terça-feira, 20 de março de 2012

MARCO POLO


                            “SER” MARCO POLO VIAJA PARA AS ILHAS DE CATHAY
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     Além das fronteiras da Europa dos começos do século treze, o continente da Ásia surgia como uma estranha confusão de terras – como o ancoradouro de mitos vivazes, de bestas ferozes e de tribos terríveis. Prestes João tinha ali o seu reino cristão; lá viviam o “roc” e o unicórnio, bem como os adoradores de ídolos; lá existia ouro em grande quantidade, e especiarias de ótimo paladar, nas muito faladas Ilhas das Especiarias, as Ilhas da Fortuna; lá se contemplavam a maravilha e o paganismo, inextricavelmente confundidos.
     Não se deve dizer que a Ásia sempre tivera esse aspecto, aos olhos dos europeus. O mundo mediterrâneo, dos tempos clássicos, tinha realizado aventuras na Ásia, e tinha também feito comércio com a Ásia, conscientemente, deliberadamente, através de longos séculos. A Índia e o Ceilão conheceram os navios romanos e as galés de Tiro; além da própria Índia, como Ptolomeu sabia, existia a nebulosa, mas absolutamente positiva terra geográfica de Seres (que era a China), onde a sêda e o bicho-da-sêda prosperavam. Num determinado tempo, num determinado ponto, os postos avançados dos impérios romano e chinês se haviam tocado, na Ásia sul-central. Os homens lançavam-se olhares sombrios e hostis, uns aos outros. Eram o Oriente imemorial e o Ocidente imemorial, como o espírito romântico poderia visualizar esse encontro, eternalmente coexistente, eternalmente diverso. A grande incursão de Alexandre, na Ásia, tinha dado origem a um fluxo e refluxo do costumes culturais e de motivos escultórios, entre as metades meridionais dos dois continentes: - os ritos, os mitos e os sistemas filosóficos se haviam trocado e intercambiado, pelas rotas de mar e de terra, durante várias centenas de anos; nesse ínterim, Ásia e Europa foram descobrindo-se uma à outra, pela primeira vez na história – é o que se tem dito.
     Todavia, esta segunda crença popular é tão pouco garantida como a crença baseada na hipótese da eterna diferenciação entre o Oriente e o Ocidente. A civilização dos dois continentes – na verdade, de todos os continentes, de um Oeste mais ocidental do que a Europa, de um Leste mais oriental, mas entrado no Levante, do que Chipangu – teve origem comum. Em nenhum dos dois citados continentes se originou aquela civilização, e sim na África, no vale raso do Nilo. Foi de lá que, para leste e para o oeste, e também para o norte, embora pouco para o sul, aquela primeira e primitiva civilização remeteu os grupos de pesquisadores e de colonizadores que ergueram os círculos megalíticos e as “pedras do diabo”, e que armazenaram salinas por toda parte, abarcando o mundo, da Espanha ao Jenissei, das Shetlands ao Alaska. Esses colonizadores construíram as grandes civilizações de Creta e dos vales da Mesopotâmia, as maravilhas da Suméria e de Cnossos, cheia de palácios. Foi da Suméria que os colonizadores pré-semitas partiram, cruzando o teto do mundo, a fim de passar para a Índia, de um lado, para a terra que ainda não era a China, e, de outro, levando consigo as sementes da prática agrícola, bem como da adoração do rei, da religião e da organização de classe, da escravidão e da cultura. Daquelas sementes, brotaram os grandes Estados Dravídicos, os reinos dos rios chineses.
     Durante longos milênios depois desta primeira irrupção da civilização pelo mundo prístino da Ásia, da Europa e da África primitivas, um fluxo e refluxo de costumes culturais e de comércio, bem como de tesouros, fluiu, de cá para lá, entre os continentes irmãos. Mas, em grande parte, parece que isso se passou anonimamente, sem definição nominal. A porcelana, a sêda e o jade chegaram ao Mediterrâneo: - mas procediam de terras mal conhecidas, que ficavam por trás do nome vago da Ásia. E para a Ásia, como agora há amplo número de evidências que o provam, a Europa transmitiu, não somente novos motivos de escultura, de arte e de fabricação de armas, mas também importantes elementos intelectuais de cultura, que desembocaram em duas das maiores religiões do mundo. Lá pelo ano de 540 a.C., quando Tales de Mileto morreu, uma nova coisa surgiu no mundo – a contemplação do mundo, de todos os terrores da vida, da morte e do tempo, através de olhos individuais e de raciocínio independente; a este desenvolvimento, aquele mundo deu o nome de filosofia. Aquilo foi o começo das primeiras rupturas dos vínculos das antigas religiões de fecundidade, que haviam escravizado o espírito dos homens desde o aparecimento da primeira civilização, no Egito. Tales foi, de início, pouco mais do que um simples blasfemo, um solitário antagonista de deuses irracionais, dos Doadores de Vida, que tinham dominado o gênero humano durante três longos milênios. Ainda assim, no espaço de um século, procedendo da Iônia, e procedendo também do outro lado da Ásia, dois códigos, ou credos, de ética não religiosa, muito semelhantes ao de Tales, se difundiram pelo espírito dos homens. Estes códigos foram o Confucionismo e o Budismo, separados pela grande cadeia de montanhas do Himalaia, bem como pelas extensões desérticas da China. As sementes do racionalismo de Tales tinham sido derramadas por inúmeros mercadores e viajores, partindo do Mediterrâneo, para o interior de terras distantes, de línguas e costumes estranhos; as sementes fecundaram-se, cresceram e floriram, produzindo flores e frutos também estranhos, representados pelas filosofias de K’ung-fu-Tze e de Sakya Muni.
     Com a queda do império romano, o conhecimento da Europa, em relação à Ásia, foi, em grande parte, perdido, ou deturpado, sob a influência do mito cristão e do barbarismo cristão. A intolerância religiosa ergueu uma barreira de superstições intelectuais contra a Ásia, embora deixando ainda abertas as rotas de comércio. Contudo, na época da queda do império Romano, também estas rotas foram suspensas, com o aparecimento do Islã, que edificou outra muralha de arrogância e de antipatia contra a Ásia Menor e a Síria, expulsando a Europa das suas antigas (e ainda hoje não extintas) curiosidades, nas terras que ficam além do Tigre. Os mercadores não mais viajaram livremente, entre os extremos daqueles discutidos trechos. A antiga rota marítima para a Índia foi perdida e esquecida.
     Contudo, no começo do século treze, surgiram, daquela Ásia nebulosa, de longa data perdida para o conhecimento europeu, o rumor e o grito de uma grande e inexplicável tempestade. Foi o aparecimento dos invasores tártaros.
     As grandes tribos nômades, beirando as orlas da civilização, na Ásia Central e na Ásia do Norte, tinham se despertado, sob o comando de um dos maiores chefes militares do mundo – Genghis Khan – dando início à conquista da terra para seu proveito. Quase se coroaram de êxito. Os fracos Estados maometanos, próximos da Ásia, foram varridos: - os exércitos tártaros entraram na Rússia e chegaram à Europa. Durante algum Tempo, naquele ano de 1242 depois de Cristo, pareceu que a Europa e a Ásia seriam fundidas num só corpo, para todo o sempre – fundidas pelo sangue tártaro-mongol, e também pela sua espada, num mágico e talvez impossível Estado Mundial. Todavia, o centro do novo poderio mongol era a remota Karakorum, nas fronteiras da China; tratava-se de um domínio militar, inteiramente falho de serviços civis; as estradas e as ligações entre pistas, como teremos ocasião de observar, eram fantasticamente más, naquele grande setor da Ásia central; depois, Genghis Khan morreu. Os tártaros foram chamados pela Ásia, e a Europa respirou, aliviada, mas ainda olhando, atônita, para o oriente, para aquele mundo entrevisto, durante um tentálico momento, quando o lençol de bruma, que dividira os dois continentes, tinha sido atirado fora, ao ímpeto da espora mongol.
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     O véu tornou a fechar-se, sobre a tumultuosa retirada das caravanas tártaras. A Europa desafogada pensou numa outra possibilidade: - os horrendos invasores tinham sido meramente pagãos. Era fato bem notório que eles se apresentavam indiferentes aos seus próprios deuses; os tártaros eram racionalistas e cépticos a cavalo, alegres degoladores de gente, tanto nas mesquitas como nas igrejas. Não seria, então, possível, conquistá-los para a fé cristã – conquistá-los como aliados políticos, contra o maometanismo do Egito e contra a Espanha sarracena?
     Aconteceu que, quais precursores do grande Viajante, com o qual se relaciona este capítulo, dois homens foram despachados para além das orlas daquele véu, pra dentro da remota Ásia, na pista dos tártaros. Encarregado pelo Papa, de entrevistar-se com o Grande Khan, a respeito dos seus pontos de vista sobre a matéria, o franciscano John de Plano Carpini partiu no dia 16 de abril de 1245. Chegou a Kiev em fevereiro do ano seguinte, e, depois, iniciou a travessia da Sibéria. Encontrou-se numa nova terra – a Estepe.
          “Em certos setores dessa parte do mundo, existem pequenos grupos de árvores em plena exuberância; afora isto, porém, a região é inteiramente destituída de florestas. Conseqüentemente, todos se aquecem e preparam suas refeições com fogo feito de estrume. Também o ar, nesta zona, é muito irregular. Em pleno verão, ocorrem grandes trovoadas, com raios, e, ao mesmo tempo, cai grande abundância de neve... Observam-se, com freqüência, intensos desabamentos de granizo. Da mesma forma, na estação quente, registra-se, de súbito, um calor extremo, e, logo depois, de novo, um frio intolerável”.
     Ele observou, a respeito dos mongóis:
          “As suas moradias são redondas, e habilmente construídas com tecidos espessos e ripas, à guisa de tendas. Mas, no meio do topo, existe uma janela sempre aberta, para permitir a entrada da luz e para a expulsão da fumaça. Porque o fogo fica sempre no meio do chão. As paredes são cobertas de feltro. Alguns destes tabernáculos podem ser desmontados rapidamente, e armados de novo. E são conduzidos no dorso de animais. Outros não podem ser desmontados, e são transportados em carretas. E, seja para onde for que eles se dirigem, tanto para a guerra, como para qualquer outro lugar, levam os seus tabernáculos consigo... E pensam que possuem mais cavalos e éguas, do que o resto do mundo inteiro”.
     O franciscano atravessou a depressão Ural-Cáspia, a caminho da bacia do Syr Darya; daí, seguiu pelo prolongamento ocidental das montanhas Tian Shan, passando por uma terra
          “cheia de montanhas, e, em alguns outros pontos, plana e macia, mas por toda parte arenosa e estéril, não sendo fecunda sequer uma centésima parte dela... Por tal motivo, ali não existem aldeias, nem cidades, com exceção de uma que se denomina Cracurim, e que se diz que é uma verdadeira cidade”.
     Entretanto, ele, em pessoa, nunca penetrou na “verdadeira cidade” de Karakorum. Deteve-se em Syra Orda, durante três meses, a fim de remeter a resposta de Khan à carta do Papa – uma resposta singularmente nítida e surpreendente, em que se fazem, com agudeza, perguntas descorteses a respeito do comportamento bélico dos cristãos, dos supostos sequazes do príncipe da paz. A seguir, o franciscano partiu de novo, a caminho da Europa. Atingiu a Europa mais ou menos pela mesma rota que havia seguido na ida, e chegou a Kiev no dia 9 de junho de 1247, pouco mais de dois anos depois da primeira partida para o cumprimento de sua missão.
     O franciscano Carpini foi um viajor frio e desapaixonado, muito embora a sua crônica se apresente cheia de pormenores de observação pessoal a respeito de detenções e de percursos em carretas, completamente ausentes das crônicas do seu grande continuador. Carpini penetrou além do véu, e regressou com o relatório; e as notícias a seu respeito desapareceram na obscuridade, durante dois séculos, depois de sua morte. Faltou-lhe, de forma extremamente sensível, o dom que o viajor deve ter em boa escala: - curiosidade ardente. Ele trouxe, das terras misteriosas da Ásia, um relatório desapaixonado, que o mundo recusou, precisamente devido à sua frieza.
     O outro dos precursores foi um emissário, despachado para junto do mesmo Grande Khan, em 1252, por iniciativa de Luís IX, da França, empenhado, naquela época, na Sexta Cruzada. O emissário foi William Rubrick, outro sacerdote, de temperamento mais firme e ardoroso do que o do seu predecessor, Carpini. Chegando a Sudak, na Criméia, depois de passar pelo Acre, alugou carros de boi para a sua jornada até Karakorum, do outro lado da Ásia. Aquela foi uma viagem duplamente áspera, em conseqüência. Seu curso foi mais ou menos o mesmo do Arcebispo John; e as vistas e os sons daquela grande e desolada paragem da Ásia surgiram, aos seus olhos e aos seus ouvidos, mais ou menos com as mesmas imagens, como acontecera ao seu antecessor. Penetrando no interior da região, pela rota mais norte, estes dois viajores, na verdade, deixaram de tomar conhecimento precisamente de tudo quanto, com relação à Ásia, tem sentido para nós: - a Pérsia, a Índia e a China, afora os ricos países que ficavam entre elas. Contudo, William era viajor agudo e hábil: - se, na Ásia, ele pouca coisa viu que pudesse ser acrescentada à informação reunida por Johannes, nas fronteiras do continente ele finalmente determinou que o Cáspio era, de fato, um mar interno, não constituindo ramo do Euxino, como os geógrafos do seu tempo sustentavam. Além disto, chegando a Karakorum e entrevistando-se com o grande Khan, em dezembro de 1253, ouviu narrativas a respeito de um país existente ainda mais para lá, para o oriente – “A Grande Cathay, cujos habitantes (como eu suponho) era, em tempos remotos, chamados Seres. É de lá que se trazem excelentes estofos e sedas”.
     Desta forma, William de Rubrick redescobriu aquele povo desaparecido, conhecido dos gregos e dos viajores do império romano. Enquanto William viajava, desamparado e suarento, durante dois longos anos, de volta à Europa, Marco Pólo, muito longe dele, em Veneza, saudava as primeiras vistas deste mundo de maravilha e de terror, com os vagidos do berço, comuns, aliás, a todos os mortais.
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     Duas grandes repúblicas marítimas dominavam as costas da Itália, em meados do século treze. Estas duas repúblicas eram Veneza e Gênova. Tratava-se de entidades republicanas apenas pelo fato de não terem rei, nem oligarquia, e de não serem Estados corporativos, como poderiam ser chamados na linguagem do nosso tempo. Lá por 1250, Veneza estava levando de vencida a sua rival, tanto em empreendimentos, como em riquezas: - ia transformando-se, rapidamente, na mais poderosa e também na mais impiedosa potência, de todo o Mediterrâneo oriental. Era o grande Moloque do Comércio. A riqueza era a sua finalidade, a sua vida e a sua justificação. Veneza fretou grandes flotilhas e grandes exércitos, para proteger seus lucros ou para atacar os seus rivais e os seus inimigos. Em meio às suas ruas que são canais, de aspecto labiríntico, Veneza acocorava-se nos miasmas quentes e maláricos do verão, e gozava, no inverno, o ar límpido, despido de neve e de granizo; olhava para o oeste, com olhos frios e cruéis – e contemplava, ambiciosa, as presas do Levante...
     Foi assim que alguns primitivos escritores descrevera, e, com grande lisura, acharam bem feito o retrato da grande cidade onde Marco Pólo veio a este mundo de viagens e de trabalho. Embora possamos duvidar muito da sua personificação e da sua personalização, não se deve dizer que se trata de um quadro completamente falso. Os venezianos eram homens da espécie comum dos homens, sem dúvida nenhuma: - gentis e cruéis, dados a viagens e à vida doméstica – não havendo dois iguais – sendo todos patriotas e audazes, revolucionários. Somente um baixo simbolismo do nacionalismo poderia imprimir qualquer caracterização definida àquelas multidões belicosas e errantes. Todavia, parece que foi uma classe especialmente ambiciosa, cruel, acovardada e, ainda assim, estranhamente corajosa, que governou, naquele meado de século, a república de Veneza, e que, na verdade, depois prosseguiu governando-a, por longos séculos mais. A arte era a sua arquitetura alegre e a sua escultura florida; a religião era um Nome, um jejum, um gesto, uma súplica, um Medo aterrador, ou uma esperança confortadora, mas nunca uma fina destilação do altruísmo exultante, nem da piedade compadecida; a ciência era brilhante e jovem, tendo o vento do Mediterrâneo a brincar nos seus cabelos; a ciência era jovem, mas de uma juventude caturra, sem qualquer progresso nem modificação de após os dias dos Ptolomeus. A filosofia integrava uma síntese medieval. Os homens desta classe (e, sem dúvida, também os das classes subordinadas da república, em escala menor), aplicavam todas as suas energias na conquista da riqueza, na satisfação da concupiscência, sofrendo terrivelmente nesse empreendimento, e provocando sofrimentos, com absoluta calosidade insensível, aos outros – porque nada mais havia, para eles, a fazer.
     Na terra firme da Europa e da Ásia, daquele tempo, os homens enfastiados, das classes governantes, entregavam-se à guerra. O veneziano, possuindo plebes estáveis e contentes, dedicava-se ao comércio. Em Veneza, o patrício era um mercador magnífico, em conseqüência de ser patrício – mas não um patrício plutocrata em conseqüência de ser mercador. Na lista daqueles buscadores senhoriais do mais antigo Doador da Vida, havia um, Andrea Pólo, Nobilis Vir, da Paróquia de São Félix.
     Este Andrea é figura sombria: - na verdade, os Pólos, como que prevendo as indevidas e indecorosas curiosidades das gerações posteriores, cultivaram, sem exceção alguma, a sombra. Naquele estado de obscuridade, entretanto, Andrea tinha dado origem a três filhos – Marco, Nicoló e Mafeo. Marco e Mafeo eram velhos nomes de família: - tinham sido dados antes e, mais ou menos confusamente, teriam de ser dados depois.
     Crescendo, os três filhos parece que entraram, com ímpeto considerável, na perseguição comum à sua raça. Comerciaram. Comerciaram para cima e para baixo, no Levante; foram além; entraram no Mar Negro, no antigo Euxino, com as suas marés turbulentas e com as suas tribos meio conhecidas, compostas de gente da costa. Marco instalou-se, como chefe de depósito, em Constantinopla – uma Constantinopla que ainda não era turca, e sim a sede decadente dos bizantinos – e transformou-se, por iniciativa própria, na sociedade de três membros, em membro estático, senão dormente. Sua figura aparece ricamente vestida e barbada, mas apenas nos quadros de algum tempo depois. Pode-se imaginar Marco Pólo como sendo homem de boné chato, de mão cheia de jóias, de maneiras graves e espírito de notário, espírito este que aplicava no controle dos seus livros de contabilidade, dos seus dinheiros e dos seus armazéns; cofiava aquela barba indubitável, a olhar, durante a noite, para o outro lado do Helesponto; seus pensamentos iam, inquietos, para o interior da Ásia,  para junto daqueles seus dois irmãos que tinham desaparecido nas desconhecidas imensidades do nordeste.
     Mercadores viajantes, do seu tempo, Nicoló e Mafeo tinham, ao que parece, limitado as suas conquistas dentro de um alcance airosamente normal, até ao ano de 1255. Dois anos, mais ou menos, antes disto, Nicoló Pólo encontrava-se, com certeza, em Veneza. Aí esperou o nascimento de seu primeiro filho, nascido em 1254. Era Marco, destinado a tantas calúnias e a tantos louvores. Assegura-se que a mãe de Marco morreu ao dá-lo à luz, em Ca’ Pólo, na escura casa da família, no Subistaco, por cima dos canais venezianos. Os obstetras da época eram cruentos e impiedosos: - talvez, quando Nicoló olhou para a sua esposa morta, o vazio, criado dentro dele, serviu de estímulo para viagens mais amplas do que as daquelas aventuras pela Ásia Menor. Talvez, como muitos outros elementos masculinos abandonados, naquelas circunstâncias, ele tenha olhado para o infeliz recém-nascido, sem grande sentimento de gratidão, entregando-o aos cuidados de parentes; regressou, pois, a Constantinopla, onde de novo sentiu súbito entusiasmo para com os planos de ampliação dos mercados de seu irmão mais velho, Marco.
     A sua última aventura os levou bem para o norte do Euxino e para a Península da Criméia. Ali, negociando em peles, em âmbar e em produtos semelhantes, parece que os Pólos prosperaram grandemente. Penetraram até considerável profundidade, na terra firme, para o leste. Aquela era a terra tártara, que se achava sob o domínio de governadores deixados depois da retirada das grandes hordas, que se havia seguido a Genghis Khan.
     De súbito, uma pequena guerra, de considerável intensidade, irrompeu entre a sua base e a região que dava para trás, para o Mar Negro. Os Pólos ficaram de comunicações cortadas com Constantinopla. Com sentimentos que foram deixados sem registro, resolveram que seria inútil tomar a peito qualquer tentativa, e chegaram a esta conclusão surpreendente: - ir mais para diante, para a frente, na própria Ásia, e prosseguir ali em suas operações comerciais.
     Sua rota de penetração, naquele ano de 1255, deve ter sido paralela e muito próxima das rotas de expansão de Guilherme de Rubrick, laboriosamente vencida aos solavancos do seu carro, partindo da longínqua Karakorum. É provável que eles tenham, de fato, encontrado e trocado confidências e notas sobre as rotas – coisa a que talvez se deva a ulterior solicitude dos irmãos Pólo, no sentido de procurar a corte do Grande Khan. Entrementes, e por meio de trabalhos e dificuldades não registrados, eles chegaram à antiga cidade de Bokhara, fixando residência ali. É admissível que já estivessem negociando em jóias. Se assim foi, eles verificaram ser o negócio rendoso: - Bokhara abrigou-os durante três anos completos – por mais incrível que isto possa parecer.
     A esse tempo, a guerra que perturbara a região do Mar Negro já se havia concluído, como sabemos por via de outras narrativas. Os irmãos Pólo, porém, ou não tiveram notícias do fato, ou se mostraram indiferentes a ele. O Oriente havia-os escravizado – presumivelmente devido à facilidade de aquisição de riquezas, e não por seus encantos. Contudo, há boas razões para se acreditar que eles se teriam apressado a regressar a Constantinopla, se não ocorresse a chegada de uma notável embaixada à cidade de Bokhara.
     Esta embaixada tinha sido enviada por Hulagu, o conquistador tártaro da Pérsia e de Bagdá, em missão junto de seu irmão Kublai, que se achava na longínqua Karakorum. O grande Genghis Khan, primeiro senhor supremo daquelas hordas mongóis, que haviam avassalado toda a Ásia do norte, tinha deixado cinco filhos – Mangu, Batu, Hulagu, Kublai e o indefinido Artigbuga. Mangu herdara o título de Grande Khan, despachando Hulagu para a conquista da Ásia e dos reinos muçulmanos, e Kublai para a conquista da China. O próprio Mangu chefiou um grupo do exército mongol contra a China. Em 1258, ele morreu, no assédio de Ho-cheu, em Sechuen, enquanto Kublai se encontrava no sul, combatendo contra o imperador de Song. A esta altura, um acontecimento notável se verificou. Hulagu, o selvagem conquistador de Bagdá, afigurava-se como sendo o sucessor seguinte – por ser filho mais velho do que Kublai. Entretanto – assim dizem as histórias chinesas – ele despachou uma embaixada através da Ásia, para junto do seu irmão que se encontrava na China, pedindo encarecidamente, a Kublai, que aceitasse o comando supremo dos mongóis. Com este ato raro de caridade e de desistência, Hulagu prestou o seu único serviço à civilização: - permitiu a ascensão, ao trono, de um governante incomparavelmente maior do que ele; e permitiu a passagem dos primeiros mercadores europeus a caminho da corte de Karakorum.
          O embaixador de Hulagu, encontrando os irmãos Pólo, “sentiu-se lisonjeado, eu grau elevado, por poder reunir-se e conversar com esses irmãos, que, a essa época, já dominavam, com proficiência, o idioma tártaro; e, depois de se associar a eles, durante vários dias, o embaixador propôs-lhe que o acompanhassem até a presença do Grande Khan, o qual se sentiria satisfeito pelo seu aparecimento na corte, que não havia sido, até então, visitada por nenhuma outra pessoa de sua terra; o embaixador seu a segurança de que eles seriam honrosamente recebidos e recompensados com muitos presentes. Convencidos como estavam de que o seu propósito de regressar à pátria poderia expô-los a riscos iminentes, os irmãos Pólo concordaram com a proposta, e, recomendando-se à proteção do Todo-Poderoso, deram início à jornada, na comitiva do Embaixador, sendo atendidos por vários criados cristãos, que tinham levado consigo desde Veneza. A rota que tomaram ficava entre o nordeste e o norte; um ano inteiro se passou, antes que pudessem chegar à imperial residência, e isto em conseqüência de extraordinárias delongas ocasionadas pelas neves e pelas enchentes dos rios, que os obrigaram a deter-se até que as primeiras se derretessem e que as segundas descessem de nível. Muitas coisas dignas de admiração foram observadas por eles, no curso da viagem; tais coisas serão aqui omitidas, visto que serão descritas por Marco Pólo, na continuação do livro”.
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     Em abril do ano de 1269, o Legado Papal, no Acre, na costa da Palestina, Teobaldo de’Vesconti di Piacenza, recebeu a notícia de que dois mercadores desejavam uma sua audiência. Parece que o Legado era homem afável, bem vivido e cortês; e, possivelmente, sentiu apenas uma leve surpresa, ao aparecimento dos mercadores. Estes surgiram vestidos com roupas semitártaras; seus rostos estavam queimados por sóis forasteiros; o seu falar italiano era uma linguagem lenta e hesitante. Os mercadores declinaram seus nomes, como sendo os de Nicoló e Mafeo Pólo. E contaram, ao Legado, como se haviam passado quatorze anos depois da última vez que tinham posto pé em terra cristã.
     Daqueles quatorze anos, só chegaram aos nossos dias os mais insignificantes retalhos de registro. Os irmãos Pólo atingiram a corte do Grande Khan, em companhia do embaixador de Hulagu; e Kublai (como sabemos por via de outras fontes) fez-se coroar por si mesmo imperador, concedendo, em algumas fases dos dez anos seguintes, diversas audiências aos venezianos. Com o seu temperamento, o filho de Nicoló teria de tratar: - mas os anais chineses o descrevem como sendo inquisitivo e inquieto, tanto mentalmente como fisicamente. Kublai nunca tinha visto a fauna estranha, constituída pelos europeus, mas manifestava considerável interesse para com ela. Interrogou, argutamente, os Pólos, a respeito de seus reis e de suas terras, bem como a propósito dos seus métodos de guerra e de seus hábitos de paz. Por fim, chegou a uma conclusão: - enviaria uma embaixada ao Papa, em Roma, pedindo-lhe que cem missionários cristãos fossem remetidos aos seus domínios, a fim de espalhar, entre o seu povo, a fé cristã.
     Este comportamento estava para ser seguido por outro imperador da China, que depois deu as boas-vindas, imparcialmente, a nestorianos, a budistas e muçulmanos. É provável que Kublai tivesse apenas um interesse leve e passageiro para com tal assunto. Todavia, enquanto o capricho durou, a ele obedeceu, com energia. Nomeou um enviado tártaro, Khogatal, para que acompanhasse os irmãos Pólo até Roma, e despachou-os através das imensidades da Ásia, protegidos pelo seu Grande Selo.
     Assim protegidos, barbados como feras, tendo, talvez, parcos ganhos, em dinheiro, conseguidos nos seus onze ou doze anos de permanência na Ásia, os irmãos pólo tomaram a longa estrada de regresso à Europa. Nessa estrada, Khogatal caíra enfermo e fora deixado para trás; daí por diante, com efeito, desapareceu das narrativas. Os dois irmãos viajaram através de longos meses e das dificuldades costumeiras: - rios em enchente, pantanais instransponíveis, desertos onde as pistas se perdiam e onde as pernas não davam conta da missão. Assim, viajando durante três anos incrivelmente tediosos, eles, por fim, atingiram um porto de mar, na Armênia menor, e dali tinham aberto caminho para o ponto em que se encontravam agora, em audiência do Legado Papal.
     O Papa?
     Mas o Papa, em Roma, Clemente IV, tinha morrido seis meses antes da chegada dos irmãos Pólo ao Acre. O Legado, no Acre, considerou o assunto e deu-lhes o seu conselho. A melhor coisa que poderiam fazer era a de tratar dos seus próprios negócios, esperando, entrementes, pela eleição do novo Papa, pelo conclave dos cardeais.
     Nicoló e Mafeo tomaram o barco para Negropont, seguindo daí para Veneza. Não há registro da sua recepção, ali, como também não o há das vicissitudes do irmão mais velho, Marco, abandonado, durante todos aqueles anos, em Constantinopla. Contudo, encontraram o filho de Nicoló, o jovem Marco – um “moço valente” – o que pode significar muito ou pouco. Os rapazes amadureciam rapidamente, naquela idade. Sem dúvida, houve muitos festins e muitos divertimentos, e, pelo menos nos círculos familiares, houve também muito que contar. Os irmãos Pólo tinham abundância de tempo para se demorar em tais desafogos. A eleição do novo Papa tardou muito, e Nicoló e Mafeo tornaram-se impacientes e apreensivos. O Grande Khan poderia suspeitar que eles não tivessem intenção de voltar; assim, todas as suas esperanças de, finalmente, conseguir, na Ásia, grande fortuna, ficariam para sempre perdidas. Sem a centena de missionários, mas com um presente de óleo, retirado da lâmpada que ardia eternamente no Santo Sepulcro, em Jerusalém, os irmãos Pólo resolveram partir de novo para a China, imediatamente. Já se haviam demorado dois anos. E levaram o jovem Marco Consigo.
     Por esta forma, o jovem Marco Pólo foi lançado à aventura que deveria constituir a sua vida – a aventura, ou a busca do Governante de Ouro, Kublai Khan: - uma busca coroada de êxito, já realizada, e, entretanto, nunca concluída.
     Foi isto em 1271. Eles partiram de Veneza para o Acre; viajaram para Jerusalém; obtiveram o presente de Óleo Santo; e armaram vela na direção do porto de Laiassus, no Mar Negro – um porto no reino da Armênia. Ali, enquanto esperavam, com o fim de equipar uma caravana, foram alcançados por uma mensagem, remetida pelo seu amigo Tebaldo, de Piacenza, que ainda se encontrava no Acre. Ele próprio tinha sido eleito Papa. Os irmãos Pólo, com o jovem Marco, deveriam regressar imediatamente ao Acre, a fim de receber, de suas mãos, mensagens destinadas ao Grande Khan dos tártaros, na longínqua Cathay.
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     Lá pelo fim do ano de 1271, ou nos começos de 1272, os três Pólos, muito molestados ao irem de um lado para outro, retomaram a viagem, partindo do Acre. Levaram consigo as cartas papais e “vários vasos de cristal muito belos”, como presentes para o Grande Khan. Acompanhando-os, foram, ao invés dos cem missionários cristãos solicitados, dois frades da Ordem dos Pregadores, aos quais se havia outorgado autoridade “para ordenar sacerdotes e consagrar bispos”. Provavelmente, tinham vários servidores e assistentes; mas toda nota, sobre eles, foi omitida, nas narrativas do jovem Marco.
     Pois agora começa a narrativa. Antes da sua viagem, fizemos mais do que espiar, através de uma bruma vaga, aquelas terras distantes que existiam na orla da consciência da Europa. Agora, evitando toda memória pessoal, exceto quando ela se tornava essencial, parece que Marco começou a registrar, nos mosaicos da sua mente, tudo o que tinha importância, ou que apresentava aspecto interessante, sem esquecer os rumores, das terras pelas quais eles passavam.
     Entraram, de novo, no porto de Laiassus (Layes), na Armênia – na Armênia Menor. O país era governado por um príncipe cristão, dado à “administração da estrita justiça”, mas infelizmente muito molestado pelos pagãos, neste caso, eram os muçulmanos, súditos de Bibars, o sultão mameluco do Egito. Assim que os três Pólos e os dois frades chegaram a Laiassus, os boatos relativos às incursões e às depredações dos “babilônios” encheram o espaço, e os frades, que haviam partido para consagrar bispos e ordenar sacerdotes, na longínqua Cathay sentiram medo, no limiar da sua jornada. Entregaram as letras papais aos Pólos, desejaram-lhes rapidez abençoada por Deus, e colocaram-se sob a proteção de um grupo de Cavaleiros Templários. Os Pólos, sem dúvida, devem ter-se mostrado surpresos; em face desta conduta. Mas, tendo chegado até ali, por sua iniciativa, em outros anos, através de situações muito piores do que as presentes, resolveram prosseguir na sua viagem.
     Viajaram através da Armênia, que nós chamamos Anatólia, terra de “aristocracia degenerada” e de portos movimentados, até que chegaram à região norte da Turcomânia. Esta havia sido conquistada e em parte colonizada por um fluxo de tártaros operado em direção sul. Os tártaros eram “povo rude, de intelecto embotado”, que se fizera muçulmano. Seguindo em frente, passando por Casaria e Sivas, atingiram a cidade de Arzingan, na Grande Armênia. Nenhum armênio governava ali. A região encontrava-se sob o domínio dos tártaros. Foi lá que os Pólos descortinaram os picos de Ararat, coroados de nuvens, sobre o qual a Arca de Noé encalhara. Ficaram muito bem impressionados com o panorama tornado visível desta mítica montanha. No topo do Ararat, ao que Marco informa, as neves nunca se derretem; ao contrário, acumulam-se, “aumentando em cada queda sucessiva”. Em que razão de progressão o topo por fim desapareceria inteiramente, para dentro do céu, isto é coisa que não se deteve a calcular. Ao invés disto, notou “Perto de Zorzânia”, uma grande fonte de óleo, que despejava, incessantemente, um óleo muito bom, tanto para servir de ungüento como para propósitos combustíveis. Esta é a primeira menção geográfica dos poços de petróleo de Baku.
     Todavia, é improvável que os Pólos hajam penetrado na Geórgia, embora tivessem ouvido muitas narrativas a respeito de tal terra. Rumaram, despreocupadamente, para o sudeste, seguindo o curso do Tigre, até Bandas, através da província de Mosul, que, naquela época, encontraram habitada por uma complicada mistura de raças e de crenças, notando particularmente a existência da seita cristã nestoriana. Os nestorianos, diz Marco, chegaram mesmo a enviar missionários a pontos tão distantes como a Índia. Em caminho, os Pólos ouviram falar também dos Kurdos, então, como agora, “raça sem princípios, cuja ocupação consiste em roubar os mercadores”. Esta variação, sobre o costume de se roubarem uns aos outros, demorou-se no espírito de Marco.
     Os Pólos chegaram a Bagdá, e talvez se hajam detido ali, durante algum tempo, estudando a melhor das possíveis rotas a tomar, na sua viagem para a corte do Grande Khan. Na referida cidade, Marco ouviu a história do fim miserável do último dos califas dos abássidas, nas mãos de Hulagu, doze anos, mais ou menos, antes. O califa tinha sido opressor dos cristãos, e Marco atribuiu, solenemente, a sua morte horrível, a esse fato.
     Os Pólos parece que decidiram viajar para Ormuz, no Golfo Pérsico, a fim de, ali, tomar um barco, com destino à longínqua China. Rumaram para o sudeste, através do Irak persa, parando em Tabriz, que fabricava tecidos de ouro e que negociava em pedras preciosas e em pérolas. Marco conta que não recebeu boa impressão da parte muçulmana da população local, mas formou excelente opinião a respeito dos seus dominadores tártaros, que continham o comum desejo maometano de massacrar os cristãos encontrados pelas ruas. Indo avante, para o sul, através da Pérsia propriamente dita, os Pólos ouviram falar da cidade de Saba, de onde os Três Magos haviam partido para Betlém, ao nascer de Cristo. A narrativa tornara-se inextricavelmente misturada a doutrinas insinuantes do zoroastrianismo; havia cidades em que os Parsis ainda prosseguiam na sua antiga fé. A Pérsia criava cavalos excelentes, como Marco observou, e como, mais tarde, ele especificou, pormenorizadamente. Criava, também, burros, que vendia a preços ainda mais elevados do que os estabelecidos para os cavalos. As estradas eram inseguras, porque os “selvagens habitantes viviam na prática comum de ferirem-se e matarem-se uns aos outros”. Este costume de mau gênio, como Marco observa (agradecido), tinha sido fortemente combatido pelos tártaros. Devemos supor que a maior parte da região era assaltada por bandos de homens desesperados, que a invasão tártara havia arruinado. Marco e os outros Pólos não alimentavam qualquer simpatia para com eles. Impediam-lhe a marcha para Cathay.
     Os maometanos, foi o que Marco descobriu, contornavam a proibição de beber vinho, de maneira bem engenhosa. Ferviam o vinho, e, depois, já não o consideravam mais incluído entre as bebidas proibidas. E isto porque o vinho fervido tinha gosto e aspecto diferentes, e, portanto, já não podia ser o vinho de que a proibição tratava. Mais ao sul, através de uma terra de tamareiras e de jumentos selvagens, os viajores chegaram a Kerman, onde se encontravam turquesas e onde se elaboravam finos trabalhos de agulha. Nas montanhas, a gente local criava os “melhores falcões que voavam em qualquer parte do mundo”.
     Os Pólos continuaram para o sul, através das montanhas, vencendo o Golfo Pérsico, e sofrendo muito devido ao frio. O jovem Marco achava difícil defender-se contra aquele frio, mesmo com o auxílio de “muitas peliças”. Não há dúvida que o sangue ainda mais fino de seu pai e de seu tio sofrera muito mais.
     Além das montanhas, porém, na planície, os Pólos se viram no celeiro da Pérsia, região rica de trigo, de arroz e de frutas, onde o ar se agitava devido aos faisões e aos francolins. Ali, Marco viu, pela primeira vez, o gado de giba e os carneiros de cauda pesada. Tratava-se de terra assolada por ladrões, e cheias das narrativas a respeito do maior deles todos, um mongol, Nikodar Khan, que havia organizado um grande exército de homens desesperados, e descera sobre a Índia, conquistando Delhi. Instalando-se em Delhi, Nikodar e seus companheiros se haviam cruzado com mulheres hindus, de pele escura, com grande rapidez e grande fecundidade, produzindo, numa geração – (se os verdadeiros fatos históricos, desconhecidos por Marco, estivessem à mão, eles teriam mostrado que isso se deu num terço de uma geração) – uma raça de mestiços bronzeados, os Karaunas. Estes Karaunas, ladrões como seus pais, se derramaram para trás, pela Pérsia, em bandos errantes, e, por via de artes diabólicas, adquiridas na Índia, “podiam produzir a escuridão e apagar a luz do dia”. Esta é a primeira menção que existe, a respeito da guerra de gases: - não há dúvida que os cascos dos cavalos dos incursores, ao nascer e ao pôr do sol, eram os “dei ex machina”.
     Os Pólos aproximaram-se de Ormuz. Mas os Karaunas mantinham-se em atividade, realizando incursões para capturar escravos e para roubar gado, nas planícies que ficavam além da cidade, onde os mercadores de Ormuz pasciam suas montarias. Os três Pólos se viram colhidos em meio a uma incursão – parece que tinham estado viajando em companhia de outros peregrinos. Vários dos seus companheiros foram mortos; outros foram amarrados e arrastados como escravos. Marco, juntamente como seu pai e com seu tio, escapou para uma fortaleza vizinha. Provavelmente, alguns dos servos venezianos perderam a vida nisso; talvez essa foi a apresentação de Marco ao terror e à guerra. Contudo, jovem como era, parece que pouco se impressionou.
     Através de perigosa estrada, onde os ladrões ainda operavam, eles desceram, numa viagem de dois dias, até chegar ao antigo porto de Ormuz propriamente dito. Encontravam-se no Oriente de fábula e de realidade, em cidade quente e poeirenta, às margens do Golfo Pérsico – num porto freqüentado por negociantes de todas as partes da Índia, que traziam especiarias e drogas, pedras preciosas, pérolas, tecidos de fios de ouro, dentes de elefante, e vários outros artigos de comércio. “Estes artigos eram postos à disposição de diferentes grupos de comerciantes, por meio dos quais se dispersavam pelo mundo todo”. Ali, Marco ouviu falar do siroco, que soprava com terríveis efeitos sobre a respiração e o comércio, nos meses do verão. Os habitantes – diz-nos Marco – saiam à procura da água, quando o siroco soprava; imergiam-se até o queixo, e “continuavam nesta situação, até que o vento deixasse de soprar”. Tratava-se de vento verdadeiramente terrífico; - soprou, de uma feita, quando os próprios Pólos se encontravam em Ormuz. Os habitantes mais ricos retiraram-se para o interior, em busca de frescura. Entrementes, o governador de Ormuz se esqueceu de pagar o seu tributo anual ao seu senhor, em Kermam. Kermam despachou para ali uma força expedicionária. A força dormiu uma noite à beira de uma plantação de árvores, que beirava aquelas terras infernais, e recomeçou a sua marcha pela manhã, ignorando que aquela era a hora do siroco. O exército inteiro foi sufocado pela tempestade de areia. O próprio Marco, ao que parece, saiu para examinar os cadáveres ressecados; é uma narrativa de maravilha e de horror – de um segundo exército de Sennacherib, destruído pelo sopro de Deus.
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     Inspecionando os barcos, em Ormuz, os Pólos consideraram-nos de qualidade deplorável, “expondo a grandes riscos os mercadores e outras pessoas que deles se utilizavam”. Tais barcos haviam sido construídos sem pregos, e não tinham âncora. A despeito dos rigores das suas viagens anteriores por terra firme, Nicoló e Mafeo concordaram em que as rotas terrestres seriam melhores. Eram preferíveis a confiar-se a si mesmos e ao seu “valente moço” àqueles barcos desprovidos de segurança.
     Voltaram-se de novo para o norte, chegando a Kirmam, por vias diferentes, sempre orientando-se para as fronteiras da terra que agora denominamos Afganistão. Tratava-se, mais uma vez, de terra de abundância, nesta nova rota para Kirmam. Todavia, além de Kirmam, existia um grande deserto, onde os poços, encontrados durante os primeiros três dias de viagem, se apresentaram intoleravelmente salobros. Eram ainda piores: - “se uma só gota daquela água fosse engolida, o resultado seria freqüentes chamados da natureza”. Os Pólos foram para além deste trecho inóspito, viajando, com grande pressa, a cavalo, e chegaram a cidade dos Khubeis, além do deserto de Lut. Em Khubeis havia peritos trabalhadores em metais – é o que Marco observou. Dali, Marco empenhou-se em vencer outro trecho do deserto, na direção norte-nordeste, através de Khorassan. Encontrou de novo deserto, de oito dias de travessia. Depois dele, os Pólos chegaram à região de Damaghan, a antiga Hecatompylos, onde Alexandre havia perseguido o fugitivo rei persa, 1500 anos antes. Marco diz que ainda havia, por ali, rumores em torno daquela fuga e daquela batalha, entre os habitantes locais. A relação de tais rumores e a descrição de um plátano maravilhoso da região, que a moderna botânica não conseguiu identificar, completam a sua narrativa de Damaghan. Além isto, Marco assegura que achou os seus homens bem parecidos e suas mulheres muito bonitas, tão bonitas que eram, na sua opinião, as mais belas do mundo. Os historiadores especulativos indagam o que há a respeito desta crônica estritamente impessoal, para saber o que tais frases implicam. Teria sido Marco tão objetivo como de costume, ou teria o “jovem galante” perdido o seu coração em Damaghan?
     Parece que ele se ocupou apenas durante pouco tempo, no processo, se é que se ocupou com isso. Tornando a contar a história daquele satânico descontente, do Velho Homem das Montanhas, que se havia demonstrado tão antipático para com os muçulmanos, e também para com os mongóis, ele e seus tios parece que seguiram uma rota quase leste, através de Jan-Jerm e de Nishapur, a caminho de Balkh, nisso que agora é o Afganistão. Nesta região de Khorassan, chegaram a novo deserto, felizmente de extensão não muito apreciável: - além dele, e refrigeradoramente, a zona era notável pela produção de grandes e suculentos melões. Marco registrou-os, com cuidado e com sutileza de impressão, nos seus mosaicos mentais, e, provavelmente, tomou uma amostra deles, de igual maneira, em forma física.
     Assim, afinal, rumaram os três Pólos para Balkh, a antiga Bactria Regia, dos tempos clássicos. A cidade havia perdido suas glórias apenas poucos anos antes, pelas mãos de Genghis Khan, pois este, em 1221, ordenara que os seus habitantes fossem massacrados, e que as suas muralhas fossem arrasadas. Provavelmente, não havia mais do que umas poucas famílias de migradores, naquela que era “a mais antiga cidade do mundo”. As redondezas apresentavam-se assoladas por bandido e por soldados desertores. Havia grandes leões, nas montanhas, ao norte da cidade. Seguindo em direção leste, através de regiões famintas, os Pólos levaram provisões bastantes para as contemplar do lado de lá das Montanhas ; em dois dias, chegaram ao “castelo” de Taikan. Tratava-se de um grande mercado de trigo, cidade encurralada entre colinas de sal. Marco achou que os habitantes de Taikan eram selvagens, sanguinários e traiçoeiros, vestidos de peles de animais da floresta, precursores dos modernos afgãs. Adiante de Taikan, surgiu uma terra de fortalezas dispersas e de planícies abandonadas, onde Marco diz que os porcos-espinhos – animais de tamanho peculiar, e também de peculiar ferocidade – tinham o costume, quando os caçadores lançavam seus cães atrás deles, de, “com grande fúria, disparar as cerdas, ou os espinhos, com os quais a sua pele é recoberta, ferindo, assim, tanto os homens como os cães”. Muito provavelmente, os Pólos, em pessoa, não fizeram pesquisas a respeito destas práticas de artilharia. Chegaram a uma nova região desértica, ocupada pelos Pamirs. Três dias de viagem, através dela, os levaram à terra de Badakshan.
     Em Badakshan, ponto remoto, perdido no coração da Ásia, Marco encontrou um rei, que se dizia descendente de Alexandre, o Grande. Tinha até o título de zul’Karnein (o munido de chifre) – título que o povo do Oriente havia dado a Alexandre, mil e quinhentos anos antes, devido aos chifres de Ammon, que se viam nas moedas da Macedônia. As montanhas tinham a reputação de estar cheias de pedras preciosas; os vales, de criações de bons cavalos; os homens, de serem excelentes esportistas; o ar, do cume das montanhas, de ser puro e saudável.
     Marco deu a sua aprovação a esta terra particular. Parece que os Pólos se detiveram um pouco por ali. O jovem galante sentiu-se devidamente intrigado com o vestido usado pelas mulheres das classes mais elevadas – calças tão largas quanto possível, com o propósito de exagerar o tamanho real dos quadris. Esta esteatopigia decorativa era algo de novo, para o jovem veneziano.
     Ali, em Badakshan, Marco ouviu falar de vários Estados e cidades, em direção ao sul, na Índia, do outro lado de Hindu Kush – de Peshawur, cujos habitantes se mostravam tomados por inclinações más, adorando ídolos, comendo arroz, e conduzindo-se pouco recomendavelmente por todos os títulos. Havia também Kashmir, cheia de adoradores do diabo e de mágicos. A maior parte destas vozes procedia dos montanheses de Badakshan, mulçumanos cheios de preconceitos. Sabemos, entretanto, que a narrativa dos monges budistas era substancialmente correta, como é o que se diz a respeito dos alimentos, das bebidas e da indumentária daquelas longínquas comunidades da Índia.
     Impossível dizer quanto tempo os três viajores e seus companheiros se detiveram em Badakshan. Talvez hajam esperado pelo derretimento das neves, nas passagens dos altiplanos dos Pamirs. Talvez tenha sido nessa ocasião que Marco caiu doente, sendo reconduzido de novo à saúde perfeita naquelas encostas saudáveis de terras altas. Mas este incidente parece que pertence ao seu futuro.
     Por fim, eles partiram; seguiram para nordeste, através dos passos de Pamirs, “subindo montanha depois de montanha”. No elevado planalto do Teto do Mundo, não encontraram pássaros, e Marco observou que, naquelas alturas, o fogo dá menos calor e a água precisa de mais tempo para ferver. Não havia, ali, habitantes a encontrar, através de longas distâncias – terra de neve e de penhascos que subiam para o céu. Os Pólos viajavam carregados de grandes quantidades de provisões, e, sem dúvida, confortavelmente envoltos em roupagens invernais, compradas em Badakshan. Mesmo assim, aquela deve ter sido viagem de provações, para os três homens do delicado Mediterrâneo.
     Entretanto, ao cabo de longo tempo, cruzando o Kisil Mart, eles chegaram à grande cidade de Kachgar, onde encontraram, de novo, clima caprichoso. Atravessaram grandes plantações de algodão, nesta zona, bem como floridos campos de linho e de cânhamo. Como de costume, ali somente o homem era vil – sendo os Kachgari uma “raça sórdida e ambiciosa”. Samarkand ficava longe, para o oeste, e Marco, seja nesta viagem, ou em outra, em que realmente a visitou, deteve-se para oferecer pormenores a respeito desse grande empório do Oriente. Tais pormenores, de resto, são escassos, limitando-se a bordar a fábula segundo a qual Zagatai, um dos filhos de Genghis Khan, havia, ali, abraçado o cristianismo, e, para dar provas do seu espírito, novo e meigo, sem dúvida, roubara, de uma mesquita maometana, uma coluna, para com ela construir uma igreja cristã.
     Marco aprovou de coração o gesto de Zagatai.
     Provavelmente, os viajores estiveram discutindo a propósito da rota que agora deveriam tomar, para atingir a corte do Grande Khan, na China. Por fim, voltaram-se para o sudeste, na direção de Khotam, parecendo que chegaram a esta cidade e ali se detiveram, no meio de uma zona próspera e fértil, “onde os habitantes não eram bons soldados”. Esperaram pela reunião de uma caravana, a fim de atravessar o deserto da Takla Makan, em busca da ainda longínqua corte de Kublai.                                                                    
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     A nordeste de Kothan, ficavam dois grandes trechos desérticos, que deveriam ser vencidos, antes que os viajores chegassem a Peking.  Desses trechos, o mais próximo e menor era o de Takla Makan; o outro era o de Gobi. Não é provável que, em qualquer tempo, se venha a saber, a rota que eles escolheram, como também nunca se saberá se a descrição que Marco faz, do deserto de Lop, se refere ao pequeno Takla Makan, ou ao próprio Grande Shamo. A descrição da travessia do deserto é, em si mesma, muito vivaz. Foi preciso um mês, para a travessia da vasta solidão, sendo que a viagem se teria processado aos saltos de poço em poço de água salobra. Não se encontraram animais, nem pássaros, por ali. “porque na há qualquer espécie de alimento para eles”.  Aquilo era a morada de espíritos maus, que se divertiam com os viajores, até destruí-los. Parece, não obstante, que os Pólos o atravessaram sem incidentes. Talvez hajam sido encontrados, em Khotan, por emissários do Grande Khan, enviados para os ajudar em sua viagem – visto que as notícias da sua aproximação, durante os três últimos anos, parece que haviam chegado até à China.
     Os Pólos e sua comitiva atingiram Su-cheu, onde se observavam abomináveis costumes de sepultamento; provavelmente, detiveram-se ali, refazendo-se a si mesmos com alimento e água, depois da travessia do deserto, e também com as conversas sobre a vida e os costumes das províncias circunvizinhas.  Em Khamil – foi o que Marco ouviu dizer – os hospedeiros gentis tinham o costume de divertir o estrangeiro viajante; em Chen-chen, extraía-se, das minas, uma surpreendente substância “da natureza da salamandra, pois, quando tecida e transformada em roupa, e quando atirada ao fogo, se conserva incombustível”. Esta é uma das primeiras menções européias que existem, a propósito do asbesto, ou amianto. Os Pólos tiveram notícias do distrito de “Tanguht” – (hoje impossível de se identificar com qualquer grau de certeza) – “onde se produz a melhor espécie de ruibarbo” e de Kan-cheu, com suas gigantescas estátuas de Buda.
     Em chegando a Kan-cheu, Marco, seu pai e seu tio foram detidos por um ano inteiro. Nesta parte da narrativa, cheia de imprevistos, em viagens de três e de quatro anos de duração – com visitas ocasionais que se desenrolavam em permanências de quatorze anos, ou coisa parecida – com viagens que duravam e se desapressavam ao longo de vinte e quatro meses – este é um dos mais notáveis capítulos. Mas Marco deixa de o valorizar, dizendo que o “estado dos seus assuntos o tornaram necessário”. Possivelmente, foram detidos enquanto as notícias da sua chegada se transmitiam a Kublai, esperando-se pelas suas instruções. Se assim foi, deduz-se que esse integrou o único ponto, em todo o gigantesco império mongol, que a sua passagem foi suspensa por ordem das autoridades.
     Daí para diante, é extremamente duvidosa a rota que os viajores seguiram, até chegarem, de fato, à corte do Grande Khan, em Peking. As notas de Marco estão cheias de pormenores sobre a vida e os costumes do povo da China e da Mongólia; mas é inadmissível que ele se haja aventurado por aquelas regiões mais ao norte. Parece mais provável que os três venezianos se voltaram de novo para o sudeste, cruzando o Hoang-ho, a fim de chegar à cidade de Si-ning, de onde seguiram à frente pela grande estrada Tibete – Peking. Aquela era terra de enorme gado selvagem, o “yak”, do Tibete. Marco ficou tão impressionado com a qualidade do pêlo de tais animais, que comprou certa quantidade dele, e, muitos anos mais tarde, a levou para Veneza. Os habitantes de Shen-si eram, em proporções confusas, “idólatras” (budistas ou confucionistas), muçulmanos e cristãos – cristãos desgarrados de desgarradas seitas nestorianas. Ao norte, ainda persistia a tradição de Prestes João, daquele imperador cristão, de fantasia enfunada e de fatos escassos. Parece que Marco e seus companheiros atravessaram, com efeito, uma grande faixa do território cristão, governado por um descendente direto de Prestes João.
     Agora, por fim, eles se aproximavam da residência de Kublai – que, por certo, não estava em Peking, e sim na cidade de Chang-tou, onde o Grande Khan havia, então recentemente, erigido um belo palácio. Chegaram mensageiros, para apressar a sua marcha de chegada, e os viajores, muito fatigados, que já haviam percorrido metade do mundo, finalmente compareceram à presença imperial. Gostaríamos de saber mais coisas, a propósito deste encontro, do que aquelas contidas nas escassas notas que Marco deixou sobre a matéria: - gostaríamos de saber quais foram os seus sentimentos, quando ele contemplou, por fim, esta humana encarnação de um sonho.
     “À sua chegada, foram recebidos honrosa e graciosamente pelo Grande Khan, em plena assembléia dos seus oficiais principais. Quando se aproximaram da sua pessoa, prestaram-lhe os seus respeitos, prostrando-se no chão. O Grande Khan deu-lhes, imediatamente, ordem, para que se levantassem, e para que lhe relatassem as circunstâncias das suas viagens, com tudo o que havia ocorrido na sua negociação com sua santidade o Papa. A narrativa, que os viajores fizera, pela ordem regular dos acontecimentos, e que expuseram com linguagem vívida, foi ouvida pelo Grande Khan, em atento silêncio. Depois, apresentaram-se, ao imperador, as cartas e os presentes do Papa Gregório; após ouvir a leitura das cartas, o Grande Khan teceu os maiores elogios à fidelidade, ao zelo e à diligência dos seus embaixadores; e, recebendo, com a devida reverência, o óleo procedente do Santo Sepulcro, o Grande Khan deu instruções para que fosse preservado com religioso cuidado. Quando o imperador observou a presença de Marco Pólo, e perguntou que ele era, Nicoló respondeu: - “Este é um seu servidor e meu filho”. A isto, o Grande Khan replicou: - “Ele é bem-vindo, e isto muito me agrada” . A seguir, deu ordens para que Marco fosse arrolado entre os seus assistentes de honra. Pelo júbilo do regresso dos viajores à sua presença, o imperador fez grandes festas e promoveu intensa alegria. E, enquanto os três Pólos estiveram na corte do Grande Khan, foram alvo de honrarias, muito acima das recebidas pelos próprios fidalgos da terra”.
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     Aquela permanência foi de duração suficiente. A sete mil quilômetros de distância da Europa, em todas as primaveras os ventos desceram da Mongólia, infiltrando seiva fresca nos rebentos vegetais ao redor de Peking; os verões levaram seus calores intensos para as superpovoadas terras chinesas; os outonos levaram suas operações de colheitas e seus grandes ventos do deserto; e os invernos levaram suas neves, batendo-as de encontro às paredes adamascadas do palácio. E, durante dezessete anos, viajando de cá para lá, para esta ou para aquela missão, em nome do Grande Khan, o jovem veneziano, Marco, viveu vida que nenhum europeu jamais havia considerado possível. Por vezes, é evidente, todos os pensamentos, com referência a voltar para as visões familiares, bem como para o cheiro dos países cristãos, chegaram a dissipar-se de seu espírito. Tais pensamentos não eram mais do que um sonho, debruando os horizontes de suas noites – daquelas noites em que ele se deitava, para repousar de suas tarefas, na solução deste ou daquele assunto, sempre em nome do seu senhor.
     Com insaciável curiosidade, ele reuniu pormenores de toda aquela vida que o circundava, e também dos lugares pelos quais viajava, reconstruindo, em linha geral sem falhas, a cultura medieval da China e da Indo-China. Com freqüência, ele, em pessoa, não visitava as terras que descrevia; e estas ficam fora do escopo deste volume.
     Contudo, pessoalmente, com pés infatigáveis, parece que atravessou a maior parte da Ásia longínqua.
     Na qualidade de favorito de Kublai, desde o começo, logo aprendeu (assim relatam suas crônicas) “as maneiras dos tártaros; adquiriu fluência em quatro idiomas diferentes, tornando-se qualificado para ler e escrever nelas”. Muito se discutiu sobre se uma destas línguas foi a chinesa – notando-se que este idioma, em particular, é vedado ao viajor, devido as dificuldades quase insuperáveis, que oferece ao estrangeiro. Mas há poucos motivos para se supor que Marco, pessoalmente enviado para governar uma cidade chinesa, não conhecesse a língua daqueles que governava. Encontrava-se na primavera da vida, mostrando-se sedento de conhecimentos de toda espécie.
     Ao que se presume, os seus protestos palacianos, a respeito da sua boa vontade de servir, devem ter sido postos em prova, por Kublai, de maneira drástica, dentro de um ano, mais ou menos, após a chegada do jovem veneziano a Peking. Marco foi enviado, em missão diplomática, para uma região, denominada Karazan, que é, sem dúvida, a Khorossan dos geógrafos modernos. Ele, com seu pai e seu tio, tinha atravessado esta região, no curso da laboriosa viagem para o oriente; ficava remotamente longe, a oeste da China, sendo uma província da Pérsia.
     Se o seu coração ficou em suspenso, quando esta ordem lhe foi dada, o fato não consta de suas crônicas, nem dos registros de todas as suas viagens posteriores. Marco seguiu, sem a companhia dos Pólos mais velhos: - estes prosseguiram em suas atividades de mercadores, dentro e nos arredores da cidade capital.
     Seis meses de viagem, pelas rotas que ele já havia percorrido, levaram-no para os planaltos do Afgã, onde o ar era muito saudável; e ali, em sua missão, a saúde de Marco veio abaixo; por isso, ele morou todo um longo ano naqueles elevados planaltos, recuperando as energias dispendidas em suas viagens, e notando, engenhosamente, e indiscriminadamente, tudo o que de interesse ocorria ao seu redor, por cima dele e por baixo dele: - reuniu narrativas a respeito de países longínquos, dos seus povos e das suas maneiras, não somente, ao que parece, para seu próprio deleite, mas também para o do Grande Khan, Kublai, homem adorador de maravilhas.
     Regressando de sua missão, Marco parece que se reuniu ao seu pai e ao seu tio, no propósito de ajudar Kublai, num dos seus empreendimentos guerreiros. Este empreendimento foi a redução da cidade chinesa de Siang-yang (Hu-Kuang dos tempos modernos) que, depois da conquista das regiões circunstantes, pelos mongóis, ainda resistia, obstinadamente. Ela resistiu, conta Marco, durante três dias inteiros, e, “quando as operações foram comunicadas à sua majestade, o rei se sentiu extremamente impressionado pelo fato de esse lugar, sozinho, haver podido resistir obstinadamente, depois que todo o resto da região tinha sido reduzido à obediência”. A linguagem é bem humorada, mas não intencionalmente. Ao que se presume, os Pólos conferenciaram a respeito do assunto; depois, abordaram Kublai, propondo-lhe a ereção de catapultas destinadas a bombardear a cidade recalcitrante. “Pelo bombardeio, os edifícios poderiam ser destruídos, e os habitantes mortos”. Este notável exemplo de cultura ocidental conquistou o interesse imediato do Grande Khan. Os mecânicos nestorianos trabalharam sob a direção dos venezianos, e, dentro de poucos dias, completaram as máquinas infernais. Tais máquinas foram experimentadas na presença do Grande Khan, aprovadas e embarcadas contra Siang-yang. Siang-yang rendeu-se depois do primeiro bombardeio, e o prestígio dos Pólos muito se elevou com isso.
     Talvez tenha sido a título de compensação, por este auxílio, que Kublai nomeou Marco para o cargo de governador da cidade de Iang-cheu-fu de lugar-tenente, apenas, mas muito satisfatório. Nesta cidade de idólatras e de fabricantes de instrumentos bélicos, Marco governou, ao que se sabe, com discrição e êxito consideráveis. Contudo, ao cabo de dois anos, foi de novo chamado à corte de Kublai, sendo empregado, daí por diante, como espécie de ministro plenipotenciário, a províncias distantes dessa grande coisa anômala e inquieta, que era o Império Mongol.  Marco viajou para muito além dos caminhos coleantes do Iang-tse-kiang, que julgou ser o maior dos rios do mundo. O rio estava cheio de navios em comércio ativo. Suas margens pontillhavam-se de ricas cidades. Indo em direção ao mar, em Kiukiang de Kiangsi, Marco viu não menos do que “mil e quinhentos barcos” – frota então nem sequer sonhada naquela Europa do longínquo Mediterrâneo que ele não deveria tornar a ver. Na cidade de Hang-cheu, tomando nota, diligentemente (foi a primeira vez que ele se referiu às suas tabuinhas), encontrou uma segunda Veneza, povoada por budistas que se deleitavam com as artes, e que “olhavam para os soldados e para a profissão das armas, com evidente desagrado”. Estes budistas figuraram entre os fenômenos mais surpreendentes, observados pelo engenhoso Marco, sem exceção da magnífica residência do último verdadeiro imperador chinês, para a qual ele foi pessoalmente conduzido por um dos servidores deste último monarca.
     Nem sempre Marco se viu livre de embaraços (afora as observações pessoais), nem de equívocos. Registrou que os habitantes de Fokien eram canibais – assentamento de tamanha audácia, que a maior parte dos comentaristas modernos deixa passar em silêncio, visto que os habitantes de Fokien figuravam entre os mais altamente civilizados da antiga China. As suas constantes afirmativas de que este, aquele ou aqueloutro povo, era “selvagem e inumano”, se fazem tediosas, mesmo em meio à sua ingenuidade; porque, em parágrafo seguinte, ou logo após, ele entra na descrição de alguma atrocidade das tropas mongóis – e o faz com atenção complacente. Marco era homem de Kublai, um mongol naturalizado, contemplando, portanto, com olhos cautos de tártaro, os hindus, os ilhéus e os chineses. Marco viveu antes ou depois da democracia e da visão democrática; era coisa natural, para ele, considerar os povos de todas as terras como sendo brinquedos, peças de jogo no tabuleiro, para operações dos respectivos reis e governadores; mesmo assim, há excesso de adulação oriental para com a realeza e para com os atos reais.
     Suas longas descrições da corte de Kublai têm a fátua irrelevância e a oca admiração de uma criança do Meio-Oeste em Versalhes. O leitor sente falta das narrativas daqueles primeiros anos de viagem de Marco, através da Pérsia e de Pamirs; a despeito da impessoalidade do registro, é como se a gente visse o implume e agradável jovem transformar-se, lentamente, diante dos nossos olhos, naquelas opulentas cenas chinesas, para passar a ser o aventureiro típico da sua época – típico em tudo, menos quanto à sua inteligência e quanto à sua intensa curiosidade geográfica, bem como quanto à fé no Governador Dourado, que ele havia adquirido.
     Com freqüência, os erros que comete, em suas narrativas, sugerem o conhecimento imperfeito do idioma particular do seu informante no momento. É duvidoso que alguma vez ele tenha visitado Amoy. Entretanto, Amoy era notável por seus artistas, por seus pintores de retratos. Nos registros de Marco, porém, estes aparecem como sendo tatuadores; diz ele que os viajantes procediam até da Índia, para terem a pele tatuada pelos artistas do Amoy. Ao contrário, eles para lá iam, e nem sequer devemos duvidar disso, para terem o seu retrato pintado.
     É admissível que Marco tenha estado presente, no porto de Kublai, quando uma grande e infeliz flotilha foi lançada contra Cinpangu (Japão), sob o comando de um general chinês e de um general mongol. Os generais saíram da rota para a ilha, e muita confusão resultou daí para a manobra de invasão. A primeira cidade capturada, diz Marco, foi passada a fio de espada; a decapitação foi a sentença preferida contra toda a população, e executada à risca, contra todos, menos contra oito mágicos, que se haviam protegido com amuletos, e aos quais o ferro era incapaz, tanto de matar, como de ferir. Ao descobrir isto, os hábeis mongóis espancaram os mágicos até à morte, com pesada trave de madeira... A parte restante da narrativa de Marco, a respeito desta invasão, está muito misturada com fábulas, embora coincidam com os registros japoneses, quando concordam em declarar o fracasso completo do empreendimento. Os mongóis foram aprisionados e reduzidos à escravidão. Seus generais escaparam para a China, sendo ali executados por ordem do enfurecido Kublai. Em conseqüência, o jovem veneziano não olhava para os japoneses com simpatia, assinalando que a sua conduta diabólica fora indigna de ser referida em palavras impressas; também eles, no dizer de Marco, se divertiam com banquetes de carne humana.
     Anos após anos se passaram, nesta missão, ou naquela, em nome do Grande Khan; os Pólos mais velhos fizeram-se figuras apagadas, na distância – fantasmas recolhendo ouro assiduamente. Não fosse, porém, o acaso do casamento e de intriga, que depois surgiu, é provável que Marco, pelo menos, nunca mais regressaria à Europa, para diverti-la e instruí-la com as narrativas contidas em suas páginas de ouro e em suas andanças também douradas.
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     Na última destas andanças, ao serviço de Kublai, afigura-se que Marco foi despachado para uma viagem “com uns poucos navios às suas ordens”, a determinadas regiões das Índias Orientais. Com toda probabilidade, tratou-se de viagem à Cochinchina e ao Anam, ao redor da Índia, a fim de negociar, conseguir algo, de alguns monarcas hindus, e de regressar pelo caminho das Filipinas. Marco foi, ao que se admite, o primeiro europeu, no espaço de 1500 anos, a sulcar aqueles mares que, para a Europa, não tinham existência, nem sequer suposição de existência. Acredita-se, até, que, por via de alguma falta de sorte, quanto ao vento ou à água, ele tenha visitado, ou avistado, os grupos de ilhas das Célebes e das Molucas, não distantes da Austrália. No Cambodge, então recentemente transformado em tributário do Grande Khan, Marco observou que “nenhuma jovem poderia ser dada em casamento, enquanto não fosse primeiro possuída pelo rei”. Este monarca sobrecarregado de trabalho, possuía, quando Marco o viu, trezentos e vinte e seis filhos... Nós devemos ir em busca de informações diversas das referentes a tais atividades amorosas – das relativas à grande florescência artística e religiosa do Cambodge, naquele tempo, bem como de algumas notas sobre a influência civilizadora, exercida pelo Cambodge, e difundida para o sul, atingindo, por fim, as costas das Américas. Entretanto, afora os elefantes e as proles ilegítimas, os registros de Marco dizem que “nenhuma outra circunstância requer menção particular”.
     Nesta viagem, Marco ouviu falar de Java e de Bórneu, embora ele tenha misturado essas terras com os seus produtos, atribuindo muito ouro a Java, ao passo que Java nada produz, ou produz muito pouco, deste metal. A esse tempo, ouviu falar, igualmente, da rica província de “Locha”, que ainda permanece não identificada. Talvez se trate de algo ao sul do Cambodge, ou – por via de estranhas divagações sobre longínquos dados geográficos – se haja tratado da distante Papuásia. Com mais probabilidade, era a ilha da Fortuna.
     E isto porque, primeiro da nossa espécie a se aventurar assim, Marco tinha chegado a uma região cujo comércio e cujas lendas, mais tarde, foram considerados de riqueza fantástica e de fantástica sabedoria; tinha chegado as ilhas de ouro, de especiarias e de encantamento, meta de todos os Doadores de Vida. Marco estava destinado a voltar a essas ilhas; e, sendo o mais estranho dos pesquisadores, em benefício dos seus registros, voltou para nada contar das emoções que sentiu – e não há dúvida que as sentiu!
     Marco regressou desta missão em época em que os Pólos mais velhos se mostravam extremamente fatigados do seu exílio forçado naquelas terras estranhas. A idade se fazia sentir neles, e eles viram a mesma coisa no rosto e nos cabelos do Grande Khan Kublai. Perceberam, igualmente, como todo o Império Mongol observando, podia ver, que, com a morte do Grande Khan, uma confusão selvagem se espalmaria sobre seus domínios – uma confusão na qual o seu sucessor teria pouco tempo, ou inclinação, para a tarefa de proteger os estrangeiros de pele pálida, vindos da Europa. Podemos presumir, até, que eles já não eram mais muito queridos, entre Mongóis e Chineses, pois, destes forasteiros, os únicos presentes feitos à China haviam sido umas máquinas de catapultar pedras em guerra, supertartarizando os tártaros.
     “Nicoló Pólo, de conformidade com a sua decisão, colheu a oportunidade, certo dia, quando observou que o Grande Khan se apresentava mais bem disposto; atirou-se-lhe aos pés e solicitou-lhe, para si mesmo e para sua família, a gentileza de ser contemplado com a graciosa permissão de sua majestade, para a partida. Entretanto, longe de se mostrar disposto a conceder o pedido, o Grande Khan manifestou-se melindrado pela solicitação, e perguntou pelo motivo que os Pólos poderiam ter, para desejar exporem-se a todas as inconveniências e a todos os azares de uma viagem em que, provavelmente, poderiam perder a vida. Se o lucro – disse ele – era o objetivo dos Pólos, estava pronto a dar-lhes o dobro de fosse o que fosse que possuíssem, concedendo-lhes honrarias, na quantidade e na extensão que desejassem; mas, do ponto de vista de estar ele, Grande Khan, enfastiado dos Pólos, tinha de negar, de maneira absoluta, deferimento ao pedido”.
     Ali falou o típico autocrata senil. O fato de a riqueza e de as honrarias constituírem muito pouca coisa, aos olhos dos homens, para serem despendidas e gozadas fora da sua pátria, sem o mais doce dos temperos, que são o aplauso e a admiração dos vizinhos, ficava além do seu entendimento. Parece que os Pólos evitaram a explicação – com muita cautela, porquanto o favor do Grande Khan parecia coisa bastante incerta; por trás do esplendor do palácio e da corte, havia, ao que se induz das páginas de Marco, um perpétuo cheiro de matadouros e de salas de tortura. Felizmente, porém, um incidente, na política dos casamentos entrecruzados dos mongóis, surgiu para lhes proporcionar a desejada soltura.
     Arghun-Khan, neto de Hulagu – este soldado mongol excessivamente sanguinário – tinha, pouco tempo antes, subido ao trono da Pérsia. Sendo viúvo, pretendia nova esposa, que pertencesse à família do Grande Khan; por isso, enviou uma missão, laboriosamente composta e instruída, através da Ásia, a caminho da China, a fim de pedir a mão de uma princesa mongol. Kublai escolheu uma, de sua inumerável progênie, chamada Kutai; entregou-a aos emissários, permitindo-lhes que partissem para a longa viagem de regresso à Pérsia. A viagem foi mais do que longa. Oito meses depois de lenta marcha, levando consigo a princesa, eles ainda se encontravam bem longe das fronteiras da Pérsia. A Transoxiana estava em efervescência. Cada príncipe mongol, importante e guerreiro, movia a guerra a outro príncipe mongol, igualmente importante e guerreiro como ele. Os emissários fizeram meia-volta e percorreram, de novo, o caminho da corte de Kublai. A jovem Kutai continua, ainda hoje, a ser figura na sombra, sem dúvida a transpirar pelo cansaço da viagem, através da história.
     A segunda chegada dos persas coincidiu com o regresso de Marco, que procedia de suas andanças pelas Índias Orientais. Marco relatou a maior parte de suas viagens, em audiência pública, ao Grande Khan, acentuando, particularmente, a segurança da navegação por aqueles mares distantes e bárbaros. Os emissários persas ouviram e ponderaram. A seguir, travaram discreta intriga com os Pólos. Os emissários pediriam, ao Grande Khan, que lhes permitisse ir, em companhia da jovem Kutai, por mar, à Pérsia, desde que os Pólos os acompanhassem. Depois, fora do alcance da jurisdição de Kublai os Pólos, acompanhando os persas até Ormuz, poderiam seguir caminho, rumo à sua própria pátria.
     A intriga coroou-se de êxito. Kublai deu consentimento, embora com relutância, para que os emissários partissem com os preciosos venezianos, os quais eram por ele contemplados, provavelmente, com o orgulho habitual de um rei dos seus tempos, relativamente às coisas estranhas, de terras longínquas, Os Pólos eram únicos, quase como os unicórnios. Tinham permanecido dezessete anos ao serviço da sua corte; e, ainda assim, ele não lhes permitiu partir, enquanto não juraram que voltariam à China, depois de haverem visitado suas famílias. Os Pólos juraram. É escusado investigar a intenção do seu juramento, nos nossos dias. As circunstâncias os livrariam da necessidade de se abjurarem a si mesmos, se é que pensaram nisso.
     “Ao mesmo tempo, fizeram-se preparativos para o equipamento de quatorze navios, cada qual munido de quatro mastros, e capaz de ser navegado com nove velas; sua construção e seus utensílios dariam para uma descrição ampla; mas, para se evitar a prolixidade, omite-se a descrição, por enquanto. Entre os citados navios, havia pelo menos quatro ou cinco que possuíam tripulações de duzentos e cinqüenta ou duzentos e sessenta homens. Neles embarcaram os embaixadores, juntamente com Nicoló, Mafeo e Marco Pólo, logo que eles apresentaram suas despedidas ao Grande Khan, o qual os presenteou com muitos rubis e um punhado de lindas jóias de grande valor. O Grande Khan, além disso, ordenou que os navios fossem dotados de armamentos e provisões para dois anos”.
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     A viagem desta notável flotilha, que conduzia a noiva de Arghun-Khan, não traz data, nos registros de Marco. Contudo, é provável que haja ocorrido nos começos do ano de 1291. Os navios eram tripulados pelo total de 2000 almas – entre emissários, cortesões, soldados, marinheiros, escravos, mulheres, a Princesa, e os três Pólos. Possivelmente, Marco desempenhou as funções de navegador-chefe. Talvez tenha assumido mesmo o comando supremo da expedição. Parece que velejaram com grande precaução, pelos mares da China do Sul, dada a uniformidade das condições do tempo por toda a zona. Três meses depois de deixar Pei-ho, os navegadores avistaram a Península Malaia, e parece que Marco lançou a sua flotilha ao redor da ponta em que Singapura agora se situa, navegando pelos Estreitos de Málaca acima. Ali, entretanto, foram detidos durante quatro meses, pelos ventos contrários. Os investigadores modernos conhecem esses ventos pelo nome de monção de sudoeste, que sopra pelos Estreitos de Málaca abaixo. Tais investigadores sabem, ademais, que o mês deve ter sido o de maio, e que a expedição, com seus navios desajeitados, deve, com efeito, ter lançado ferros e ficada ancorada até outubro, quando a direção do sopro da monção mudou para nordeste.
     Afigura-se que se ancoraram os navios em qualquer pequena baía, na costa norte da Sumatra. Encontravam-se tão longe, para o sul, que a Estrela Polar lhes era invisível. Até a Ursa Maior era invisível – diz Marco – mas isto é exagero. Sabendo do tempo que deveria transcorrer, antes que os navios pudessem velejar de novo, Marco fez com que todos desembarcassem, e estabeleceu um acampamento fortificado na praia.
     Aquela faixa da Sumatra se encontrava nominalmente sob o governo do Grande Khan; grandes setores daqueles mares orientais tinham ouvido o nome e sabido da fala de Kublai, remetendo-lhe presentes e promessas vagas. Marco, desconfiava dos nativos, “que procuram oportunidades para agarrar criaturas perdidas, matando-as e devorando-as”. De conformidade com tal desconfiança, ele mandou que “um longo e profundo sulco fosse cavado do lado da terra, por tal maneira que cada uma das suas extremidades se concluísse no porto em que a frota se achava. Os sulcos foram fortificados por meio da ereção de vários redutos, ou contrafortes, de madeira... E, vendo-se defendido por esta espécie de fortificação, Marco manteve a sua gente em completa segurança, durante os cinco meses de sua residência ali”.
     Embora os outros se sentissem seguros, Marco, pessoalmente foi acometido pela sua antiga e infatigável mania ambulatória. Sumatra, naquele tempo, estava dividida em oito “reinos”; e seis destes, ao que Marco refere, foram visitados por ele, em pessoa. Não há razão boa para se acreditar que não foi nesta expedição final que a citada visita se verificou. A esquadra achava-se na sua baía, entregue ao tédio e à preguiça. A jovem Kutai retirou seus suaves olhos chineses, cheios de fadiga, das intermináveis rochas do litoral despovoado. Os marinheiros levaram seus enfermos a lugares em que o vento os podia refrigerar e devolver à saúde. Os emissários persas, sentindo-se mal com os alimentos estranhos, murmuravam e cofiavam suas barbas, olhando sempre para o nascer do sol, na esperança da chegada daquele vento que parecia não ter de vir nunca. O jovem forasteiro, entretanto, que era o comandante de todos, tinha desaparecido no interior da ilha, infatigavelmente levado pela ânsia de pesquisa.
     O território em que haviam acampado era o de Periak – havendo muçulmanos nas terras litorâneas, e canibais nas montanhas. Todavia, o vocábulo “canibais”, nas páginas de Marco, é pouco mais do que aplicação abusiva de um termo àqueles que recusavam roupas e cordas ao Grande Khan. Além desse território, para o interior, ficava Pase, cheia de elefantes selvagens e de rinocerontes – sendo estes últimos os unicórnios da crença européia do seu tempo. Marco registra uma advertência solene, no sentido de esclarecer que a noção popular européia, de que uma virgem pode domar tais animais, é errônea. Desvenda, também, em boa técnica de detetive, um notável exemplo de comércio fraudulento, praticado contra os sábios. Na Europa distante, o comércio levou, aos sábios inquisitivos, os corpos mumificados de pigmeus, extremamente reduzidos quanto às proporções – de uma raça que se supunha que vivesse do lado de lá da Terra. Mas os pigmeus em questão ao que Marco descobriu – eram simplesmente macacos (os orangus, ou monos longímanos), que os nativos podiam caçar, matar, tirar o pêlo e embalsamar, a fim de remeter os cadáveres resultantes – como se fossem de criaturas humanas – para centros longínquos de comércio e de viagem, a troco de pequeno pagamento. Na Europa, tais monstruosidades se vendiam por grandes somas. Elas precisavam de longos anos, para chegar, das Índias Orientais, ao distante continente da Europa – e este é o mais notável comentário que já se fez sobre a tolice humana.
     A leste, em Andraghiri, os nativos devoravam seus mortos, de conformidade com ritos peculiarmente horríveis, que Marco Pólo expõe com abundância de pormenores. A narrativa desta espécie de cerimonial canibalesco é muito mais digna de crédito do que a da quase universal antropofagia com que os venezianos se divertiam atribuindo-a aos que viviam no limiar do desconhecido. Os povos daquela região comiam seus mortos devido a razões religiosas, não devido à fome.
     Bem ao sul da ilha, Marco chegou ao reino de Jambi, terra de idólatras e de agricultores. Ali, Marco, admirando a planta do índigo, e tomando conhecimento dos seus empregos nas tarefas de tinturaria, comprou sementes. Muito tempo depois, enfrentando o clima frio de Veneza, aquelas sementes se recusaram a dar brotos. Jambi tinha “homens com caudas, de um palmo de comprimento, como as dos cães, mas não cobertas de pêlos”. Os comentaristas simpáticos a Marco explicam esta narrativa, escusando tão imperdoável libelo com o dizer que o veneziano fora iludido, ao ver certos símios que se assemelham à espécie humana – em particular os orangotangos. Infelizmente, porém, o orangotango não tem cauda, exatamente como o “Homo Sapiens”.
     Ele viu extrair miolo, ou tutano, do “interior de uma árvore”. E uma “espécie de manjar”, feita com isso. Provou-o e achou-o bom. Era, ao que agora sabemos, o sagu. Marco ouviu narrativas incontáveis, informando que as Ilhas da Fortuna não ficavam muito longe. Entretanto, com o correr do tempo, outubro se aproximou. Marco voltou a Periak e embarcou de novo os entediados viajantes em sua esquadra.
     Trezentos, ou quatrocentos, daqueles dois mil seres humanos que haviam partido de Pei-ho, já estavam talvez mortos, vítimas do clima insalubre e de uma vida a que não se haviam habituado. Contudo, a princesa mongol vivia ainda, e nenhum dos Pólos mais velhos parecia  sentir-se mal. A expedição foi lançada para o norte, no Oceano Índico.
     Em caminho, parece que a frota parou nas Ilhas Nicobar, onde Marco olhou, de modo desaprovador, para os habitantes nus – “pouco afastados da condição de bêsta”.  Ali, talvez, ouviu falar de certos mercadores, de ilhas mais remotas, habitadas por selvagens de cabeça de cachorro, que matavam e comiam “todas as pessoas sobre que pudessem pôr a mão”. Aqueles antropófagos caninos eram, sem dúvida, os gentis andamanenses, engolfados em ferocidade e loucura, através de vários séculos de incursões e massacres, praticados pelos malaios ao longo de suas costas – e os malaios eram aventureiros exatamente iguais aos mongóis que os venezianos admiravam.
     Marco assinala, com grande precisão, a distância das Andamans ao Ceilão, de maneira que é possível que a sua esquadra tenha, de fato, se desviado para o norte, até as referidas Andamans. Seja como for, Ceilão foi, por fim, atingida. A esquadra entrou num porto – talvez o de Colombo. Ali ficou ancorada por algum tempo, enquanto Marco, infatigavelmente curioso, observava as maneiras e os costumes dos singalenses, registrando a sua adoração para com Sogomon-barchan – estranha corruptela de “Sakya-Muni-Barchan”, expressão por si mesma quase sem sentido em sua mistura de hindustani e de mongol, querendo, porém, significar “O Divino Sábio Deus”. Este era Buda. Marco, entretanto, embora conte uma versão deformada da lenda de Buda, nunca ouviu falar do grande mestre que respondia pelo nome de Buda, apesar de se haver encontrado com a sua variante chinesa – Fo. Para Marco, os sequazes de Buda, como os de todos os deuses hindus, eram, meramente, “idólatras”.
     Dali por diante, a rota da esquadra é duvidosa. Marco enceta extensa descrição de vários estados hindus – terras de maravilha e de terror, de ídolos gigantescos e de gigantescas idolatrias. Algumas passagens do texto sugerem um lento bordejar a caminho de Coromandel, rumo ao norte, até Masulipatam, “onde se encontram boas ostras”. Velejando para o sul, e detendo-se neste ou naquele porto, ou comprando provisões em caminho, Marco reuniu considerável quantidade de informações a respeito dos hindus. As narrativas dos brâmanes e dos ritos de sua religião surgem fortemente desfiguradoras. Sem dúvida, Marco recebeu a maior parte das suas informações da boca de maometanos. É possível que, ao tempo em que contornou o Cabo de Camorin, tenha engajado pilotos maometanos, capazes de enfrentar os perigos do Mar Arábico.
     Pondo-se os “idólatras” de lado, Marco teve notícias, que nós sabemos que são exatas, a respeito de amplas comunidades cristãs, instaladas na Índia, mesmo naqueles dias remotos. Eram irmãos de Santo Tomás, que a lenda dizia haver sido martirizado em Mailapur, onde, ainda no tempo de Marco, se supunha que estivesse o seu túmulo. Os milagres ali se verificavam diariamente – foi o que Marco ouviu dizer. Mas não se tem indicação de que ele, pessoalmente, haja desembarcado, para averiguar. Ao contrário, contornando o Cabo de Camorin, faz observações sobre os grandes macacos que infestavam a terra, e nota a abundância que ali havia de tigres, leopardos e linces.
     De súbito, as páginas de Marco se enchem de descrições de Estados internos, tal como o de Delhi, que não pode, em pessoa, ter visitado, pelo menos naquela expedição de regresso. Talvez, entretanto, haja feito isso quando viajava como enviado do Grande Khan. Velejando para o norte, pela costa da Índia acima, Marco viu, ou ouviu falar de certa variedade de Estados e de cidades, que de então para cá saíram dos limites da possibilidade de identificação: - Kambaia, Servenath, Kesmacoran. Além de Bombain, o curso seguido pela esquadra faz-se novamente duvidoso, porquanto o registro prossegue, apresentando uma descrição particular de Socroto, que fica longe, do outro lado do Mar Arábico, na boca do Golfo de Áden.
     Não é impossível que a esquadra tenha, de fato, bordejado, ao longo do litoral do outro lado do Arábico. Foi lá que Marco ouviu falar das terras maravilhosas da “Grande Índia”, que descreve com abundância de pormenores – da Abissínia, de Madagáscar, e de coisas desse teor. Em Madagáscar, Marco soube, com seriedade de “uma espécie extraordinária de pássaro”, que os nativos denominam “rukh”, dizendo que procede das regiões do sul. Quanto à forma, diz-se que se assemelha à águia; mas é muito maior, em tamanho. Sendo tão grande, e tão forte, é capaz de apanhar um elefante, com suas garras, e de erguê-lo no espaço, a fim de fazer com que ele caia ao solo, para que, estando o elefante assim morto, o pássaro possa devorar-lhe a carcaça. Pessoas que viram este pássaro afirmam que, quando suas asas se abrem, medem seis passos de comprimento, sendo grossas em proporção. Messer Marco Pólo, imaginando que os seres desta categoria eram ou podiam ser grifos tais como os representados em pinturas, meio aves e meio leões, interrogou, meticulosamente, as pessoas que diziam tê-los visto. Entretanto, os interrogados sustentaram que a sua forma era, no todo, à dos pássaros, ou, como se pode dizer, da águia.
     Poderá o “rukh” ser o albatroz?
     Marco veio a saber da existência de Zanzibar, com seus negros autênticos, “de boca larga, de nariz grosso, e de olhos grandes”. – “Sed cooperiunt suam naturam; e faciunt magnum sensum quando eam cooperiunt, eo quod habent eam multum magnam et turpen, et horribilem ad videndum”.
     Deve-se notar, aqui, como era ortodoxa a concepção de Marco a respeito do Oceano Índico; este oceano era, para ele, assim como uma espécie de grande lago interno, sendo suas margens as Índias – Grandes, Pequenas e Médias. Trata-se de noção formada através dos geógrafos clássicos – mas esta não é a mais séria das deformações introduzidas nos mapas, e em aparência confirmadas pela narrativa do veneziano. Contudo, ao concluir a sua narrativa, a propósito daquelas inúmeras terras da África, que ele denominava “Índia Média”, o autor teve um lapso ou hesitação, recordando-se das índias Orientais e das narrativas que ouvira, por lá, a respeito de inúmeras outras ilhas, habitadas ou desabitadas – “doze mil e setecentas ilhas”. Tratar-se-ia de relato ou de noção da imensidade da Oceania exterior?
     Após longo tempo, os comandados de Pólo chegaram à vista do litoral da Pérsia; a esquadra costeou a linha de Ormuz, para onde os três Pólos tinham descido, de outra feita, do interior da Pérsia, a fim de inspecionar a qualidade dos navios, em sua jornada, cerca de vinte anos antes.
     Aquela viagem da esquadra durou dezoito meses. Seiscentos elementos da equipagem – “e outros” – tinham morrido, desde a saída do porto de Pei-ho. Mas a jovem Kutai continuava viva, e os venezianos pareciam até mais robustos e mais rijos, capazes de enfrentar maiores esforços, inteiramente ilesos.
     Desembarcando em Ormuz, receberam a notícia segundo a qual o noivo em perspectiva, Arghum-Khan, tinha morrido algum tempo antes; considerável confusão prevalecia em toda a Pérsia, em consequência disso; a regência tinha sido assumida pelo irmão do rei morto,         Kai-Khatu, com a exclusão do herdeiro do trono, Chazan-Khan. Atarantados com isto, os emissários enviaram mensageiros a Kai-Khatu, indagando de que maneira deveriam dispor da princesa procedente da corte de Kublai. A resposta do tio foi a de que ele estava certo de que seu sobrinho gostaria da moça. Os Pólos foram, assim, solicitados a levá-la ao território de Chazan-Khan, situado bem ao norte, na Pérsia.
     Destemidos, Marco, seu pai e seu tio – e, presumivelmente, o resto da escolta – partiram através da Pérsia. Por fim, atingiram o território de Chazan, ali entregando a jovem Kutai. Não há menção da maneira pela qual foram recebidos; de que, subsequentemente, aconteceu à princesa, nada sabemos; sobre o que terá acontecido dos restantes membros da grande escolta mongol, que a acompanhou desde a China, só podemos especular. Parece que os Pólos expulsaram o assunto de suas preocupações – e também de seus registros. Tomaram o caminho de oeste, em busca da Armênia e da Europa.
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     Mesmo assim, a narrativa deste primeiro grande explorador do mundo oriental na entra em declínio. As estradas para Euxina eram perigosas; a pedido dos Pólos, Kai-Khatu forneceu-lhes passaportes e tropas a cavalo. Afigura-se que os venezianos realizaram progressos, lentos, mas contínuos, pelas terras armênias acima, até chegar a Trebizonda. Dali, passando primeiro por Constantinopla e Negroponto, embarcaram a caminho de Veneza, chegando, a esta cidade, de longa data perdida para os seus olhos, em uma fase qualquer do ano de 1295.
     Com sua chegada, os Pólos passaram, durante um ano, para uma vida em que imperava uma riqueza de ficção e de fábula.
     Conta-se que eles chegaram a Ca’ Pólo, barbados e de pele escura, metidos em roupas meio tártaras, e falando um idioma estranho, também meio tártaro. Seus parentes olharam para os homens selvagens que chegavam, recusando-se a reconhecê-los, por nada verem que os identificassem com aqueles três personagens – dois homens de meia-idade e o alegre moço – que haviam partido para o Oriente e tinham sido dados como mortos vinte anos antes. À vista disto, os três Pólos rasgaram suas vestimentas extravagantes, e, abrindo-as, mostraram o interior delas, todo forrado de joias de grande preço. Assim, os ladinos Pólos, que tinham ficado em casa, atiraram seus braços aos pescoços dos recém-chegados; reconheceram-nos e beijaram-nos... Se a fábula é falsa, a alegoria é bem verdadeira.
     No curso da viagem, ao sair da corte de Kai-Khatu, os Pólos ouviram falar da morte de Kublai, na remota Cathay. O juramento de regressar ficou, assim, superado – e podemos imaginar os viajantes (os dois Pólos mais velhos, pelo menos), renunciando às andanças e acomodando-se às roupagens forradas de peles e aos lentos passeios ao longo do Prado, entre o revolutear dos pombos, os debates sérios e as refeições com amigos graves. O Oriente, aquele mundo além do Lençol das Trevas, se havia erguido, para eles, durante um momento mágico; muito depressa, e muito estranhamente, a memória do quadro, visto durante esse instante, desapareceu de seus espíritos, como desapareceram as longas estradas chinesas, os sinuosos rios chineses, os sinos ressoantes dos templos, as debruadas margens de ilhas estranhas que olhavam para o grande Mar do Oriente, os tambores em contínuo rataplã, em terras desconhecidas, de ídolos e de fogos terríveis, ao mesmo tempo em que se achavam acampados nos Estreitos de Málaca. Alguns destes quadros, nós os podemos reconstruir por nossa conta, com base na vida posterior de Nicoló e de Mafeo, porquanto, deste ponto para diante, eles desapareceram dos registros. Nunca foram, podemos estar certos disto, exploradores, no exato sentido do vocábulo; comerciaram com a fidelidade e unilateralidade obtusas, com quase nenhuma outra finalidade, afora a do próprio comércio.
     Se não houvesse existido o filho e o sobrinho, que viajou com eles, a viagem nunca teria sido narrada, para que o mundo a lesse.
     Duvida-se que tal viagem pudesse ser registrada de qualquer forma, se não verificassem os acontecimentos do ano de 1296. Veneza e Gênova declararam guerra entre si. Mesmo antes do regresso dos três, procedentes da Ásia, a progênie dos Pólos já havia sido chamada para tripular um galeão, destinado à então próxima batalha naval. Parece que Marco se lançou à tarefa, com entusiasmo. Foi nomeado comandante do galeão dos Pólos, e é provável que tenha feito velejar de acordo com manhas e táticas de combate nos mares, por ele vistas e aprendidas do outro lado do mundo. Andrea Dandolo comandava os venezianos; e a frota fez-se ao mar.
     A esquadra veneziana encontrou-se com a genovesa ao largo de Curzoia, no dia 7 de setembro de 1296, sendo vencida com grande facilidade. O galeão de Marco Pólo foi abordado e forçado a render-se. Marco se viu levado, na qualidade de prisioneiro, para Gênova.
     Nada de mais afortunado poderia acontecer-lhe, do nosso ponto de vista. Sem dúvida, a princípio, ele deve ter achado a prisão – depois da sua vida de atividade e de interesse – mais do que tediosamente enlouquecedora. Pelo que se deduz, foi-lhe permitido escrever cartas aos Pólos. Consta que Mafeo e Nicoló dispenderam esforços desesperados, no sentido de resgatar Marco. Os genoveses, porém, estavam dominados pelo espírito de vingança, e recusaram-se ao resgate. Marco foi deixado na ociosidade, chocando o seu tempo, no livre e desafogado cativeiro daqueles dias – cativeiro que, em todo caso, era suficientemente exasperante para um espírito de ação, como o de Marco.
     Depois, parece que o seu quarto, ou a sua cela, foi condividida por um colega prisioneiro, um pisano, chamado Rusticiano. Marco, em horas de tédio, falou-lhe de suas viagens e das suas explorações. Havia substância para um grande romance, naquela conversa de viagem dos Pólos.
     Com base em qualquer combinação, Marco começou a ditar as suas viagens completas, ao seu colega de cárcere. Ignora-se até em que língua o ditado se fez. A probabilidade manda admitir que o idioma usado fosse o italiano, emboré o francês figure nos mais antigos dos escritos ainda existentes. Acredita-se que marco pediu a Veneza as suas laudas, ou o seu caderno de notas, ou fosse lá o que fosse, em que se havia habituado a rabiscar suas memórias. E, com tais dados juntos de si, andando de lá para cá, na cela, dia após dia, ele vagueou de novo por aquelas intermináveis jornadas, através de rios, de montanhas e de desertos, indo novamente para os cimos do Khorassan, atravessando outra vez o Teto do Mundo, descendo pelas estradas da China, pelas costas encantadas de Cathay... Os nomes e as datas, aqui e acolá, se misturaram, em inextricável confusão, no seu espírito. Por vezes, a sua memória, ou as suas laudas, o traíram, de maneira que ele atribuiu à China Central os costumes do remoto Bornéu. Todavia, em linha geral, e com espírito que foi unilateral, como a sua alma, recordou, com vivacidade e com relativo apuro, tudo o que viu e ouviu.
     Marco esteve na prisão durante três anos. Ao fim desse tempo, as portas do cativeiro se abriram, e ele tratou de sair de Gênova. Daí por diante, do ponto de vista daquilo que nos interessa, Marco saiu para fora das páginas das suas viagens movimentadas, passando à obscuridade da vida de cidadão particular, em Veneza. Casou-se com uma mulher – Donata – de quem pouco sabemos. Esta esposa lhe deu três filhas, das quais sabemos ainda menos. Marco foi rico e famoso. Não tardou a ser também ridicularizado, porque a narrativa das suas viagens se difundiu pela Veneza toda. Ele, ao ser interrogado pelos curiosos, mostrou, provavelmente, ser o contrário do homem reticente. Os curiosos mais espevitados logo o alcunharam de “Il Milione” – “O Milhão” – devido à constante recorrência desta palavra, no curso de todas as suas narrativas, principalmente nas descrições das distâncias e do esplendor das joias.
     Os exemplares do seu livro começaram a circular. Marco enviou um exemplar a um nobre francês... E, durante vinte anos, a contar dessa época, desapareceu das vistas do mundo.
     Em 9 de janeiro de 1324, porém, Marco traçou o seu testamento, deixando o grosso das suas propriedades à sua mulher e às suas três filhas. Pouco depois disso, morreu. Seu corpo foi retirado de Ca’Pólo. Tinha viajado muito. Tinha sido ridicularizado. Talvez, à época da morte, já se sentisse bem amargado também. E foi sepultado do lado de fora da Igreja de São Lourenço, em Veneza.
                                                                              12
     Enquanto ele jaz e dorme bem profundamente, há muito tempo transformado em cinza e pó, sob as lajes de pedra de São Lourenço, podemos aproximar-nos dele, agora, com o espírito mais frio do que o dos seus contemporâneos – que ele exasperou pela irrisão – e do que o dos seus comentaristas dos séculos posteriores – que ele irritou, pela admiração confusa.
     Fundamentalmente, o tipo da mente de Marco era cinético, e não poético. Isto já havia acontecido e sido verdade, com a maior parte dos exploradores; mas aconteceu e foi particularmente verdade com o veneziano. A acusação, segundo a qual os seus registros não revelam aqueles toques pessoais, que o fariam – na frase dos escritores – sobreviver, não é hábil: - tudo o que Marco escreve, sobre montanhas, rios, terras e reis, é observação superficial, de qualidade moderada. Sendo feitos em época anterior à cuidadosa medição e ao cálculo preciso das rotas e das estradas, os seus registros geográficos acusam muitas falhas e lacunas; o que é mais trágico é a qualidade essencialmente terra a terra do espírito que contemplou, não somente aqueles setores geográficos, mas também os povos que neles viviam, e que observou, com deduções errôneas, as marés, as correntes e os ventos.
     Não há razão para maravilha, quanto a isto. Até aos tempos de Behaim, os mapas continuaram inalterados, a despeito do aparecimento das suas “Viagens”. As viagens tornavam-se inconcebíveis em dois sentidos: - a informação geográfica foi apresentada, nesse livro, sem plano preestabelecido, multitudinariamente, de forma fatigante e confusa; o os povos daquelas terras longínquas, sobre os quais Marco escreveu, eram povos por sua vez inconcebíveis, pois cada um deles deixava de acusar individualidade e individualização. Há pouca diferença essencial entre uma cidade do norte da Armênia e outra cidade dos Estreitos de Málaca, de acordo com o que Marco Pólo delas pinta e narra; as duas estão cheias de seres de pele escura, postos na marcha plana, e não redonda, da existência mecânica, sejam eles os cristãos, ou os inevitáveis “idólatras”.
     Marco viveu dezessete anos dentro e nos arredores da China. Todavia, parece que nunca tentou captar a filosofia daqueles “idólatras”, pelos quais se via rodeado. Não parece que, em qualquer tempo, haja ouvido falar de Confúcio, ou de Laotsé. Buda era, para ele, um ídolo de um deus. Marco foi até incapaz de identificar o Buda singalês, diferenciando-o do de Fo, da remota Shen-so, embora as suas semelhanças fossem óbvias. De que ele dominasse quatro idiomas, pouca razão há para se duvidar; mas esse domínio é ainda mais pernicioso, para ele. Com tais idiomas, à guisa de seus instrumentos, poderia, com efeito, produzir obra rica, quanto à definição fisionômica e à interpretação do Oriente, além do véu espesso que o ocultava aos olhos dos europeus. Entretanto, a qualidade do espírito do veneziano não estava à altura da tarefa.
     Mesmo assim, o seu registro continua a ser uma das grandes narrativas de viagens – a narrativa de um dos primeiros conquistadores autênticos da terra – num sentido que, na verdade, Marco teria sido incapaz de aprender. Seu livro continua a impregnar-se de autoridade – confirmado e reconfirmado como tem sido, pelo mundo moderno, que resulta de outros escritos nativos – a respeito da vida, do modo de ser, e da aparência do Oriente distante.
     Vagarosamente, as ideias existentes nos seus registros se expandiram. Foram apanhadas por outros espíritos, mais curiosos e inquisitivos. Além da Ásia Menor, não existia apenas a Índia, nem uma selvagem terra deserta. Existiam impérios, dotados de riqueza e de elevado nível de civilização; existiam terras inumeráveis, terras de maravilha, estendendo-se cada vez mais para além, iluminadas por sóis estranhos, entrando no infinito – como se afigurava às inteligências primitivas... Terras inumeráveis – e todas elas fascinantes, figurando entre elas, em primeiro lugar, as Ilhas das Especiarias dos venezianos – sem dúvida a autêntica Ilha da Fortuna, do mundo mais antigo.
     Um século e meio mais tarde – após o tempo em que passos silenciosos levaram os despojos de Marco para o último repouso, em São Lourenço – um menino, nascido na cidade inimiga que ele odiou, demorou-se longas horas, na leitura de suas “Viagens”, e meditou sobre a narrativa daquelas ilhas.

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