segunda-feira, 25 de junho de 2012

OS CONQUISTADORES DA IBIAPABA


     A exploração do Ceará, embora tenha sido um dos últimos desdobramentos da expansão lusa na costa do Brasil, reveste-se duma importância que, à primeira vista, escapa ao olhar do historiador, de vez que ela completa o vazio existente entre o Nordeste brasileiro já colonizado e o Extremo Norte em vias de colonização. Demais, somente portugueses a realizaram sob o domínio espanhol, depois de haverem, vencendo grandes dificuldades, fundado Natal e chegado mesmo às salinas de Mossoró. Conheciam o Maranhão até o rio Punaré, crismado em Parnaíba, por onde já andavam os franceses, enquanto os ingleses montavam fortins bem guarnecidos no estuário do Amazonas.

     Já sob o domínio espanhol se fizera em 1585 a conquista da Paraíba, passo maior de que resultariam a fundação de Natal e a exploração do Ceará. A predominância dos corsários franceses no seio da indiada paraibana forçara três governadores-gerais, Luís de Brito e Almeida, Lourenço da Veiga e Manuel Teles da Silva, apoiados pelo ouvidor-geral Fernão da Silva e por Francisco Castrejon, a envidarem esforços para dali os expulsarem. Nesse tentâmen, prestou bons serviços à esquadra espanhola de Diogo Flores Valdez, que percorreu o litoral brasílico, batendo os ingleses que o frequentavam. Se os franceses mantivessem a posse da Paraíba e conseguissem, como sempre desejaram, a do Maranhão, a fronteira da América Portuguesa se deteria aquém do cabo de São Roque.

     Em Pernambuco, onde se encontrava, o ouvidor-geral Martin Leitão, magistrado e bandeirante, organizou uma expedição com 500 homens brancos, armados de mosquetes e arcabuzes, servidos por grande número de auxiliares indígenas, partindo dali por terra a 26 de fevereiro de 1585. Frei Vicente do Salvador descreve com entusiasmo a tropa que marchava para a guerra: “Com este exército, que foi a mais formosa cousa que Pernambuco viu, nem sei se verá, foi o ouvidor dormir no campo de Igaraçu. Ao quarto dia, que foi o 1º de março, foi dormir além do rio Taporemas. Cinco dias depois, chegou a expedição à campina da Paraíba”.

     A 6 de março de 1585, os portugueses ocupavam definitivamente a Paraíba, assentando nos areais de Cabedelo os fundamentos da fortaleza de Santa Catarina. Dali avançariam em seguida para o Potengí, em cuja foz calçada de recifes Manuel de Mascarenhas levantaria o forte dos Reis Magos. Continuava, no entanto, ignorada e deserta a região costeira entre os rios Mossoró e Punaré, que raros navegadores por acaso tinham visitado. Conheciam-se por isso vagamente alguns dos pontos principais: a foz do Rio das Onças, o Jaguaribe; a enseada do caminho da Mucura, o Mucuripe; o buraco das Tartarugas ou Jericoacoara; o porto do Pote ou do Camocim. As informações diziam ser a terra ressequida e povoada de feras e canibais, com dunas de areia movediça ao longo das praias. Falava-se da existência de âmbar e pérolas, cujo eco encontraremos ainda no poema “Caramuru”, de Santa Rita Durão:

          O Ceará, depois, província vasta,
          Sem portos e comércio, jaz inculta:
          Gentio imenso que em seus campos pasta,
          Mais fero que outros o estrangeiro insulta.
          Com violento curso ao mar se arrasta
          De um lado do sertão, de que resulta,
          Rio, onde pescam nas profundas minas
          As brasílicas pérolas mais finas.

     Afora esse rio, esse lago e essas pérolas, no mais a descrição do épico se casa, tanto na incultura do solo quanto na fereza do gentio, com a verdade dos fatos naquela época. A indiada Tupi, do ramo Tupinambá, os guerreiros por excelência, - Tabajaras, Potiguaras, Carijós, Parangabas, Chocós, Ipus, Paupinas, Caucaias, Tacarijus, Caratiús, Camamus, Areriús, Anacés, Jaguaribaras, estacionava pelo litoral e pelas serras frescas das proximidades, perlongando às vezes os vales dos rios. Os Cariris, mais ferozes, - Tremembés, Icós, Jucás, Canindés, Quixelôs, Cariús, Capixabas, Inhamuns, ocupavam os altos sertões.

     A fronteira lusa em face desses bárbaros, em 1599, ao findar o Século XVI, era balizada pelo forte dos Reis Magos e a vila de Natal; ao Norte, pelo Maranhão. No começo do Século XVII, avançou do lado meridional para a região do rio Mossoró, do chamado Ceará Pequeno, Ceará-Mirim. Então, os inimigos políticos e sobretudo, religiosos da Espanha Imperial, ingleses, franceses e holandeses, corvejaram sobre o Brasil, pirateando e procurando fixar-se neste ou naquele ponto menos defendido. Foi quando, em 1603, um bandeirante destemido procurou devassar o ignoto trato da terra cearense e incorporá-lo de vez ao todo brasileiro, acabando com a solução de continuidade existente entre o Nordeste e o Extremo Norte da Colônia. Natural do Açores, chamava-se Pero Coelho de Sousa e era casado com D. Maria Tomásia Barbosa, irmã de Frutuoso Barbosa, donatário da capitania da Paraíba. Ali chegara por volta de 1590, depois de deixar o cargo de capitão duma galera d’El-Rei, tendo aventurado e gasto em tentativas agrícolas todas as suas economias. A necessidade de ressarcir os prejuízos levou-o à aventura duma nova conquista. Requereu, pois, como era de praxe, e, obteve a Coroa, por intermédio do governador-geral Diogo Botelho, a patente de capitão-mor e os necessários privilégios para desbravar e colonizar a então chamada província do Jaguaribe e Ceará, o Ceará Grande.

     O regimento da expedição de Pero Coelho de Sousa foi-lhe dado a 21 de janeiro de 1603, mas os preparativos duraram até meados do ano, de modo que a partida só efetuou em julho. Compunham-na 65 veteranos portugueses sob o comando de Manuel de Miranda, Simão Nunes Correia, João Cide, João Vaz Tataperica e Martin Soares Moreno, que se imortalizaria na história da guerra holandesa e na literatura nacional como o guerreiro branco da Iracema de Alencar. Turgimãos, línguas ou intérpretes eram um francês apelidado Tuim-mirim, o Periquito, e Pedro Fernandes Congatam, que, mais tarde, serviu na Casa da Torre de Garcia d’Ávila, na Bahia, e foi indicado por volta de 1618 para acompanhar Domingos Afonso do Sobrado na sua entrada pelo sertão, como grande sabedor das falas e usanças do gentio, Aos 65 soldados portugueses acompanhavam cerca de 200 frecheiros indígenas sob a chefia de seus naturais: Guaratinguira, Batatan, Caraguatim e Mandioca-puba. Através desses auxiliares nativos tinham os expedicionários as eternas informações lendárias da existência de ouro. O metal precioso que desvairava as imaginações se encontraria nos tombadores e paredões da Ibiapaba, a Serra Grande, bem como no fundo misterioso dos sertões maranhenses.

    Antes de deixar a Paraíba, despachou Pero Coelho de Sousa para a foz do Jaguaribe três barcos carregados de víveres e munições, que ali o deviam esperar. Depois, marchou pela costa afora, forçando as etapas, indo descansar somente na embocadura do rio Ceará, no lugar denominado Itarema, depois crismado em Matias Pacheco. Foi um repouso prolongado, pois que só a 18 de janeiro de 1604 a expedição alcançou o Pote ou Camocim, de onde avistou o azul-escuro da Ibiapaba cortando o horizonte. Dela se aproximou em seguida pela depressão das quebradas que vêm morrer nas cercanias da atual cidade de Granja. Ao atingir as faldas da serrania, receberam-na tiros de mosquete. Eram os franceses dum tal Adolfo Montbille, que ali já se encontravam de mãos dadas às tribos dos chefes Irapuã, o Mel Redondo, e de Jurapari-açu, o Diabo Grande. Tinham até trombetas bastardas em que sopravam as ordens de combate.

     Pero Coelho de Sousa e sua gente, embora cansados e famintos, não recuaram. Na primeira refrega ao pé da cordilheira, bateram-se bravamente e repeliram os inimigos, perdendo 17 homens. Depois, assaltaram as cercas ou trincheiras que impediam o acesso ao planalto da Ibiapaba, tomando-as em ferozes corpo-a-corpo e fartando sua fome nos armazéns nelas existentes. A mais difícil presa foi o arraial fortificado do Diabo Grande, que coroava a montanha. Todavia, usando para dele se aproximar a tática da tortuga romana, Pero Coelho de Sousa penetrou-o com seus destemidos companheiros, venceu os que o guarneciam, aprisionou dez mosqueteiros franceses e impôs a paz a Irapuã, Jurupari-açu e Ubaúna, obrigando Montbille a retirar-se para o Maranhão. Assim, até a Ibiapaba toda, a terra era do rei de Portugal.

     Nada, porém, de ouro para contentar os vencedores fatigados. Nenhuma recompensa a tantas canseiras. Também nada que pudesse ali prender os expedicionários. Enfrentava-se um dilema: prosseguir ou recuar. Regressar seria refazer de mãos vazias a áspera caminhada. Continuar seria talvez aproximar-se do famoso Eldorado jacente nas florestas tropicais do Norte. Envaidecido pelos triunfos obtidos, Pero Coelho de Sousa decidiu varar os araxás do Piauí rumo ao Maranhão. Chegou a atravessar o Parnaíba e a aventurar-se cerca de 40 léguas além dele; mas os soldados esfaimados, esfarrapados e doentes o obrigaram a voltar. Alcançaram, assim, em petição de miséria o primitivo acampamento da barra do Ceará, onde ergueram mísero fortim, dando ao arraial o nome de Nova Lisboa e à terra circundante o de Nova Lusitânia. Nas palhoças ali levantadas, filhos dos arcabuzeiros lusos e das índias, nasceram os primeiros mestiços cearenses.

     Completamente arruinado pelos gastos da expedição, Pero Coelho de Sousa decidiu colonizar a terra conquistada. Deixou Simão Nunes Correia no comando do fortim de São Tiago que levantara e seguiu rumo à Paraíba, levando os prisioneiros franceses e grande número de índios escravizados na Ibiapaba, que ali vendeu por bom preço. Com o que apurou, adquiriu víveres, armas, munições, sementes e instrumentos agrícolas, voltando ao Ceará numa caravela, em companhia da mulher e dos cinco filhos, no ano de 1605.

     No Ceará, levado pela necessidade de fazer dinheiro, o capitão-mor entregou-se com seus comandados frutuoso mister de escravizar e vender índios para os estabelecimentos açucareiros de Pernambuco. Começou fazendo guerra de corso aos Tapuias Tremembés e acabou peando os próprios Tabajaras e Potiguaras aliados. Fez-se em conseqüência o vazio em torno do arraial da Nova Lisboa, onde principiou o medo duma aliança da indiada contra os intrusos. E, como à foz do Jaguaribe devia chegar breve João Soromenho com seis barcos carregados de mantimentos, sendo, além disso, aquele lugar mais próximo das bases lusas de Natal e Cabedelo, para ali se transferiram os expedicionários, erguendo um fortim de taipa a que puseram o nome de São Lourenço. João Soromenho lá estivera e não os esperara, cativando índios e fazendo-se de vela com essas presas e mais a fazenda que devia entregar, do que resultou ser preso em 1606, tendo morrido nos cárceres do Limoeiro. Isto desfez as últimas esperanças daquela gente. Todavia, Pero Coelho de Sousa se aferrou à terra e recusou retirar-se. Simão Nunes Correia e os homens mais válidos o abandonaram. Ficou com a família e meia dúzia de soldados estropiados. O gentio cercava de longe o perdido reduto, sem ânimo de atacar o leão na sua toca. Dera a Pero coelho de Sousa o apelido de Punaré em memória do seu avanço vitorioso até aquele longínquo rio. Suas vitórias sobre os franceses e os morubixabas da Serra Grande o aureolavam de tal prestígio que os selvagens não se atreviam sequer a enfrentar o velho Punaré.

     A seca, porém, desabou sobre o Ceará Grande, a primeira de que se tem notícia, e expulsou os conquistadores, que atravessaram em balsas o Jaguaribe e rumaram pelas dunas costeiras para o Rio Grande do Norte. Iniciaram, assim, uma epopeia trágica que Diogo de Campos Moreno comparou com toda a razão à de Manuel de Sousa de Sepúlveda na terra dos cafres. Faltou um Camões, para cantá-la. Não era possível um Camões para cada uma dessas epopeias, numa época em que Portugal as atirava com largueza pelos litorais desabitados e pelos sertões adustos na Ásia, na África e na América, dando vida pela dor e pelo heroísmo a mundos novos, com sangue, suor e lágrimas fecundando os desertos.

     Na caminhada, levava Pero Coelho de Sousa às costas dois filhos pequeninos. D. Maria Tomásia conduzia outro. Os mais velhos marchavam com os soldados combalidos. O Sol ardente queimava-os como ferro em brasa. No segundo dia da retirada, morreu de fome, sede e fadiga o carpinteiro da expedição. No terceiro, descansaram ao pé duma cacimba de índios pescadores, sentindo-se acompanhados de longe pelos selvagens. Mais adiante, a água de outras cacimbas era choca, amargosa, impossível de beber. As crianças choravam de cortar o coração. Pouco a pouco, aquela marcha se ia tornando um calvário com as torturas de Ugolino e Tântalo. Morreram duas das crianças menores. Dias depois, o filho mais velho do capitão-mor, um rapaz de 18 anos, morreu de inanição. O golpe deixou-o tão abatido que não teve voz para mais nada. Foi de então por diante D. Maria Tomásia quem se tornou o guia enérgico daquela procissão de espectros que se arrastava sobre as alvas areais das praias nordestinas. Enfim, meia dúzia de vultos seminus tombaram esvaídos nas dunas fronteiras a Natal quando o vigário da vila à frente de alguns índios mansos os apanhou, socorreu e salvou da morte.

     Pero Coelho de Sousa não se refez nem se podia refazer dessa luta titânica. Morreu cristãmente em Lisboa, após ter ido da Paraíba para o Reino, a requerer paga de seus serviços, mais pobre do que nunca, sem dinheiro para o lençol da mortalha. Além disso, não faltou quem o caluniasse, atribuindo-lhe a culpa de tudo o que acontecera no malogro de sua expedição. A verdade, no entanto, é que escreveu com o suor das angústias, as lágrimas da dor e o sangue do martírio a primeira página da história do Ceará, a qual como que foi o anúncio do destino impiedoso duma terra de Sol e de dor. Essa página gloriosa dos Conquistadores da Ibiapaba demonstra que, sob o poderoso domínio da Espanha Imperial, a alma de Portugal nunca deixou de palpitar, cheia de vida, nas terras que seus filhos descobriram e povoaram, devassando-as, explorando-as, aumentando-as, expulsando delas os intrusos e invasores, dominando serranias e sertões, varando os rios, palmilhando os litorais, costurando as soluções de continuidade e prosseguindo sem pausa ou desfalecimento a obra formidável da dilatação da Fé e do Império.

     É pena que nos nossos livros de história pátria, obedientes a rotinas e ignorâncias, não se dê o necessário lustre a episódios como este dos Conquistadores da Ibiapaba.








- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição em 2004, de onde foi copiado este capítulo, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

SÃO OS HERÓIS QUE FAZEM A HISTÓRIA?


                                             São os heróis que fazem a história?
     Tivesse Cleópatra o nariz um pouco mais curto, despertaria em Augusto a mesma paixão que conquistou César e Marco Antônio, e a história do Império Romano seria outra.
     Se Carlos Martel não vencesse o califa em Poitiers, o Ocidente seria muçulmano e os astronautas desembarcados na Lua se chamariam Ali, Malamud e Gamal.
     Se Galileu, Newton e mais meia dúzia de cientistas de sua época tivessem morrido ainda crianças, o método científico não teria sido criado e sem ele não haveria ciência moderna, nem Revolução Industrial.
     Fosse Napoleão 15 centímetros mais alto, não necessitaria compensar seu complexo de inferioridade. Ficaria satisfeito em ser apenas um pacato oficial de província, e a França não teria transformado a face da Europa.
     Assim, eu, cidadão brasileiro de nome latino-cristão, que vive segundo leis que têm origem na Revolução Francesa e que faz a barba com barbeador elétrico, poderia não existir. Minha existência foi determinada pela embriologia de Napoleão, que o fez baixinho, por um tombo que Cleópatra levou em criança e lhe entortou o nariz, por um sarampo que Galileu não teve, por um erro de cálculo de um general árabe.
     Não fossem esses pequenos “acidentes”, eu poderia ter um nome árabe, viver em regime feudal segundo o Alcorão e fazer a barba com navalha. Bastaria que Galileu, Gutenberg e os desconhecidos chineses que inventaram a pólvora e a bússola tivessem morrido em tempo, para que não houvesse imprensa, grandes navegações e predominância europeia sobre o mundo. Uma dúzia de homens importantes a menos e o curso da história – vidas de milhões de outros – tomaria um rumo que não podemos saber qual seria.
     Essa argumentação pode parecer grotesca pela forma como está exposta. Entretanto, todas as hipóteses acima foram realmente defendidas por alguns pensadores. Além disso, a ideia de que “quem faz a história são alguns poucos personagens e o resto é consequência de seus atos” aparece frequentemente nos jornais rádio, TV, revistas, romances. Quantas vezes não ouvimos dizer que “Hitler é o culpado da II Guerra Mundial”? Lê-se também em vários livros de história que o Papa Leão I convenceu Átila pessoalmente a não saquear Roma e evacuar a Europa. O que pode significar que, caso o Papa não tivesse usado argumentos convincentes, a Europa teria sido devorada pelos hunos.
        Essa maneira de ver a história torna-a, ao mesmo tempo, simples e incognoscível. Muito simples, sem dúvida. Uma só causa e todo o resto está explicado. Mas, por esse raciocínio, além de simples as causas são também imprevisíveis e por isso, incognoscíveis.
     Imaginemos uma estorinha possível: no dia 17 de abril de 1915, o soldado Fritz Muller, numa trincheira da frente francesa, avisou ao soldado Adolf Hitler que sua botina estava desamarrada. O soldado Adolf abaixou-se e, naquele preciso momento, uma bala disparada do outro lado pelo soldado Jean Dupont passou pelo lugar onde estivera sua cabeça. Não fosse o aviso de Fritz, não haveria mais Adolf. E sem Adolf não haveria II Guerra Mundial, já que ele não teria “enlouquecido” a Alemanha, etc.
     Se um ato simples como esse – avisar que o sapato de certa pessoa está desamarrado – pode determinar toda a história (ou boa parte dela), como é possível conhecer as causas da história? Elas seriam tão extraordinariamente triviais – tombos, sarampos, balas perdidas – que se tornaria impossível reconstruí-las.
     A teoria do personagem como causa única da história é, de fato, uma “teoria do acidente imprevisível”. Ou seja, o reconhecimento de que é impossível conhecer as causas da história humana.
                                                   É o destino que faz os heróis?
     A opinião diametralmente oposta à anterior diz que os grandes personagens históricos não são mais do que marionetes nas mãos do destino. Segundo essa ideia, Cleópatra poderia ter tido o nariz de Liz Taylor e isso não teria mudado nada. Porque pouco teria importado qual o general que se apossasse do poder. Fosse quem fosse, ele teria sido obrigado, pelas circunstâncias, a fazer mais ou menos o mesmo que Augusto e enterrar a República romana. Napoleão poderia ter morrido alto, sedutor e cheio de filhos numa guarnição de província, e ainda assim a França teria conquistado o mesmo império. Outro general teria conduzido seus exércitos. Galileu e Gutenberg poderiam ter tido sarampo, outros fariam suas descobertas. O império francês, o método científico e a imprensa eram inevitáveis e não dependiam daqueles que nos “parecem” seus criadores. Muito pelo contrário, foram as situações históricas que criaram integralmente esses personagens. É interessante notar que, às vezes, os próprios personagens históricos têm essa impressão. No fim da vida, Napoleão afirmou: “É preciso que se passem pelo menos 1000 anos para que se possa repetir a conjugação de fatores que me criou”.
     E Von Brauchitsch, marechal-de-campo de Hitler, retrucou aos juízes de Nuremberg, no seu julgamento por crimes de guerra: “Hitler foi o destino da Alemanha, e esse destino não podia ser evitado de forma alguma”.
     Existe, entretanto, uma diferença entre a declaração de Napoleão e a de Von Brauchitsch. O marechal alemão fala em inevitabilidade e destino. Bonaparte refere-se a uma reunião de condições, isto é, às oportunidades que uma situação pode oferecer a um personagem. Segundo Von Brauchitsch, há um livro do destino, onde todas as coisas estão escritas. Pensamos ver o grande homem decidindo, agindo, determinando. Na verdade, forças impessoais – econômicas, raciais, seja o que for – movem a história, e ele não é mais que uma roda dentada, um mero elemento de transmissão, peça de uma máquina posta em movimento, que só se move segundo o plano que a criou. Tudo o que ele fez não poderia ter sido de outra forma. Não existem alternativas históricas, porque não há escolhas possíveis.
     O que se pode deduzir das palavras de Von Brauchitsch é que a história humana independe do que os homens possam fazer.
     Mas o que significa afirmar que o grande homem é feito pelas circunstâncias? Tudo são circunstâncias: desde as condições políticas e econômicas da época, até um tombo em criança. Equivale a dizer que todos os atos do grande homem têm causa, o que é sem dúvida verdadeiro, mas não explica nada.
                                                     A origem dessas explicações
     A ideia de que um personagem foi a causa originária de qualquer fato histórico importante é tão difundida que, quando não existe esse personagem, ele é inventado. Os espartanos acreditavam que uma pessoa chamada Licurgo fora o sábio legislador que, racionalmente, criara os costumes e instituições de sua cidade. Ele inventara essas instituições, explicara-as aos espartanos do passado, e estes, convencidos da inteligência de tais regras, passaram a viver de acordo com elas. Nenhum antropólogo ou historiador acredita que uma sociedade possa “nascer” dessa maneira. Licurgo, na verdade, é a personalização de um inteiro período da história de Esparta. O período que compreende a chegada das tribos dóricas à Grécia central, sua luta com os habitantes locais, a escravização destes e sua redução à condição de ilotas, o surgimento de um tipo de exploração da terra e de uma estrutura política correspondente. Processo que deve ter levado algumas centenas de anos.
     Essa tendência à personalização da história tem outra consequência: a divinização do herói. Se uma pessoa sozinha é capaz de realizar coisas tão importantes, o próximo passo é supor que ela possui poderes extra-humanos. É fácil verificar essa tendência em relação aos grandes personagens da Antiguidade. Alexandre e Buda, pessoas reais, tiveram suas biografias recheadas por uma tremenda quinquilharia de “fatos” heróicos e sobrenaturais. No folclore, sempre que o herói, esse personagem “predestinado a mudar o mundo”, nasce, há espantosos presságios. Espíritos do além o anunciam e oráculos falam. Sempre que eles realizam suas façanhas, a natureza as comenta com exclamações (eclipses, cataclismas). E quando morrem, o planeta se lamenta. Por um instante, a ordem natural das coisas fica subvertida: rios correm para as nascentes, os mortos se erguem dos seus túmulos. Essas aposições são fruto da ingenuidade, e nenhum historiador realmente acredita que o pai de Buda fosse um elefante branco e o de Alexandre o deus Zeus, por mais que o afirmem alguns de seus contemporâneos. Hoje, entretanto, é frequentemente aceito que Hitler foi um “mago negro” que enfeitiçou a Alemanha. Que Stálin tenha sido o criador pessoal de um reino demoníaco, e que Churchill foi uma espécie de Joana D’Arc que, com sua tremenda personalidade, mobilizou os ingleses semiderrotados e os conduziu à vitória. Essas imagens dotam os personagens de poderes semelhantes aos de se possuir como pai um elefante ou um deus. O fato é que, mesmo hoje, a personalização das causas da história (isto é, sua redução aos heróis) constitui uma deificação dos personagens (só ela explicaria a misteriosa origem de tanto poder).
     Do século XVIII para cá, com o surgir das ciências sociais (os enciclopedistas), apareceu uma tendência oposta a essa. Os historiadores e sociólogos irritaram-se com a “explicação” mitológica que não explicava nada, e alguns levaram sua irritação ao ponto de declarar que o personagem não tem importância causal nenhuma. Prova: há vários fenômenos históricos importantes que não possuem qualquer personalidade central, mas uma multidão delas. Por exemplo, as revoluções comercial e industrial, do século XV ao XIX.
     Para distinguir essa visão da história, que ele achava científica, daquela que considerava “popular”, o historiador inglês G. M. Young (sob a influência direta de Spencer) colocou num livro seu como epígrafe o seguinte provérbio: “Os empregados falam sobre pessoas, as pessoas educadas discutem coisas”. Acton afirmava: “Nada causa mais erros na visão da história que o interesse dos indivíduos”. E Voltaire exclamava irritado: “Que pode me importar que um bárbaro tenha substituído outro nas ribanceiras do rio Oxus?”.
     Isso não significa que pensadores de grande estatura também não tenham defendido a ideia de que “são os homens fortes que fazem a história”. Historiadores talentosos, mas imbuídos do espírito romântico, como Carlyle, o fizeram. Mesmo eruditos meticulosos e nada românticos, como Momsen, afirmaram isso. Os historiadores são influenciados pelo momento em que vivem, e não é exagero afirmar que a figura de Júlio César, como emerge na colossal História de Roma de Momsen, deve tanto à erudição do autor quanto à necessidade que ele sentia de um “homem forte” para realizar a unificação do povo alemão (ele a escreveu em 1850). O historiador holandês Geyl, em seu Napoleão: Pró e Contra, mostra como os julgamentos sucessivos dos historiadores franceses do século XIX sobre o papel de Napoleão refletem mais as lutas políticas que eles viveram, que o exame de Napoleão e sua época.
     A conclusão de ambas essas hipóteses, quando colocadas de forma extremada, paradoxalmente é a mesma. Se o grande personagem dirige a história com seus poderes sobre-humanos, não há nada a fazer contra esses poderes. Mas, se o curso da história é inalterável, para que se preocupar com ele?
     Há um sentimento subjacente comum aos defendem a ideia de que o curso da história depende dos indivíduos: o da responsabilidade moral. A aceitação da tese de que os indivíduos são o mero resultado das circunstâncias em que vivem impede-nos de declarar que Fouché e Hitler foram dois péssimos sujeitos.
     De qualquer maneira seria algo estranho, do ponto de vista científico, acreditar que decisões de homens, com o poder de mover milhões de outros, como Hitler ou Richelieu, realmente não tivessem importância alguma no curso dos acontecimentos. Se há fenômenos históricos em que não figuram “personagens principais”, isso não quer dizer que naqueles em que aparecem eles não tenham importância. Será que o talento militar de Napoleão realmente não influiu na condução da guerra europeia?
                                   Movimentos da história sem personagem central
     Entre 3000 e 700 a.C. começou a agricultura, a domesticação dos animais e a construção de cidades. Ninguém em perfeito juízo afirmaria que a revolução neolítica foi feita por três pessoas: uma inventou a agricultura, outra a domesticação, outra as cidades. Essas invenções foram grandes fenômenos coletivos que envolveram a colaboração gradativa de enormes multidões de observadores, experimentadores, repetidores, aperfeiçoadores. O mesmo se pode dizer das revoluções comercial e industrial, que se estenderam por quatro séculos.
     A máquina a vapor foi, de certa maneira, o “grande personagem” da Revolução Industrial. A primeira notícia que se tem de uma máquina a vapor é do século I: foi inventada por Hierão de Alexandria, mas nunca passou de um brinquedinho. Quando Papin e Watt a reinventaram no século XVIII, eles nunca tinham ouvido falar em Hierão. O problema para o historiador é: por que a máquina de Hierão não mudou em nada a sociedade em que ele vivia, e por que, mal ela surgiu na sociedade de Papin-Watt, mudou o mundo? As possibilidades de o vapor mover um pistão eram as mesmas, mas as condições sociais das épocas eram diversas. (a biografia das máquinas tem isso em comum com a dos grandes homens – elas precisam de oportunidade.) Na sociedade escravocrata em que viveu Hierão não havia mercado para a compra de produtos manufaturados pelas máquinas (os escravos não recebiam salário), nem capital acumulado para investir nesse tipo de produção, nem uma atitude mental que permitisse utilizar todas essas coisas (o comércio e o trabalho eram considerados ignóbeis pelos aristocratas). E durante a Idade Média a situação não foi muito diversa. Mas entre os séculos XV e XVIII as coisas foram mudando. A causa inicial foi o desenvolvimento do comércio, que se avolumou à medida que o feudalismo declinava e as navegações se intensificavam. A Revolução Industrial teve como condição prévia a Revolução Comercial. Mas o comércio, que criou as condições que permitiriam, por fim, o uso da máquina a vapor, foi – como a revolução neolítica – a soma da atividade de milhões de homens.
     Houve, portanto, movimentos tremendamente importantes na história que ocorreram sem que ninguém se destacasse excepcionalmente.
                                                  O que é um grande personagem?
     Escreve-se a biografia de alguém porque se considera que ele fez coisas importantes. Napoleão conquistou um império e Voltaire escreveu livros. Mas essas são coisas importantes de tipo muito diverso. Napoleão, Alexandre, Hitler, Stálin, comandaram e organizaram milhões de homens. Voltaire, Galileu, Van Dyck e Einstein mandaram, quando muito, em seus familiares. Aparentemente existem, portanto, dois tipos de grandes personagens: os que agem junto com a multidão e os que agem sem ela (geralmente romantizados como os “gigantes solitários”). Isso é verdade?
     O comércio, atividade de massas anônimas, atividade de um inteiro setor da sociedade, foi destruindo dentro do mundo feudal a atitude de desprezo perante o trabalho. Quando essa atitude se tornou divulgada, pintores como Van Dyck e Dürer começaram a retratar mercadores; aventureiros como Marco Pólo escreveram suas biografias; ricos banqueiros financiaram artistas e escritores. Voltaire e Galileu parecem solitários. Mas, na verdade, Voltaire – com sua irreverência pelos valores feudais, sua afirmação do livre pensamento – só poderia ter surgido numa sociedade em que os valores feudais já estivessem abalados na cabeça dos próprios aristocratas. De outra maneira ele teria sido queimado vivo com seu primeiro livro ou seria um escritor sem leitores. É impossível imaginar Voltaire nascendo entre os habitantes da Nova Guiné ou mesmo na civilizada China de sua época. (Na aristocrática cultura chinesa só havia lugar para intelectuais-mandarins.) Voltaire absorveu ideias que circulavam por seu ambiente e devolveu-as a ele reformuladas de forma penetrante e aguda. Ao explicar de forma clara o que seu público esperava ouvir, tornou-se um dos pensadores influentes do Iluminismo.
     Galileu não brotou por acaso na Renascença italiana. No mesmo instante em que ele trabalhava, milhares de intelectuais esforçavam-se pelo mesmo caminho. Voltaire e Galileu tornaram-se grandes homens porque fizeram o que tinham a fazer muito melhor que seus contemporâneos. Mas é ilusão dizer que eles não precisaram da sociedade de sua época, como é ilusão pensar que a sociedade não precisou deles.
     Galileu e Voltaire eram homens especializados na produção de ideias. Um possuía talento para perceber as relações do mundo físico; outro, as relações do mundo social. Um forneceu à sociedade as bases científicas para a nova técnica que surgia. Outro, as ideias e o aparelho intelectual que serviriam a mercadores, industriais e plebeus, para derrubar os aristocratas.
     Os grandes pensadores, cientistas ou artistas podem ser solitários em sua vida pessoal. Mas dependem do seu grupo social para sua atividade criadora. E o grupo social depende deles. Se um só homem na Renascença, Lutero, tivesse se sentido insatisfeito com o papado, os historiadores sequer saberiam desse fato. Como milhões de homens se sentiram insatisfeitos, a Reforma tornou-se um fenômeno histórico.
     Mas em todas as épocas há várias tendências opostas dentro das multidões de homens. Se na Renascença houve milhões que queriam reformar a Igreja, houve também aqueles que quiseram mantê-la. Essas duas correntes, subdivididas internamente em correntes menores, constituíram as condições em que puderam aparecer os líderes da Reforma e da Contra-reforma.
     Essas afirmações, feitas neste nível, chegam a ser banais: significam apenas que Lutero não poderia ter sido Lutero na China ou na Papuásia. Tinha de chefiar e exprimir tendências da sociedade em que vivia, e suas ideias derivavam dessa sociedade.
     A pergunta real que queremos responder é: Lutero, Napoleão e Galileu modificaram ou não a sua época com suas vidas? E se o fizeram, em que medida o fizeram? A existência de Lutero, por exemplo, seu modo de agir, determinaram o curso que tomou o movimento da Reforma?
                                                  O herói e suas circunstâncias
     Um exemplo da vida diária: Fulano matou Beltrano com um tiro. Mas o advogado de defesa argumenta que, se bem que o culpado aparente seja quem apertou o gatilho, os culpados reais são a metalurgia e a descoberta da pólvora. Porque sem revólveres nem balas a situação que permitiu o crime jamais teria existido. Qualquer promotor demonstraria que essa tese é um disparate: há um enorme número de pessoas que possuem revólver e nunca atiraram em ninguém. Os revólveres, a metalurgia e a pólvora foram circunstâncias necessárias ao crime. Necessárias, mas não suficientes. Para explicar esse crime em particular é preciso considerar a situação psicológica em que se encontravam Fulano e Beltrano, e como ela se desenvolveu até levar Fulano a apertar o gatilho. A discussão sobre a função do personagem na história se assemelha a essa. Para que Napoleão fosse possível (como ele mesmo intuiu), várias causas foram necessárias. Foi necessário, antes de tudo, que tivesse havido uma Revolução Francesa. Essa revolução criou condições indispensáveis para o surgimento de Napoleão: dividiu a terra, criando uma classe de camponeses independentes e fiéis à nação que os libertara da servidão; criou os exércitos de massa, baseados na conscrição nacional. Antes da revolução, na Europa, a guerra era problema de pequenos exércitos profissionais. Quando a Primeira República precisou defender-se do resto da Europa feudal que a atacava, ela não podia confiar nos velhos oficiais e suas tropas mercenárias. A Convenção lançou um apelo a todos os cidadãos sadios para que se alistassem no exército e defendessem as conquistas da revolução. Como nenhum camponês (e eles eram a imensa maioria dos franceses da época) queria perder a terra que conquistara, a República obteve um imenso exército de amadores, que primeiro sofreu fortes derrotas, mas que acabou esmagando os adversários com seu número, seu devotamento e com os recursos militares bem administrados que a República estava criando. Esse novo tipo de exército formaria um novo tipo de oficiais e veteranos. Seria o instrumento que Napoleão encontraria quase pronto quando, por sua audácia e senso de oportunidade, destacou-se no corpo de oficiais.
     O numeroso exército, a divisão da terra, a centralização administrativa, o surgimento de uma ampla burocracia militar, criações da Revolução Francesa, foram algumas das condições necessárias ao surgimento de Napoleão. Houve mais algumas, não tão decisivas quanto estas, sobre as quais os historiadores discutem. Contudo, qualquer condição política, que permitisse a um homem surgido do seio da burocracia militar aspirar ao poder, seria ainda necessária, mas não suficiente, para o surgimento de Napoleão. Quando todas as condições referidas já estavam maduras e a burocracia militar já tinha condições para apossar-se do poder, ainda assim isso não tornava inevitável que o ditador viesse a ser o próprio Bonaparte. A revolução havia gerado vários generais. Por que ele e não outros? Aqui entram forçosamente os detalhes biográficos de Napoleão. Sua audácia, iniciativa, senso de oportunidade, desprezo pela moral convencional, contaram enormemente. Numa série de oportunidades sucessivas, ele sempre foi mais capaz que seus rivais de subir outro degrau na escada do poder. As condições que explicam a ascensão de Napoleão devem ser procuradas em sua biografia e não nas condições gerais da época.
     Mas isso não deve ser entendido como se a biografia de Napoleão e o processo da Revolução Francesa fossem “canais” separados que simplesmente convergiram. Napoleão, como Lutero na Reforma, desenvolveu-se dentro da Revolução Francesa e sua biografia é em boa parte determinada pelos próprios acontecimentos da revolução. A burocracia militar escolhe para seu chefe um homem que se formou dentro dela e que lhe parece o mais indicado para conduzir a luta em curso. E qual é a luta em curso?
     A epopeia napoleônica é principalmente a luta entre Inglaterra e França pela hegemonia europeia. Napoleão não pôde dirigir essa luta “como ele queria”. Economicamente, a Inglaterra era o mais forte dos dois rivais. Os produtos ingleses invadiam a Europa e a França não tinha produção suficiente nem de tão boa qualidade quanto a inglesa para poder expulsar seu rival da Europa por simples métodos comerciais. Napoleão recorreu por isso aos meios militares: o “bloqueio continental”. Proibiu todos os aliados e domínios de comerciar com a Inglaterra, obrigando, assim, esses países a comprar produtos franceses contra seus próprios interesses. A Inglaterra tratou, então, de se apoiar nos interesses lesados dos europeus, que despertavam em todos os lugares um sentimento antifrancês. O império napoleônico teve, pois, desde o início, uma séria desvantagem interna e precisou continuamente sufocar as rebeliões. Ele podia apoiar-se sobre as camadas de classe média, dispostas a lutar contra os privilégios feudais nos países conquistados. Mas as necessidades de dinheiro do império francês em pouco tempo mudavam essas alianças potenciais na inimizade que aparece entre o pilhador e o pilhado. O fato é que Napoleão começou sua luta contra a Inglaterra numa situação de desvantagem econômica. Dispunha de vantagens políticas e militares. A política era a hegemonia francesa que a República e o Diretório haviam estabelecido na Europa. A militar era o exército francês. Mas a desvantagem econômica, com o tempo, foi corroendo as bases do poder político e militar de Napoleão, tirando-lhe aliados e meios de sustentar o exército, enquanto a Inglaterra ia adquirindo aliados e fortalecendo seus exércitos. Bonaparte lutou contra essa maré crescente com obstinação e talento extraordinários. Foi um político hábil. Dividiu os inimigos. Aperfeiçoou a tática e a estratégia do exército de massas, até fazer dele uma máquina de guerra como nunca se vira no mundo. Mesmo quando seu grande exército estava morto e os veteranos substituídos por bisonhos recrutas, sem tradição de combate, manejou tão bem esta arma deficiente, que manteve em xeque por muito tempo a coligação adversária. Privado dos meios de ganhar a guerra, impedia seus adversários de impor-lhe uma derrota militar. Um mau general e uma política inábil teriam, em pouco tempo, sido vencidos pela desvantagem econômica. O imenso talento de Napoleão permitiu-lhe sustentar uma luta desigual e determinou boa parte da história da época.
     Assim, três coisas podem ser estabelecidas sobre o “fenômeno Napoleão”. As condições gerais de sua época eram sem dúvida condições necessárias. A sua biografia, entretanto, fornece outros elementos, indispensáveis para atingir uma explicação suficiente. E seus atos posteriores à subida ao poder modificaram, em alguma medida, os fatos de sua época. Sua presença tornou-se uma das condições gerais do período, uma causa necessária a outros personagens e fatos.
     Resta verificar o quanto a sua presença determinou que a história do seu tempo tomasse um caminho e não outro.
                                            Cavalo Louco ou o desfecho inevitável
     Qual o mundo que cerca Cavalo Louco em 1876 nos Estados Unidos? Já há muitas gerações os peles-vermelhas estão recuando, recuando sem parar, diante do avanço dos fazendeiros brancos que lhes tomam as terras. Todas as alternativas de acordo foram inúteis. Todos os combates foram inúteis.  As tribos são tradicionalmente divididas e cada uma combate a sua guerra particular contra os brancos. Cavalo Louco é um jovem chefe guerreiro dos índios Sioux. Compreende que, separadas, as tribos estão perdidas. Começa uma pregação entre elas, explicando que devem abandonar as velhas rivalidades e unir-se contra os brancos que as sufocam. É preciso atrair e derrotar os brancos numa vitória militar decisiva, para depois negociar numa posição de força. Consegue de fato unificar as tribos, juntar homens e armas suficientes para um combate decisivo, e atrair um coronel americano, Custer, para uma batalha onde os índios o circundam e esmagam. Cavalo Louco e seus bravos exultam – os brancos foram severamente batidos, tiveram uma prova de força das tribos, agora terão de negociar. Mas não há qualquer negociação. O tempo passa e o exército indígena que Cavalo Louco tão penosamente reuniu se dissolve. As tribos precisam migrar atrás dos bisões, acompanhando seu ciclo anual. São caçadores nômades, ainda sem agricultura, e dependem para tudo dos animais. Da pele fazem a roupa e as tendas, dos ossos instrumentos e armas, da gordura as lâmpadas, da carne o alimento. Não podem fixar-se num só lugar. E os brancos recomeçam a caçá-los isoladamente. De onde vêm tantos brancos? Parecem nascer do chão. Cavalo Louco retira-se combatendo, vendo sua gente morrer de fome e frio. E finalmente se rende. Pede piedade não para ele, mas para as mulheres e crianças que não podem lutar. Sua mensagem ao governo americano é um documento terrível. Mensagem de homem corajoso e inteligente, testemunha atônita e desesperada da agonia e do fim de seu povo. Ele fez o que era possível para salvá-los. Mas não era possível salvá-los.
     A enorme superioridade dos brancos não era militar. Era econômica. Os brancos podiam dar-se ao luxo de perder não um, mas mil combates “decisivos”.  Eles nunca seriam realmente decisivos. Os fazendeiros que estavam ocupando a terra e empurrando os índios para fora dela podiam ser massacrados, individualmente, com suas famílias (e o eram, com certa regularidade). Mas atrás deles vinham outros e mais outros. E a cada ataque dos índios o exército americano podia responder, mesmo com atraso, por meio de represálias devastadoras. Os índios nem sequer imaginavam a extensão do exército americano, a força armada de uma nação que podia dedicar parte de seus homens exclusivamente à guerra, porque a agricultura produzia muito mais alimentos que a caça. Os índios, para combater os brancos, eram obrigados a usar os fuzis que compravam dos brancos. Não podiam sequer enfrentá-los dependendo de si próprios. Os selvagens nômades seriam inevitavelmente derrotados pela superioridade de meios do sistema industrial, que possibilita a existência de populações maiores, com setores especializados, (fazendeiro, operário, soldado), e possui uma gigantesca capacidade de produção.
     Napoleão também lutou contra uma desvantagem econômica e foi submergido por ela. Mas a desvantagem ocorria dentro do mesmo tipo de economia e por isso era muitíssimo menor. Ele teve melhores condições para aplicar sua capacidade pessoal que o índio. A desvantagem inicial a qual Cavalo Louco lutou era tão grande que ele nem podia compreendê-la totalmente.
     Mesmo que seus dotes mentais fossem os mesmos de Napoleão (e dificilmente um chefe selvagem poderia se equiparar a um general francês do século XVIII), ainda assim os resultados não teriam sido diversos. Sua possibilidade de usar esses dotes para manobrar os fatos era tão reduzida pela situação objetiva que ele só teria podido deter o curso dos acontecimentos num certo lugar e por alguns efêmeros dias, como ocorreu. Era inevitável que a agricultura e a indústria americanas tomassem as pradarias.
                                    Alguém poderia herdar o império de Alexandre?
     Alexandre conquistou um império colossal. Tão colossal que era formado por várias unidades econômicas diversas. Península grega, Império Persa, Egito e vale do Indo. Essas áreas comerciavam entre si, sem dúvida, mas eram economicamente auto-suficientes. O pequeno comércio entre elas não precisava de uma unidade política para manter-se. Algumas dessas áreas já tinham possuído, anteriormente, certa coesão imposta de fora por meios militares. Egito e Assíria já se tinham dominado mùtuamente. Mas como estas eram puras relações de pilhagem, em pouco tempo, mal a supremacia militar do pilhador se enfraquecia, o pilhado se libertava e as unidades políticas voltavam a coincidir com as unidades econômicas e culturais da região.
     O império de Alexandre é, de certa maneira, a prefiguração do que será a unificação romana. Mas, quando os romanos iniciam sua tentativa, as condições do Mediterrâneo são outras. Além disso, a conquista romana, ocorrendo aos poucos, permitiu duas coisas: a consolidação dos laços econômicos e políticos entre Roma e as províncias, e a formação de uma sólida administração imperial nas províncias. Alexandre nunca teve um aparelho administrativo próprio. Usou os que encontrava no local. Seu império não tinha unidade econômica e política, nem podia tê-la. Foi uma tentativa prematura, mesmo sem considerar que ele incluiu regiões que os próprios romanos nunca conseguiram unificar (como o vale do rio Indo).
     Alexandre coligou politicamente as regiões de seu império por meios militares. Mas, quando morreu, os vários generais que disputaram o poder apoiaram-se justamente sobre os interesses locais, uns contra os outros. Assim Ptolomeu baseou-se nos interesses do Egito, que não tinha motivo algum para pagar tributos a um governo central que nada podia lhe oferecer. E Ptolomeu, de general grego, virou faraó (Cleópatra foi sua descendente).
     Alexandre, Napoleão e Cavalo Louco, em condições diferentes, culturas diferentes e biografias diferentes, tiveram algo em comum: tentaram manter, por meios militares, sistemas políticos que tinham contra si as mais fortes tendências econômicas da época.
                                                                Hitler era o destino?
     Cavalo Louco foi um chefe de selvagens. Alexandre, um chefe de tribos agrícolas. Hitler aparece numa grande nação industrial moderna. As condições necessárias, indispensáveis ao seu aparecimento, são a crise mundial do começo dos anos trinta, que pauperizou milhões de homens na Alemanha, produzindo um altíssimo índice de desemprego; o desespero em que o Tratado de Versalhes lançara os alemães; e a necessidade que a indústria pesada germânica tinha de encontrar mercados para seus produtos. (Estas são ao menos as condições principais, sobre as quais muitos historiadores estão de acordo.)
     As causas específicas para Hitler, as que permitiram a ele – e não a outro político – assumir a direção da Alemanha em crise são, como nas demais, biográficas: sua habilidade em descartar outros líderes nacionalistas (ou absorvê-los em seu partido), sua capacidade de organizar e liderar políticos eficientes, sua rapidez em prever os movimentos dos adversários. Por esse conjunto de causas necessárias e suficientes, Hitler chega ao poder. E quando o atinge, ele próprio, como Napoleão, torna-se uma das causas da história que vive. Sua perspicácia tem influência decisiva na condução da guerra, na escolha dos exércitos e dos momentos de ataque. Mas, como os outros personagens mencionados, ele também luta contra as tendências econômicas de sua época.
     Desde o início, a expansão alemã baseia-se numa capacidade de produção inferior à de seus adversários. Em 1939, Alemanha e União Soviética dispõem de uma produção equivalente e de exércitos equivalentes. Os ingleses contam com os recursos econômicos de um enorme império. Os Estados Unidos possuem o maior parque industrial do mundo e uma tremenda capacidade de produção, que, utilizada na fabricação de armamentos, cobrirá o céu de aviões. Já os sócios que Hitler arranjou são nações economicamente fracas, que têm exércitos muito maiores do que suas economias poderiam sustentar por muito tempo.
     Mesmo se os aliados são de início surpreendidos pela agressividade militar dos membros do Eixo, o tempo trabalha a seu favor, enquanto só enfraquece Hitler. Como no caso de Napoleão, a longo prazo. Hitler só podia perder a guerra. E, como Napoleão, Hitler é um bom exemplo para analisar o quanto as capacidades de um chefe podem permitir, momentaneamente, que uma tendência histórica mais fraca supere outras mais fortes.
                                                            O confronto Hitler-Stálin
     Em igualdade de condições militares e econômicas, Hitler impôs uma derrota militar à URSS. Sua principal habilidade foi enganar o adversário com tratados, enquanto liquidava a Europa ocidental, e tirar proveito da crise interna que ensanguentava o Estado rival. Chegou mesmo a intervir nela. Quando Stálin liquidou os melhores generais soviéticos, Hitler fez seu serviço secreto fornecer a Stálin provas forjadas contra eles. Quando, finalmente, terminou a campanha da Europa e lançou todo o seu exército contra a União Soviética, Hitler encontrou um adversário adormecido e militarmente decapitado. A explicação da tremenda derrota inicial do exército russo – quase 1 milhão de prisioneiros e um terço do território perdido – não pode ser encontrada nas condições gerais da economia e no potencial militar de ambos, que estavam equilibrados, mas na qualidade política das duas chefias.
     Pode-se, entretanto, concluir disso que os alemães obtiveram sua vitória apenas porque seu chefe era mais competente na direção da guerra? Essa afirmação é verdadeira, mas a explicação profunda, histórica, deve ser procurada nas origens da competência dos dois. Stálin não decapitou seu exército num capricho de déspota enlouquecido. Foi uma necessidade para que ele e sua facção se mantivessem no poder. A liquidação de 40.000 oficiais era uma condição necessária a esse tipo de liderança, porque o assassinato em massa de todos os possíveis opositores foi o único método que Stálin e seu grupo puderam usar para manter-se no poder. A perfeita competência de Stálin para livrar-se de seus inimigos internos levava à “incompetência” na luta contra os inimigos externos. Mesmo assim, talvez outro líder não tivesse arriscado a tal ponto a segurança do Estado, nem teria sido ingênuo a ponto de acreditar num pacto com Hitler. (Os alemães já haviam atravessado a fronteira há dois dias e Stálin declarava aos estupefatos marechais soviéticos que não se devia contra-atacar porque era tudo um equívoco, escaramuças de fronteira...)
                                                        Depois do grande homem
     Afinal, pode-se concluir que ambas as posições discutidas tinham algo de correto. A história faz o grande homem, e este, em certa medida, faz a história.
     Todo grande personagem só o é porque exprime – pessoalmente - as necessidades religiosas, culturais, políticas, econômicas, militares, científicas, de milhões de outros. Ele se destacará porque, melhor que os concorrentes dentro da mesma tendência, soube exprimir, formular, organizar e comandar essas necessidades. Mas as necessidades coletivas são anteriores a ele. São pré-requisito necessário para a sua ação.
     O que chamamos de condições gerais de uma época constitui sempre um emaranhado de tendências e interesses complementares e opostos, alguns mais fortes, outros mais fracos. As condições gerais da época em que surgiu Cavalo Louco incluíam as necessidades dos índios, às quais ele tentou responder, e as necessidades da expansão da indústria e da agricultura americanas. Entre as duas tendências, esta era a mais forte. A tendência ao particularismo local no império de Alexandre era maior que à centralização. Napoleão e Hitler também enfrentaram correntes mais fortes do que as que chefiavam e foram vencidos. A tendência mais forte da época acaba se impondo, apesar do mais talentoso e capaz dos líderes.
     Mas, em condições de inferioridade de forças, um chefe capaz, cercado de outros chefes capazes, pode por um instante deter, e mesmo inverter, o curso dos acontecimentos. Só poderá fazê-lo, entretanto, pelo tempo que os recursos materiais e morais de sua tendência não se esgotarem. De qualquer maneira, ele depende dela.
     O grau de liberdade de que dispõe depende de duas coisas. Da relação de forças entre sua tendência e as outras. (Cavalo Louco dispôs de pouquíssima liberdade; Napoleão, de muita.) E da sua capacidade de dirigir com eficácia o potencial de sua tendência. (Hitler aproveitou-o ao máximo; Stálin, não.)
     A combinação desses fatores em todos os personagens analisados pelos historiadores realizou-se em graus diversos. Pode-se dizer que a influência do grande personagem na história é uma variável e não uma constante. A fórmula algébrica é a mesma, porém o resultado numérico cada vez é diverso.
     Enganava-se Acton ao querer desviar a atenção dos historiadores e do público do estudo das biografias dos grandes personagens. É possível compreender a história através das biografias dos grandes homens porque é impossível compreender a biografia dos grandes homens sem compreender a história.



SÃO OS HERÓIS QUE FAZEM A HISTÓRIA? é o prefácio do primeiro volume da coleção encadernável em fascículos GRANDES PERSONAGENS DA HISTÓRIA UNIVERSAL.
Editor: VICTOR CIVITA.
Copyright Mundial 1970- ARNOLDO MONDADORI EDITORE, Milão, Itália.
Copyright para a língua portuguesa 1970: ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL.

Diretor de Publicações: Roberto Civita
Diretor da Divisão Fascículos: Pedro Paulo Poppovic
Diretor Editorial de Fascículos: Ary Coelho

CONSELHO EDITORIAL

Diretor: Elizabeth di Cropani
Secretário: Andréas Max Pavel
Arte: Carlos Alberto Lozza (chefe) e Michael Beckwith Hiltner
Editoria de texto: Gabriel Trajan Neto e Carlos Eduardo Silveira Matos
Pesquisa: Heloísa Goulart Jahn e Cassiano Marcondes Rangel Filho