terça-feira, 24 de julho de 2012

SOBRE A BREVIDADE DA VIDA


     Primeiro capítulo do famoso texto de Sêneca, dirigido ao seu sogro, para que o mesmo se dedicasse mais à filosofia, o chamado gênero exhortatio ad philosophiam (exortação à filosofia), escrito provavelmente no ano 55 d.C., mas incrivelmente atual; assim como as verdades tendem à eternidade.

 
    A maior parte dos mortais queixa-se da malevolência da Natureza, porque estamos destinados a um momento da eternidade, e segundo eles, o espaço de tempo que nos foi dado corre tão veloz e rápido, de forma que à exceção de muitos poucos, a vida abandonaria a todos em meio aos preparativos mesmos para a vida. E não é somente a multidão e a turba insensata que se lamenta deste mal, considerado universal: a mesma impressão provocou queixas também de homens ilustres. Daí o protesto do maior dos médicos: “A vida é breve, longa, a arte”. Daí o litígio (de nenhuma forma apropriado a um homem sábio) que Aristóteles teve com a Natureza: “aos animais, ela concedeu tanto tempo de vida, que eles sobrevivem por cinco ou dez gerações; ao homem, nascido para tantos e tão grandes feitos, está estabelecido um limite muito mais próximo”. Não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que ela passou por nós sem que tivéssemos percebido. O fato é o seguinte: não recebemos uma vida breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores. Tal como abundantes e régios recursos, quando caem nas mãos de um mal senhor, dissipam-se num momento, enquanto que, por pequenos que sejam, se são confiados a um bom guarda, crescem pelo uso, assim também nossa vida se estende por muito tempo, para aquele que sabe dela bem dispor.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

COMO OS HOLANDESES CONQUISTARAM O CEARÁ


     Os holandeses, donos já de Pernambuco e das regiões vizinhas até o São Francisco e o Potengi, ocuparam o Ceará a chamado dos índios que o habitavam. É o que nos revela a carta de 25 de agosto de 1637 do Supremo Conselho do Brasil aos diretores da Companhia Privilegiada das Índias Ocidentais em Haia. Diz esse documento que, naquela data, estavam no Recife dois índios do Syara (sic), que tinham deixado cerca de 40 companheiros no Rio Grande do Norte, os quais reclamavam a ajuda flamenga para expulsar os portugueses da sua terra, rica de salinas, âmbar e algodão. Esses mensageiros regressaram às suas tabas com a promessa de que, logo que fosse possível, os batavos enviariam uma expedição ao Ceará.
     A 17 de novembro seguinte, o mesmo Conselho comunicava àqueles diretores ter enviado, a pedido daqueles índios, os iates “Brack” e “Camphaen” com 126 homens ao mando do major Jorge Garstman no dia 14 de outubro. O “Brack” era comandado pelo capitão Teunis Janaz; o “Camphaen”, pelo capitão Claes Arentz Langman. As tripulações de ambos somavam 58 marujos. A tropa de desembarque compunha-se da companhia de Infantaria do capitão Hous com 35 soldados, da do major Bayer com 14, da do capitão Bylart com 13 e a do capitão Jan Ernst com 14. Para completar seus efetivos, tomar-se-iam no porto de Natal 50 homens. Feita a conquista, 30 ou 40 praças deveriam guarnecer o fortim local sob as ordens do tenente Van Ham. Dos índios cearenses que se achavam no Rio Grande do Norte 25 embarcariam na pequena frota como auxiliares.
     Nova carta, escrita a 13 de janeiro de 1638, noticia o que ocorreu com a expedição. Ela zarpara a 22 de outubro do ano anterior de Natal e a 25 ancorara na baía de Marcoripe, isto é, na enseada formada pela ponta do Mucuripe e a atual Volta da Jurema, a poucos quilômetros da cidade de Fortaleza, que nesse tempo não existia, seja dito de passagem. O desembarque não pôde ser feito na tarde do dia da chegada, porque a arrebentação das ondas virava os botes. Perderam-se mesmo dois deles. Adiou-se a operação para a manhã seguinte. O mar estava calmo e a Infantaria flamenga pisou as areias das praias que mais tarde seriam chamadas de Meireles e das Jangadas ou de Iracema, costeando as dunas brancas e movediças rumo à posição ocupada pelos portugueses.
     Era esta um forte de muros de dez pés de altura, de pedras soltas, quadrado, com torretas ou atalaias em dois de seus ângulos, artilhado com 6 peças de ferro, 4 das quais atiravam balas de 4 libras e 2, balas de 2 libras. Estava situado no topo duma colina, à beira dum rio, defendendo um pequeno ancoradouro ou Maceió. Antes, noutra colina, havia algumas casas de moradia.
     Ali se travou o primeiro combate. Os holandeses, recebidos festivamente na praia do Mucuripe pela indiada e seu chefe Algodão, marchavam seguidos por duas centenas de frecheiros. Das tais casas partiram tiros de mosquete, a que os invasores responderam com descargas duma peça de artilharia que traziam e maravilhava os caboclos. Os defensores das casas recolheram-se ao forte de São Sebastião, que o inimigo atacou logo com violência por dois lados, simultaneamente.
     Os portugueses, em número de 33 homens, não puderam resistir durante muito tempo ao ataque de mais de cem holandeses e duzentos selvagens. Capitularam após algumas horas de luta. O chefe Algodão (Maniú) com seus guerreiros queria, à viva força, chacinar os prisioneiros, entre os quais vários feridos, tendo custado bastante aos vencedores fazerem seus aliados respeitar as leis da guerra civilizada. Foi necessário que Garstman os ameaçasse com o emprego da força para renunciarem ao cruel intento.
     No mês de novembro de 1637, Jorge Garstman regressou do Ceará ao Recife, tendo deixado no antigo fortim de São Sebastião o tenente Van Ham com 45 homens escolhidos e instruções para se informar bem dos proveitos que pudesse trazer a nova conquista. Levando alguns prisioneiros lusos para Pernambuco, Garstman fez a viagem de volta por terra, explorando os lugares capazes de se transformarem em boas salinas. Acompanhavam-no parte da tropa e auxiliares indígenas. O resto dos prisioneiros e dos soldados embarcou nos iates sob as ordens do capitão Hous, velejando para o Recife.
     Dos documentos holandeses sobre a conquista do Ceará se verifica que o seu interesse visava à colheita do âmbar-gris e do sal. Caso isso não se desse, não valeria a pena conservar uma guarnição naquela costa árida e desabrigada. Todavia, convinha manter com a distribuição oportuna de faquinhas, espelhinhos, tesourinhas, corais, contas e outras bugigangas a amizade dos Tupis e dos Tapuias.
     Em 1638, o tenente Van Ham deixado de guarnição no Ceará informava ao príncipe Maurício de Nassau que a terra era arenosa e ruim, imprópria para o plantio de cana-de-açúcar, sem madeiras e outras coisas de proveito. Havia lugares onde se encontrava sal, mas de péssima qualidade e nenhum deles apropriado a boas salinas. Quanto ao âmbar-gris, tudo não passava de exageros dos índios, pois até então somente lograra quatro pedrinhas que mal pesavam três onças. Agradava os caboclos o mais que podia, porém eles nunca lhe traziam o tal âmbar, embora afirmassem percorrer as praias à sua procura.
     Esses selvagens habitavam em duas aldeias próximas do forte. A menor, a duas horas de viagem, certamente, a dos Parangabas, cujo chefe se chamava Koyaba; a maior, a quatro horas, a dos Paupinas, Messejana posteriormente, ou a dos Caucaias, depois Soure, cujo chefe era Diogo Algedor, o que deve ser Diogo Algodão.Todas essas aldeias tinham sido fundadas no começo do Século XVIII pelos jesuítas Luís Figueira e Francisco Pinto, primeira tentativa de colonização da terra após a mal-aventurada expedição de Pero Coelho de Sousa em1603-1605.
     O mesmo tenente dá conta dum costume interessantíssimo dos índios cearenses, a que denomina Arele Tijisado, ”junto a uma grande lagoa, que é muito piscosa”. É provavelmente a lagoa da Parangaba. “Celebram todos os anos essa festa, a que todos devem assistir. Fui convidado, e, chegando ali, encontrei reunidos mais de 2500 índios, entre pequenos e adultos, homens e mulheres, além dos velhos que já não podiam andar”.  Infelizmente, o oficial flamengo não nos descreve a festa a que compareceu. Todavia, podemos inferir do nome estropiado que lhe dá tratar-se do que ainda em nossos dias praticam, quando o podem, os sertanejos cearenses:  tinguizar as águas piscosas, isto é, deitar-lhes de molho a tingui, que envenena todos os peixes. Esse bárbaro processo de pescar, destruindo todos os peixes duma lagoa ou duma ipueira, como se vê, era de longa data praticado pelos Tupis.
     A opinião do holandês sobre os que habitavam o Ceará é a pior possível: “É uma turba selvagem e ímpia. Os homens têm duas ou três mulheres. Nada fazem senão comer e beber. Durante o correr do ano, ingerem toda a sorte de bebidas com que costumam embebedar-se, isto é, vinho de caju, e também de batata e milho. Alguns têm roças, mas a maioria procura o alimento nos matos. Não posso obter desses índios o mínimo serviço ou auxílio sem pagar. Dizem que nada absolutamente fizeram para os portugueses e muito menos hão de fazer alguma coisa para nós, porquanto a terra lhes pertence...”
     O oficial batavo que dizia isto dos Tupis desta sorte se referia aos Tapuias das duas sortes ou raças existentes no Ceará, naturalmente Jês e Cariris: “É gente de quem pouco ou nenhum proveito se pode esperar. Nada sabem fazer a não ser correr pelos matos à procura de alimento. Vêm visitar-me todas as semanas, ficam um ou dois dias a comer e a beber, e retiram-se, declarando que querem estar sob a obediência da Companhia e de V. Exª e a bel-prazer deixar-se empregar em seu serviço...”
     Alguns desses Tapuias habitavam no lugar denominado Juriquaga e obedeciam ao chefe Watickene. Ofereciam-se também para trabalhar, porém não trabalhavam. Havia na terra duas centenas de cabeças de gado e faltava farinha. As munições eram poucas numa fortaleza em mau estado. Os soldados enfermos precisavam de cirurgiões. Andavam seminus por não receberem roupas.
     Em vista de tudo isso, o tenente Van Ham fazia em abril e julho de 1638 sentir ao Supremo Conselho do Recife a absoluta inutilidade da ocupação do Ceará. O Conselho adiou a solução do caso até 1640, quando substituiu Van Ham por Gedeão Morris, recomendado da Câmara da Zelândia e que servira no Pará e no Maranhão. Esse novo comandante do antigo fortim de São Sebastião do Ceará, crismado em Schoonenborch, foi quem descobriu e começou a explorar as salinas do rio Upanema, hoje Mossoró, cuja descrição fez pormenorizadamente. Descobriu ainda as salinas do Camocim. E muito se distinguiu na conquista do Maranhão.
     O Maranhão foi recuperado pelos portugueses, de 1642 a 1644, após graves lutas em que se distinguiram Muniz Barreiros e Teixeira de Melo. A libertação do Ceará só se daria em 1645 com a expedição de Vidal de Negreiros pelo sertão e seria completada pela definitiva expulsão do herege invasor das terras brasileiras.


- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.