, Moscou. Acima de tudo, foi o centro do qual se desdobrou a história bizantina – crônica de esplendor e corrupção, requinte e fantasias, ordem e anarquia, de grandes vitórias e vaidades mesquinhas – história que influiu profundamente na história do mundo civilizado.

     Hagia Sophia, também conhecida como Igreja de Santa Sofia, passou posteriormente por diversas reparações, a primeira delas em 558, quando em conseqüência de um terremoto a torre principal ruiu, sendo restaurada com o aumento de altura. Em 1453, quando da conquista de Constantinopla pelos turcos, foi transformada em mesquita: em cada um dos seus ângulos externos se construíram minaretes, tendo o interior do templo sido adaptado às necessidades do culto muçulmano; as figuras humanas de seus mosaicos desapareceram sob uma camada de estuque. Em 1847-1848 foi completamente restaurada pelo arquiteto Fossati, e em 1926 o domo, que estava em péssimo estado, foi reforçado pelo exterior e teve seu telhado substituído. Hagia Sophia é atualmente um dos mais belos monumentos arquitetônicos do mundo, com os seus quase quinze séculos de tradição e glórias.



A CIDADE DE CONSTANTINO é o segundo capítulo, em um total de oito, do livro BIZÂNCIO, de Philip Sherrard, parte integrante da coleção BIBLIOTECA DE HISTÓRIA UNIVERSAL.
Os demais são NOVA ROMA, CRÔNICA DE UM IMPÉRIO, UM IMPERADOR ABAIXO DE DEUS, A INSTITUIÇÃO SAGRADA, A VIDA DIÁRIA EM BIZÂNCIO, UMA CULTURA FULGURANTE E OS SÉCULOS DERRADEIROS.
BIBLIOTECA DA HISTÓRIA UNIVERSAL é uma edição de TIME INC.
Original English language edition, copyright 1966
Direitos reservados para a lingual portuguesa pela
LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A., Rio de Janeiro
Byzantiun, título original da obra, copyright 1970
O AUTOR: Philip Sherrard, eminente autoridade inglesa em Império Bizantino, doutorou-se na Universidade de Londres em literatura grega moderna e obteve uma bolsa de pesquisa na Universidade de Oxford. Entre suas obras principais destacam-se Athos, the Mountain of Silence; Constantinople: Iconography of a Sacred City; e The Greek East and the Latin West. Viveu com sua esposa grega em Atenas, onde exerceu a função de Diretor-Assistente da Escola Britânica de Arqueologia.
O EDITOR CONSULTIVO: Leonard Krieger, professor de História na Universidade de Columbia, já foi professor de História em Yale; Dr. Krieger é autor de The German Idea of Freedem e The Politics of Discretion, e co-autor da History, escrita em colaboração com John Higham e Felix Gilbert.
A tradução para a língua portuguesa é de José Laurênio de Melo.