sábado, 20 de abril de 2013

TIRADENTES

TIRADENTES (1746-1792)


"TIRADENTES". Quadro de Autran (detalhe). Vila Militar - Rio de Janeiro

A História da Independência do Brasil poderia ter começado assim. Estamos em Vila Rica, Minas Gerais, em 1789.
Amanhã é o batizado. Na noite cheia de sombras, a senha corre entre os conspiradores: amanha é o batizado.
O governador, finalmente, assinara o decreto ordenando a derrama, rigorosa cobrança dos pesados impostos atrasados que a toda gente assustava. Havia medo e revolta em Minas Gerais. Chegara o momento esperado: a rebelião estava no ar.
— Amanha é o batizado — sopravam vozes na escuridão.
E Vila Rica dormiu, sonhando com a independência.
Amanhecia, quando o Alferes e seus homens invadiram o Palácio da Cachoeira para dali trazer preso o governador português.
A rapidez da ação impediu qualquer resistência e os rebeldes, vencidos os guardas, levaram o prisioneiro. Vila Rica ainda acordava, enquanto o grupo marchava sobre a cidade.
— Viva a liberdade! Viva a liberdade! A voz do Alferes despertava um povo. A praça se apinhou de gente. Mãos atadas, olhar perdido, traje em desalinho, o governador — cercado pela multidão — perdia-se em murmúrios:
— Enlouqueceram, enlouqueceram.
Enquanto isso, os gritos de liberdade sacudiam os ricos sobrados.
De repente, um tropel.
— Aí vem os Dragões de Minas!
Há silencio, quando à frente da tropa um oficial português entra na praça:
— Que é isso, camaradas? Quem nos governa? Não é esse prisioneiro o senhor governador?
Por um momento parece que vai haver luta. Até que aos poucos, do meio dos soldados da própria tropa do Governo, vai crescendo um grito:
— Liberdade! Liberdade!
E o povo aplaude, todos riem, se abraçam.
É a revolução. Tomam o cofre da Real Fazenda; ocorrem prisões; bandos partem para as vilas, anunciando a vitória e pedindo apoio. Emissários seguem rumo a Bahia, Rio e São Paulo, para contar que Minas Gerais está livre, que tem um Governo nacional e se prepara para a guerra contra Portugal. É a Independência.
A nossa verdadeira historia, porém, foi diferente.
O Governador de Barbacena não foi preso, o povo não se levantou, não houve, enfim, a revolta. Mas poderia ter havido, não fosse uma traição, que acabou com os planos dos rebeldes e com o grande ideal do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, delatado em Vila Rica (hoje Ouro Preto), nas vésperas da esperada derrama, e preso no Rio, quando procurava seguidores para seus planos de independência.
Por isso, nada deu certo e naquela noite de 1789, em Vila Rica, sede da capitania de Minas Gerais, um homem embuçado corria a casa dos conspiradores.
O governador suspendeu o decreto ordenando a derrama e já corriam boatos: fora descoberta a rebelião, muitos seriam presos.
O embuçado confirma:
— Fujam! Fujam! Fomos todos descobertos. Tiradentes já esta preso no Rio.
Uma traição mudara a Historia do Brasil, matando o sonho de Joaquim José da Silva Xavier, que foi tropeiro, minerador, cirurgião, soldado e herói. Um herói sem medo, que todos chamavam e chamariam sempre o Tiradentes.

Um menino como outro qualquer

Em 1746 o Brasil era uma colônia empobrecida. Na capitania de Minas Gerais, cuja população não chegava a 200 mil habitantes, boa parte das muitas toneladas de ouro extraídas era recolhida pela Coroa portuguesa e seguia diretamente para Lisboa. Nesse mesmo ano, na fazenda de Pombal, à beira do rio das Mortes, a um passo de São João del Rei e de São José del Rei, nasceu Joaquim José da Silva Xavier. Ele era o quarto entre sete irmãos: Domingos e Antônio, que se tornaram padres; José, que se fez capitão, e as meninas Maria, Eufrásia e Antônia.

Ele nasceu na Vila de São José, hoje Tiradentes.

Joaquim José era filho de pai português, Domingos da Silva dos Santos, e mãe brasileira, Antônia da Encarnação Xavier, nascida em Minas. Três dos avós eram portugueses e a avó materna paulista.
O menino Joaquim José cresceu na fazenda, onde seu pai, sem grande sorte, dedicava-se à mineração. Até os nove anos de idade, Joaquim José foi um garoto como outro qualquer, dividido entre os brinquedos com os irmãos, os primeiros ensinamentos da mãe, a curiosidade pelo trabalho de mineração que se fazia em seu redor, as orações aprendidas na capela da fazenda, festas e procissões.
Seu pai nunca foi rico, mas tinha o suficiente, chegando a possuir 35 escravos.
Era homem de respeito: elegeu-se vereador para a Câmara da vila de São José e foi escolhido para almotacé, importante cargo de fiscal. Também fazia parte, com a mulher, da Irmandade da Ordem Terceira de São João del Rei, da Irmandade do Santíssimo Sacramento e da Irmandade das Almas.
Mas, aos nove anos, Joaquim José ficou órfão de mãe e aos onze perdeu o pai. Aí a família se desfez, cada irmão foi para um canto, Joaquim José para a casa do padrinho, na vila de São José.
Joaquim José fora batizado na capela anexa à fazenda, tendo como padrinho o cirurgião Sebastião Ferreira Leitão e como madrinha Nossa Senhora da Ajuda. O padrinho Sebastião trabalhava na vila de São José: era especialista em arrancar dentes e substituí-los por novos. Tem-se como certo que foi Sebastião quem ensinou ao afilhado a arte de tirar dentes, além de completar sua alfabetização.

Foi sabendo usar este instrumento que Joaquim José passou a ser "Tiradentes".

E nas noites de São José, com saudades da fazenda, recordações do pai e da mãe, Joaquim José ouvia histórias do ouro: ali pertinho, contavam, o português Bento do Amaral Coutinho, por volta de 1709, aniquilara um grupo de paulistas desarmados, no lugar que passou a se chamar Capão da Traição, numa luta pela posse das minas de ouro. Mas Joaquim José gostava mesmo era do fim da história: ao fugir para São Paulo, derrotados, os bandeirantes foram obrigados pelas próprias mulheres a retornar a Minas para continuar a chamada Guerra dos Emboabas (era assim que os paulistas designavam os forasteiros), uma briga que durou três anos.
E nas noites de São José, quem sabe, o menino Joaquim José sonhava com ouro, com Vila Rica, São Paulo, Rio e Bahia, ou até com a Europa, onde muitos brasileiros estudavam.

Defendeu um escravo, perdeu tudo


Todos às minas, que ali há ouro em quantidade suficiente para enriquecer uma nação.


Alto, magro, forte e vesgo, o menino virou rapaz, hábil no manejo dos ferrinhos com que arrancava dentes. Mas as aspirações de Joaquim José iam além de Minas e dos trabalhos de dentista. Vira muita fortuna se formar, muito aventureiro enriquecer, muito ouro sair da terra, embora o auge da mineração, lá por 1750, já tivesse passado. Agora, aos poucos, o ouro ia rareando. Portugal, com seu poderio reduzido, dependia das importações da Inglaterra, mas continuava a viver na ostentação. O que pagava quase todas as compras e o luxo português era o ouro do Brasil. Por isso, o rei acusava a gente da Colônia de burlar a Coroa, quando dizia que as minas estavam esgotadas.
Joaquim José, apesar de já conhecido como o Tiradentes, deixou então de ser dentista, resolvendo primeiro transportar mercadorias numa tropa de burros e depois tentar a sorte nas minas de ouro. Não fez fortuna: a terra lhe negou ouro. Quando ia progredindo como tropeiro, meteu-se numa grande encrenca: socorreu um escravo que estava sendo castigado e acabou julgado por um tribunal, que o condenou a pagar pesada multa e as custas do processo. Por isso teve de vender seus burricos e mercadorias. Escravo era propriedade do dono, Tiradentes não tinha o direito — disseram — de se intrometer.
Assim, em dezembro de 1775, aos 30 anos, o minerador sem sorte, o tropeiro tão popular nos caminhos de Minas e Rio, sempre pronto a tratar ou arrancar um dente e capaz de fazer curativos como poucos, sentou praça na 6ª Companhia de Dragões da capitania de Minas Gerais. Por ser branco e descendente de portugueses cristãos, teve o privilégio de ingressar nas armas já como oficial, sem passar pelos postos subalternos. Tornou-se alferes, o que equivaleria hoje ao posto de 2º tenente.
Nos caminhos de Minas ficou seu riso e seu vozeirão: era conversador, tinha sempre um caso interessante para contar, todos gostavam dele. Soldado, Joaquim José destacou-se pela correção e coragem, primeiro em Minas, depois no Rio de Janeiro, capital da Colônia.
Voltando a Vila Rica, Tiradentes foi nomeado comandante da patrulha do Caminho Novo, que ligava Minas ao Rio. Sua tarefa era cuidar da conservação da estrada e mantê-la livre de assaltantes.
Pelo Caminho Novo passavam o ouro e os diamantes com destino às arcas reais. E o patrulheiro Joaquim José via a sua terra empobrecer, o marasmo a tomar conta dela. Quase tudo era proibido, as melhorias eram poucas. Abrir estradas novas — pensava o Governo português — era também criar caminhos para que os contrabandistas levassem o ouro das minas. A instalação de um serviço de correios possibilitaria a troca de notícias entre as longínquas localidades e com isso a união dos brasileiros. Fundar fábricas prejudicaria o monopólio comercial de Portugal, diminuindo assim a renda da Coroa. O conflito de interesses entre Colônia e Metrópole aumentava cada vez mais.

Um alferes, sempre alferes

Em Minas Gerais, os anos passavam e Tiradentes continuava um simples alferes. Não era promovido, embora tivesse colegas mais novos na tropa que já eram capitães. Homem de confiança, escolhido para missões de responsabilidade, Tiradentes mais de uma vez acompanhou o governador de Minas, Rodrigo de Meneses, em expedições de reconhecimento dos sertões, viagens em que, além de soldado, ajudava como cirurgião, traçava mapas, pesquisava terras para mineração e identificava minerais. Mas não o promoviam. Era sempre o Alferes. A injustiça estava marcando a vida de Joaquim José.
Em 1783, Cunha Meneses vem substituir a Rodrigo de Meneses no Governo da capitania. É um homem arbitrário, que só valoriza seus protegidos. Os brasileiros são sempre esquecidos, todos os favores vão para os filhos do Reino. Os homens são premiados só pelo nascimento ou pela bajulação. Também por isso, algumas velhas ideias vão ganhando corpo na cabeça de Tiradentes. E, nas tavernas, nos quartéis e pousos de beira de estrada, o Alferes, com seu vozeirão, começa a fazer críticas ao Governo, explicando que os nacionais estavam condenados à pobreza e à ignorância pela prepotência dos representantes da Coroa. Revoltava-o a submissão do povo à opressão dos governantes.
Outra voz, também de Vila Rica, logo se somaria à sua. A capital mineira era uma das vilas mais importantes do Brasil colonial, tão importante que, em 1730, apenas dezenove anos depois de sua fundação, já era assim descrita:
"Nesta Vila habitam os homens de maior comércio, cujo tráfego e importância excedem, em comparação, o maior dos maiores homens de Portugal; a ela se encaminham e recolhem as grandiosas somas de ouro de todas as Minas, na Real Casa da Moeda; nela residem os homens de maiores letras, seculares e eclesiásticos; nela tem assento toda a nobreza e força da milícia e, por situação de natureza, cabeça de toda a América, e pela opulência das riquezas, a pérola preciosa do Brasil".

Quase de um dia para outro, no centro da zona de mineração, surgiu Vila Rica, capital do ouro.

Pois essa vila, rica em ouro, igrejas, procissões coloridas e sobradões fechados no seu luxo, essa Vila Rica também se manifestava contra a tirania, através dos versos de poetas, nas chamadas Cartas Chilenas, que satirizavam a situação.
Nos versos, distribuídos em folhetos, o Governador de Minas aparecia como o Fanfarrão Minésio, descrito corno cruel e prepotente. Os autores das Cartas, para escapar à fúria das autoridades, usavam o pseudônimo de Critilo. Acredita-se hoje, através de pesquisas literárias, que quem assim escrevia era Tomás Antônio Gonzaga, ajudado por outro poeta, Cláudio Manuel da Costa. Juntos, ainda que trabalhando separados até então, os versos dos poetas e a palavra do Alferes abriam a luta pela emancipação política do Brasil.

Por fim, a grande escolha

Em 1787, quando a população da capitania de Minas Gerais passava dos 400 mil habitantes, o ouro já era difícil de encontrar e a Coroa portuguesa aumentava a pressão para recolher a parte que exigia. Joaquim José, mais e mais, pregava a liberdade: — Ora eis aqui têm vossas mercês todo este povo açoitado por um só homem e nós todos a chorarmos como escravos — ai; ai; e de três em três anos vem um, e leva 1 milhão; e os criados levam outro tanto; e como hão de passar os pobres filhos da América?
Aos 41 anos de idade, Tiradentes dava sentido à vida entregando-se ao sonho da independência. Não podia ser feliz em meio à exploração da sua gente: queria o que em outras partes do mundo muitos homens também desejavam.
O século XVIII foi, na Europa, um tempo de grande agitação política e filosófica. Tudo começara quase três séculos antes, com a chamada Revolução Comercial, que acabou dando aos burgueses o controle das finanças, das manufaturas, de quase todo o comércio. Enquanto isso, o poder político continuava na mão de reis e nobres, que protegiam companhias a eles ligadas e interferiam na liberdade dos comerciantes de se abastecerem em mercados estrangeiros, freando a onda de progresso dos grandes países da Europa daquele tempo. Analisando a disputa entre os donos do poder político e os que controlavam a economia, muitos pensadores investiram contra a nobreza e os velhos preconceitos, derrubando mitos em todos os campos, da ciência à política. Um clamor de liberdade para todos, em todos os assuntos, espalhou-se pela Europa. As novas ideias alastravam-se rapidamente. Os homens passaram a debater um conceito até então indiscutível: que os reis governavam por determinação divina. Iniciava-se a luta contra todas as tiranias. O homem devia ser livre, devia poder pensar o que quisesse.
Essas ideias revolucionaram também o Novo Mundo e, agitando a América inglesa, levaram-na a lutar pela sua independência. Com a libertação das treze colônias da Inglaterra, que passaram a se chamar Estados Unidos da América, chegava-se à primeira mudança concreta: o novo país escolheu o sistema republicano de governo.
A declaração de Independência dos americanos (4 de julho de 1776), escrita por Thomas Jefferson, sintetiza bem as concepções filosóficas da época:
"São verdades indiscutíveis para nós: que todos os homens nascem iguais; que a todos concedeu o Criador certos direitos inalienáveis, entre os quais estão o da vida, liberdade e a busca da felicidade; que os homens, para assegurarem esses direitos, constituíram governos, cujos justos poderes emanam do consentimento dos governados. Que, toda vez que uma forma de governo contraria esses fins, é um direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, baseando seus fundamentos em princípios tais e organizando seus poderes de tal forma, que a eles pareça contribuir mais eficazmente para sua segurança e felicidade".
No ano de 1788, a rainha de Portugal, Dona Maria I, tinha duas graves preocupações: impedir que as ideias de liberdade entrassem no seu reino e recuperar as finanças do país. Na França, o povo estava em vésperas de esmagar os nobres e a família real, clamando por liberdade e igualdade. Enquanto isso, a Inglaterra continuava exercendo domínio econômico sobre Portugal, a quem vendia produtos manufaturados a peso de ouro. Tudo fora luxo e fartura na Corte portuguesa, durante os anos em que o Brasil produzira ouro em abundância. Mas agora...

Até a metade do século XVIII, os riachos da região mineira foram palco de intensa atividade. Depois, o movimento começou a diminuir. Era o ouro que escasseava.

Até 1750, enquanto as minas davam muito, a Coroa manteve-se na opulência. Conseguia taxar as minas em quase 20% (o "quinto"). Quando a produção caiu, entretanto, estabeleceu-se a cobrança fixa dos direitos reais em 100 arrobas (1 500 quilos) por ano, qualquer que fosse a produção. Os soberanos precisavam, de todo modo, continuar recebendo o ouro das minas, sua propriedade particular que, benevolentemente, permitiram fossem exploradas.
A partir de 1762, a arrecadação não mais atingia a quantia fixada, pois as minas se estavam esgotando. Houve então a primeira derrama. O povo era obrigado a completar o total de impostos devidos com os seus próprios recursos. Uma segunda derrama se seguiu, em 1768, e durou três anos. Dezessete anos depois, em 1788, a Corte portuguesa exigia novo recolhimento das taxas atrasadas. Seria mais uma derrama, com a desculpa de que não havia queda de produção e sim contrabando. Para cobrar a grande dívida, tão grande que nem toda a produção de ouro de um ano poderia pagá-la, Dona Maria I nomeou governador de Minas Gerais o General Dom Luís Antônio Furtado de Mendonça, Visconde de Barbacena.

Um encontro muito importante

Desde março de 1787, desiludido da vida militar, o Alferes Joaquim José pedira licença e seguira para o Rio. Em Minas, os ideais de libertação fermentavam, mas não explodiam. E Tiradentes foi tentar vida nova no Rio.
Se não teve sorte na infância, nas diferentes profissões e nas relações com os poderosos, tampouco em sua vida sentimental conseguiu triunfos maiores. Só uma vez amou de verdade, sendo quase correspondido. Ela chamava-se Ana, tinha quinze anos, era sobrinha do Padre Rolim, futuro companheiro de rebelião. Mas a moça já estava prometida a outro, Tiradentes continuou só.

Homem elegante, chegando mesmo a ser vaidoso, Joaquim José sempre cuidou bem do único uniforme que vestiu na vida: o de alferes.

Antes disso, duas outras mulheres haviam entrado em sua vida, ambas de pobre condição social. A primeira, uma mulata, Eugênia Joaquina da Silva, de quem Joaquim José teve um filho, João. A outra, uma viúva, Antônia Maria do Espírito Santo, vivia nos arredores de Vila Rica e também lhe deu uma criança: desta vez, uma menina, batizada com o nome de Joaquina.
No Rio, Tiradentes elaborou projetos importantes: queria construir armazéns no cais, para proteção e guarda das mercadorias, e sonhava resolver o problema do abastecimento de água da cidade, canalizando os rios Andaraí e Maracanã. Praticando a medicina para viver, foi, ao mesmo tempo, fazendo grandes planos de engenharia.
As suas diversas petições para obras estavam na Câmara Municipal, e elas exigiriam enormes financiamentos. Joaquim José, agora misto de médico e engenheiro, pensou em recorrer a pessoas de importância, que lhe facilitassem a aprovação da Câmara. É para isso que naquele setembro de 1788 foi procurar o jovem José Álvares Maciel, que acabara de concluir seus estudos em Portugal e Inglaterra. Joaquim José e Maciel não se conheciam. Mas alguma coisa os ligava: ambos eram de Minas; Maciel, de Vila Rica, filho do capitão-mor.
Maciel chegava da Europa alimentando sonhos de independência. Joaquim José vinha de Minas, onde fervia a indignação contra o Governo. Os dois se somaram. Logo, a conversa desviou-se da engenharia. Joaquim José queria notícias da Europa, das novas ideias, dos movimentos de libertação. E Maciel pedia notícias de Minas, do estado de coisas, da política portuguesa. O Rio ia continuar sem água, no cais as mercadorias ficariam expostas à chuva e ao sol. Os dois homens tinham coisas mais importantes para discutir.

A decisão está tomada

Nesse encontro é possível que Maciel tenha lembrado a figura de José Joaquim da Maia, brasileiro do Rio, estudante de medicina na Universidade de Montpellier, na França, que dois anos antes procurara e fora recebido por Thomas Jefferson, um dos construtores da independência dos Estados Unidos, então embaixador em Paris. Foi um encontro entre um jovem entusiasmado e um estadista experiente. O brasileiro guardou fria recordação da entrevista. Queria contar como ia a situação do seu país, a sede de independência, a verdadeira subjugação em que andava seu povo. E pedir conselho e ajuda. Jefferson escutou-o com simpatia. Mas nada prometeu, a não ser que, se a guerra da independência começasse, alguns oficiais poderiam auxiliar voluntariamente os brasileiros. Maia queria muito mais e saiu decepcionado.
Terminada a licença, Tiradentes regressa a Minas na escolta da mulher de Barbacena, o novo governador. Sua recente conversa com Maciel — que prometera encontrá-lo em Vila Rica — revelara-lhe o caminho a seguir.
Nos meses que se seguem, Tiradentes procura ler tudo quanto se relacione com a independência das colônias inglesas na América do Norte e com os ideais europeus de libertação e dignificação do homem, ideais que tomavam também Portugal. Tem dificuldades. Essa literatura, rara e difícil de ser obtida, vem escrita em francês e inglês, línguas que o Alferes não dominava. Por isso, procura auxílio entre os intelectuais. Tiradentes quer descobrir os caminhos da independência.

A propaganda abre o caminho

Juntos de novo, Joaquim José e Maciel começam a traçar planos. Precisam da participação de um chefe militar que possa sublevar as tropas contra a Coroa. Uma coincidência os ajuda. O comandante do regimento em que o Alferes está servindo, Tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, é cunhado de Maciel. Vão procurá-lo, precisam conquistá-lo para suas ideias. Mas tudo tem que ser feito com muito cuidado.
O tenente-coronel está em casa, adoentado. Joaquim José chega dissimulando, a pretexto de uns soldos atrasados. E passa a falar do desgosto do povo, dos temores que a ameaça da nova derrama produzia, do sofrimento em que vivia toda a gente. Maciel, também presente, começa a abrir o jogo, contando que na Europa as pessoas estranhavam que a América portuguesa ainda não tivesse seguido o exemplo da América inglesa e proclamado sua independência, libertando-se de Portugal.
Joaquim José acrescenta que os impostos excessivos tornavam o povo disposto a seguir um chefe que os quisesse libertar. E Maciel fala do possível auxílio estrangeiro a um novo regime republicano, que se instalasse no Brasil. Paula Freire fica ouvindo e pensando. Chega a dizer que Minas é apenas uma capitania dentre muitas. Mas os dois conspiradores estão preparados, falam que as outras também apoiariam. Joaquim José assegura que o Rio e São Paulo estão dispostos a acompanhar Minas Gerais. Maciel lembra que, se o ouro ficasse no Brasil, Portugal não teria recursos para manter uma guerra.
E o tenente-coronel, pensando e ouvindo, concorda. Pronto: as tropas da rebelião contra a Coroa já tinham em Paula Freire o seu comandante.
Joaquim José não espera mais nada. Redobrou a propaganda da revolta. E, falando de Barbacena, ameaça:
— Sinto em mim o valor necessário para pôr esse general de Paraibuna abaixo! Que vá para o Reino e que diga lá que não precisamos mais deles! Somos mazombos (brasileiros, filhos de portugueses) e sabemos governar!

Na casa de Cláudio Manuel da Costa reuniram-se os poetas inconfidentes.

A primeira reunião dos conspiradores aconteceu em fins de 1788, na casa do Tenente-Coronel Paula Freire. A eles se unira o Padre Carlos Correia de Toledo e Melo, vigário de São João del Rei, homem rico e influente. O tenente-coronel lembrou mais alguns nomes que poderiam participar do movimento. E a conspiração foi crescendo com a participação do Cônego Luís Vieira da Silva, do Padre Oliveira Rolim e dos poetas e juristas Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto. Com o correr do tempo, mais nomes se juntariam aos primeiros. Não tinham chefe, pois "todos eram cabeças". E as reuniões prosseguiam, com as opiniões exaltadas de Tiradentes, a palavra de Maciel garantindo o apoio externo e a concordância de Paula Freire, que via possibilidade de vitória no terreno militar.
E Tiradentes dá início à campanha revolucionária aberta. Num tempo em que criticar o soberano era crime gravíssimo, o Alferes chega à temeridade, defendendo suas ideias em qualquer lugar em que estivesse. Sua técnica é simples: aborda as pessoas e, conforme a condição do ouvinte, ora denuncia a derrama, ora a injustiça social ou a violência das autoridades. Mas sua intenção não é apenas evitar a derrama ou diminuir os impostos.
Por motivos puramente fiscais, já em 1720 Vila Rica tinha sido palco de um protesto-monstro contra a Coroa, protesto logo sufocado e que resultou na condenação do principal responsável — o português Filipe dos Santos — à pena de morte e esquartejamento.
Mas Tiradentes não quer que o povo de sua terra se revolte apenas para lutar contra impostos. Quer a liberdade do Brasil. E assim iniciou-se a Inconfidência, como seria conhecida a rebelião, já que os revoltosos estavam negando fidelidade à Coroa portuguesa.

Os planos para tomar o poder

A guerra da independência dos Estados Unidos tivera início sob o impacto da cobrança de um imposto sobre o chá (1773). Os brasileiros contavam com a derrama. No momento da decretação da cobrança dos impostos atrasados, haveria clima para deflagrar o movimento e conquistar o apoio popular.
Os planos foram traçados: na ocasião da derrama, Tiradentes, depois de prender o governador, despertaria Vila Rica aos gritos de liberdade. A pretexto de restaurar a ordem, Paula Freire e suas tropas ocupariam a cidade e, com Vila Rica sob controle, declararia sua adesão à Inconfidência. As vilas vizinhas estavam prontas para dar o apoio preciso: o Padre Rolim garantia a adesão de Sêrro Frio; o Cônego Melo e seu irmão, sargento-mor e comandante de cavalaria Luís Vaz de Toledo Piza, respondiam por São João del Rei, enquanto Alvarenga Peixoto vinha preparando a sedição na povoação de Campanha.

No mastro central desta praça de Vila Rica, em frente à Casa da Câmara e Cadeia (hoje Museu da Inconfidência de Ouro Preto), o povo pôde ver Tiradentes pela última vez.

Os inconfidentes sabiam que haveria luta. E se preparavam para ela. Nos primeiros dias, o Padre Rolim, homem rico, fazendeiro, entraria com pólvora e cem homens armados. Mais pólvora deveria vir de Domingos de Abreu Vieira, um velho comerciante e fazendeiro. Isso daria tempo a que Maciel instalasse uma fábrica de pólvora. A coisa entra em ritmo de urgência: Tiradentes queria que se proclamasse a República, mas o nome do novo país não ficou decidido, porque a maioria dos conjurados queria antes saber até que ponto o Brasil estava disposto a livrar-se do domínio português. Redigem um projeto de Constituição; a capital deve ser transferida para São João del Rei; Vila Rica em troca, vai ganhar uma universidade; debatem o fim da escravidão, mas deixam a questão em suspenso, já que alguns não acham o momento oportuno. Tiradentes propõe que a bandeira da nova república seja um triângulo simbolizando a Santíssima Trindade, riscado em vermelho sobre fundo branco. Alvarenga sugere uma inscrição tomada ao poeta latino Virgílio: Libertas quae sera tamen — Liberdade ainda que tardia. Agora é só esperar que Barbacena decrete a derrama. Os inconfidentes resolvem não mais se reunir e combinam uma senha: — Tal dia é o batizado. O dia do "batizado" seria a data da derrama.

Entre os heróis, um vilão

O Coronel Joaquim Silvério dos Reis, fazendeiro e minerador no lugar chamado Igreja Nova da Borda do Campo (hoje Barbacena), comandante de tropa em São João del Rei, pessoa de reputação duvidosa, chegou à conspiração através do Sargento-Mor Toledo Piza. Embora não o apreciando, os inconfidentes aceitaram a aproximação. Silvério dos Reis devia enorme quantia ao Governo português e ficaria arruinado com a derrama. Assim, os conspiradores julgaram poder confiar nele. Mas não lhes ocorreu que, para alguém como Silvério, haveria formas mais fáceis e menos arriscadas de livrar-se de suas dívidas. Introduzido no movimento, conheceu todos os segredos. Tinha até missão para o dia da revolta: levaria duzentos escravos armados para guardar a estrada do Rio de Janeiro, por onde deveriam vir as tropas do vice-rei fiéis à Coroa portuguesa.
Mas eram outros os planos de Silvério dos Reis. Com todas as informações sobre a Inconfidência, a 15 de março de 1789 correu ao palácio de Barbacena para trocar a cabeça dos companheiros pelo perdão das suas dívidas. Barbacena ouviu e meditou. Não era homem de precipitações. Julgava Silvério dos Reis um homem de "mau coração". Fez divulgar surdamente que já sabia de tudo e esperou por novos traidores que confirmassem o primeiro. Logo apareceram Basílio de Brito Malheiros e Inácio Correia de Pamplona, tudo contando ao governador. Barbacena, para ganhar tempo, suspendeu imediatamente a decretação da derrama.
Nesse instante crucial, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier não estava em Vila Rica: tinha ido ao Rio com a desculpa de ver como iam os seus requerimentos de obras públicas, para conseguir o apoio da guarnição carioca. Sua ausência na hora da delação e da descoberta dos planos auxiliou o desmoronamento da rebelião.
Amedrontados pela decisão de Barbacena, os conspiradores limitaram-se a aguardar os acontecimentos. A decisão e iniciativa, que poderiam ter sido a garantia de vitória, ficaram aos portugueses. E começaram as prisões.
Faltaram à conspiração mineira mais homens arrojados como Tiradentes e Oliveira Rolim, mais homens de inteligência e sangue frio como Álvares Maciel. A rebelião seria esmagada sem que um tiro fosse disparado.

Outra vez, uma traição

O cavaleiro que parte de Vila Rica rumo ao Rio leva torpe missão. É ele mesmo, o delator Silvério dos Reis, que a mando de Barbacena vai espionar Tiradentes para facilitar ao vice-rei o trabalho de prendê-lo. O traidor encontra sua vítima e lhe relata os fatos de Minas: a derrama está suspensa, Barbacena desconfia de alguma coisa.
Joaquim José sente que a revolução corre perigo, mas não desconfia de Silvério e até lhe conta que estava sendo seguido por homens que sabia serem soldados da capitania do Rio, chegando mesmo a levar queixa ao Vice-Rei Dom Luís de Vasconcelos e Sousa, perguntando-lhe se era acusado de algum crime. Vendo seus planos ameaçados, o Alferes decide voltar a Minas: consegue iludir os espiões que o vigiavam e, sempre no Rio, esconde-se em casa de Domingos Fernandes da Cruz, de onde começa a preparar a viagem de regresso. Não lhe foi fácil arrumar casa que o recebesse. Teve até que dissimular com Dona Inácia, sua comadre, a quem disse que o vice-rei queria culpá-lo por um crime ocorrido em Minas e não lhe dava passaporte, pretendendo prendê-lo. Porque era viúva e porque tinha filha solteira, Dona Inácia não quis recebê-lo. Mas, como lhe devia favor — Joaquim José tratara e curara uma feia ferida na perna de sua filha —, a viúva arruma-lhe lugar na casa do torneiro Domingos, na Rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias. E lá está o Alferes tramando planos de fuga, quando uma imprudência põe tudo a perder.
Joaquim José queria notícias de Minas e, para obtê-las, mandou um amigo, o Padre Inácio Nogueira, à procura de Silvério dos Reis. Outra vez, o traidor foi fiel à traição e entregou o padre ao vice-rei. O sacerdote inconfidente Inácio Nogueira resistiu o quanto pôde, mas as torturas acabaram por vencê-lo, levando-o a indicar a casa onde estava o Alferes. Uma patrulha saiu em sua busca. E é assim que, a 10 de maio de 1789, a casa de Domingos Fernandes da Cruz é cercada. Prendem Joaquim José com um bacamarte na mão, mas já sem poder resistir.

Eram muitos os inimigos. Com apenas um bacamarte, nada pôde fazer o Alferes quando foi preso no Rio.


Agonia de um sonho

Enquanto isso, em Vila Rica, os conspiradores se dividiam. Apenas o Padre Oliveira Rolim tentava começar o levante de qualquer maneira, só desistindo quando achou que a tarefa tornara-se impossível. Não ficou notícia da posição do jovem Maciel. Supõe-se que, ao lado do padre, tenha procurado levar adiante o movimento. Mas era muito tarde.
E Gonzaga, o poeta e jurista, também procurou Barbacena. Não sendo propagandista apaixonado, nem teórico da causa, e tendo tido atuação discreta, sentia-se capaz de passar como inocente aos olhos da Coroa. Quando a derrama foi suspensa, Gonzaga esteve no palácio para cumprimentar Barbacena pelo ato. Mas o governador já o tinha sob os olhos e, onze dias após a prisão de Tiradentes, Gonzaga foi detido, apesar de ser ouvidor (juiz de direito), de ter posição elevada e de ser amigo de Barbacena.
Com a derrota, os homens revelavam-se: Alvarenga Peixoto aconselhava que, se fossem presos, deviam negar tudo; o Cônego Melo, acovardado, recusava-se até a falar no assunto; e o Tenente-Coronel Paula Freire, a quem deveria caber a iniciativa de resistir ao Governo com seus soldados, abandonou a cidade, indo para sua fazenda, de onde voltou para denunciar os companheiros e tentar salvar-se. Traiu, mas não conseguiu escapar.

Dias depois, em Vila Rica, seus companheiros também eram detidos. Mais tarde, uma trágica expedição os levaria para o Rio de Janeiro.

As prisões foram numerosas. Ia começar a devassa, inquérito rigoroso para julgar os acusados de sedição, um crime infame, segundo a Coroa portuguesa. Por decisão real, o processo correu no Rio de Janeiro. Antes de ser transferido para o Rio, um dos prisioneiros, o poeta Cláudio Manuel da Costa, sessenta anos, suicidou-se ou foi morto na prisão de Vila Rica.
No Rio de Janeiro, mantidos em celas individuais, só se avistando com seus interrogadores ou com os delatores com quem eram acareados, os inconfidentes aguardaram a sentença durante três longos anos. Completamente isolados do mundo, com os bens sequestrados e a família posta na miséria, os prisioneiros esperavam. Os poetas encontravam alento para escrever. Tomás Antônio Gonzaga lembrava-se dos momentos passados com sua noiva:

"Que diversas que são, Marília, as horas
que passo na masmorra imunda e feia,
dessas horas felizes, já passadas
na tua pátria aldeia".


Esta é Joaquina, noiva do poeta Tomás Gonzaga. Com o nome de Marília, foi a inspiradora de muitos versos de amor.


Alvarenga Peixoto dedicava seus versos à esposa Bárbara Heliodora aos seus filhos:

"Eu não lastimo o próximo perigo,
uma escura prisão, estreita e forte.
Lastimo os caros filhos, a consorte,
a perda irreparável de um amigo”.

O amigo a quem Alvarenga se refere era Cláudio Manuel da Costa. Pouco a pouco, sob o peso da coação moral e da agressividade dos interrogatórios, os inconfidentes se entregaram.
O primeiro a ceder foi Alvarenga. Em lágrimas, sob a mais violenta crise, contou tudo. E, um a um, os outros todos se declararam culpados. Somente Gonzaga resistiu até o fim, insistindo na sua inocência, fortalecido pela absoluta falta de provas contra si.

Para libertar seus companheiros, Tiradentes assumiu toda a culpa e se manteve sereno e tranquilo, mesmo depois de conhecer a sentença final.

Em três interrogatórios, Tiradentes tudo negou. Mas no quarto, a 18 de janeiro de 1790, apareceu com resolução nova. Confessou. Não quis, entretanto, que seu ato fosse inútil e, frustrado em libertar sua pátria, tentou ao menos salvar os companheiros. E confessou não só a sua participação, mas assumiu a culpa de todos. Mentiu ser o único chefe e apresentou os companheiros como inocentes a quem pervertera.

Catorze homens para a forca

No processo estavam envolvidos 34 acusados. Muitos tinham tido papel secundário, alguns nem mesmo participação ativa.
A 18 de abril de 1792, os cinco réus padres receberam a sentença: três deles, o Cônego Melo, o Padre Rolim e o Padre José Lopes de Oliveira, foram condenados à forca; os outros dois, atingidos pelo degredo perpétuo — seriam expulsos do Brasil e enviados para lugar remoto, em alguma outra colônia, até morrerem.
No dia seguinte, 19, às 2 da madrugada, os oficiais da Justiça entraram na cadeia com a sentença para os 29 civis e militares. Pela primeira vez, desde a prisão, os inconfidentes estavam juntos. Os três anos de incomunicabilidade — passados em isolamento, inquisições e formalidades processuais — lhes deram um violento desejo de falar. E falando, alguns se acusando, passaram horas, até a chegada da volumosa sentença, que levou dezoito horas para ser escrita, e cuja leitura só terminou depois de duas duras horas.
Os nomes dos réus, com suas culpas, desfilaram um a um, até que o escrivão passou a ler as penas. Paula Freire, Maciel, Alvarenga, Domingos de Abreu Vieira, Francisco Antônio de Oliveira Lopes e Luís Vaz de Toledo Piza, irmão do Cônego Melo, iam ser enforcados e suas cabeças cortadas e colocadas em postes altos, em frente de suas casas, "até que o tempo as consuma". Salvador Carvalho do Amaral Gurgel, José de Resende Costa, pai, José de Resende Costa, filho, e Domingos Vidal Barbosa seriam enforcados, com infâmia para os descendentes até a terceira geração, mas não teriam as cabeças cortadas.
Tomás Antônio Gonzaga e os demais receberam o degredo perpétuo, a ser cumprido na África. Só alguns poucos foram absolvidos, depois de terem sofrido três anos de prisão.
Digno e sereno, Tiradentes ouviu a sua sentença:
— Portanto condenam ao réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi da tropa paga da capitania de Minas, a que com braço e pregação seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde em o lugar mais público dela será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma; e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregado em postes, pelo caminho de Minas, no Sítio da Varginha e das Cebolas, onde o réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o réu infame, e seus filhos e netos, tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no Chão se edifique, e, não sendo própria, será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados, e no mesmo chão se levantará um padrão, pelo qual se conserve a memória desse abominável réu.

46 anos depois, seus bens seriam confiscados. Este relógio foi o que de melhor a Coroa recebeu.

Mas os bens de Tiradentes não enriqueceram o tesouro de Dona Maria I, a Rainha Louca: um par de esporas de prata, um par de fivelas, duas navalhas de barbear, um espelho, uma bolsa com ferros de dentista, uma bússola, um canivete, uma caixinha de chifre e um relógio marca Elliot. Isso era tudo o que possuía o autor, segundo os juízes, de um grande crime:
— Mostra-se que entre os chefes e cabeças da conjuração, o primeiro que suscitou as ideias de república foi o réu Joaquim José da Silva Xavier, o qual há muito tempo que tinha concebido o abominável intento de conduzir os povos da capitania de Minas a uma rebelião.
Após a leitura da sentença, reunidos réus e confessores, houve muito choro, lamentações e pânico. Domingos Vidal Barbosa ria como louco. Alvarenga rezava e falava nos filhos. Maciel lia uma Bíblia e procurava consolar os companheiros mais desesperados.
A um canto, com seu confessor, Frei Raimundo de Penaforte, Tiradentes murmura, quase numa oração:
— Se Deus me ouvisse, só eu morreria e não eles.
E, como se Deus atendesse ao apelo, no dia seguinte, todas as penas de morte foram comutadas para o degredo, exceto uma. A Coroa fazia questão de enforcar ao menos um dos conspiradores, para que servisse de exemplo: Tiradentes fora o escolhido.
A louca alegria foi geral. Houve até quem, entre os condenados, desse vivas "à nossa clementíssima soberana Dona Maria I". E na confusão ninguém prestou atenção a Tiradentes, ninguém lhe agradeceu o papel heroico e digno. Somente Frei Penaforte recolheu lhe as palavras:
— Dez vidas eu daria, se as tivesse, para salvar as deles.

A longa marcha para a morte

Arreios de prata refletem o sol que nasce. O desfile das montarias militares, com suas mantas coloridas, acorda a cidade do Rio de Janeiro. A Rua do Piolho, onde está a cadeia, o Largo da Lampadosa e o Campo de São Domingos estão cheios de gente. Os soldados, em posição de sentido, são inspecionados pelo filho do novo vice-rei, o Conde de Resende. As janelas estão apinhadas. As tropas fazem alas da cadeia ao Campo de São Domingos.
O objetivo da Coroa era fazer da execução uma festa. Mas na manhã ensolarada a multidão tem o rosto sombrio. Todos sabem que aquilo tudo não passa de um enterro.
Um frade pede esmolas. Com o dinheiro pretende mandar rezar uma missa pelo condenado. Todos contribuem com suas moedas, enquanto a curtos intervalos um funcionário lê solenemente a declaração real:
— Justiça que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame réu Joaquim José da Silva Xavier, pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constitui chefe e cabeça na capitania de Minas, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana e suprema autoridade da mesma Senhora que Deus guarde.

A Revolução Francesa levou esta mulher à loucura: ela temia perder o seu trono.

Era o dia 21 de abril de 1792. O ar estava cheio de vozes e de tambores. Às 7 da manhã, o negro Capitânia, que vai servir de carrasco, entra no oratório da cadeia, onde está Tiradentes. Traz nos braços comprida e grossa corda e o camisolão branco dos condenados. Joaquim José está sem barba, o cabelo todo raspado, preparado para enfrentar a morte. O carrasco lhe pede perdão pelo que o obrigam a fazer. Tiradentes beija-lhe as mãos. E, sem roupa alguma, veste o feio manto dos que vão para a forca, dizendo:
— Meu Salvador morreu também assim, nu, por meus pecados.
Recebe no pescoço a corda do carrasco. Não são ainda 9 horas e começa o triste cortejo. Sai à frente uma companhia de soldados. Depois, os frades dizendo orações. E, em seguida, Tiradentes, laço no pescoço, a ponta da corda segura pelo carrasco. Ao seu lado, funcionários da Justiça e, quase abraçado ao condenado, Frei Penaforte reza com ele. Mais atrás, os representantes da Coroa, guardados por outra companhia de soldados. No fim, um carroção desajeitado: ali colocarão os pedaços de um corpo que será esquartejado.

Apesar de descalço, metido em uma camisola, Tiradentes nada tem de ridículo. Ele é forte: a cabeça alta, o porte ereto, o passo firme, marcha para a forca. Há um clamor no Largo da Lampadosa: o condenado está chegando. Tiradentes entra na praça, sobe os degraus do patíbulo, beija o crucifixo e dirige-se ao carrasco:
— Acabe logo com isso.
Mas há sermão. É Frei José Jesus Maria de Desterro quem fala: explica que a cena que vai ser vista não é cruel, que é apenas justiça que a piedosa soberana Dona Maria I manda fazer contra o réu, autor do mais hediondo dos crimes: a sedição.
Outra vez, Tiradentes pede ao carrasco que acabe logo com tudo. Mas o padre continua falando da benignidade da rainha e da infâmia do condenado ainda por uma hora e meia.
Fim do discurso impiedoso. Reza-se o Credo. Os tambores não cobrem a voz de Tiradentes, que reza com o povo. Súbito, no meio de uma frase, um baque surdo. O bater dos tambores cresce, o corpo de Tiradentes balança no ar.
O carrasco cavalga o corpo do herói, trepa-lhe nos ombros, para apressar o fim. São 11 horas e 20 minutos. O sol vai alto. Tiradentes está morto.
Frei Raimundo de Penaforte, o confessor, abençoa o corpo. Mais tarde escreveria:
— Foi um daqueles indivíduos da espécie humana que põem em espanto a própria natureza. Entusiasta, empreendedor com o fogo de um Dom Quixote, habilidoso com um desinteresse filosófico, afoito e destemido, sem prudência às vezes e outras temeroso ao cair de uma folha, mas o seu coração era bem formado.
Um espírito inquieto, um homem leal, esse Alferes Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha Tiradentes, herói sem medo de todo um povo.

O carrasco Capitânia conhece sua vítima: de pé, descalço, seminu, está um homem pronto para tudo.

A Coroa quisera, com o espetáculo do enforcamento, afirmar o seu domínio sobre a colônia brasileira. Tiradentes tentara, com o sacrifício, salvar os companheiros e abrir ao povo o caminho da emancipação política.
Na morte, venceu Tiradentes. Apenas uma semana depois da execução registrava-se um novo ato de desobediência ao Governo de Portugal: apesar da vigilância dos guardas, desaparece a cabeça de Tiradentes, espetada num poste de Vila Rica.
O roubo da cabeça, embora possa ter sido apenas um ato de piedade cristã, mostra também que o Governo não mais intimidava o povo. Os traidores souberam disso pelo rancor que a população lhes devotava. Silvério dos Reis escreveu ao vice-rei, dizendo que "tudo fizera por Sua Majestade ... e agora só recebia em troca inquietação e desassossego". Também Basílio de Brito Malheiros — o outro traidor — revelou em seu testamento que vivera com receio de ser assassinado.
Os habitantes de Minas Gerais estavam mais preparados para a revolta do que supunham os próprios inconfidentes. Não fossem a indecisão e a pusilanimidade de Paula Freire, o comandante das tropas, e é possível que a história da Independência do Brasil tivesse sido diferente.
Uma parte de insegurança que a Inconfidência mostrou nos momentos decisivos talvez se deva ao isolamento de Minas, pois os rebeldes não tinham certeza de como se comportariam as demais capitanias, uma vez iniciado o levante. Numerosas vezes, as palavras de Paula Freire expressaram tal preocupação. E, no entanto, em todo o Brasil já crescia a revolta.
Menos de dois anos depois da morte de Tiradentes, o Governo português iniciava uma nova devassa, desta vez no Rio de Janeiro, prendendo o poeta Silva Alvarenga e o bacharel Mariano José Pereira, futuro Marquês de Maricá, entre outros. Era o temor à rebelião que se alastrava. E, em 1798, a conjuração explode na Bahia, envolvendo 669 pessoas, a maioria das quais não pôde ser localizada. Desta vez, a repressão portuguesa enforcou quatro revoltosos (João de Deus, Lucas Dantas, Manuel Faustino e Luís Gonzaga), gente humilde — alfaiates e sapateiros — que pretendia fazer do Brasil uma república.
A cada instante tornava-se mais difícil a Portugal impedir que as ideias liberais se propagassem pelo Brasil. E, em cada novo pensamento rebelde, em cada gesto de desobediência política, em cada desejo de liberdade estava a sombra de um homem enforcado. Tiradentes mostrara o caminho.

Cumpriram a sentença brutal até o fim.



TIRADENTES é uma publicação em fascículos encadernáveis da coleção
GRANDES PERSONAGENS DA NOSSA HISTÓRIA - Volume I
ABRIL CULTURAL.
Editor: Victor Civita
Supervisão: Prof. Sérgio Buarque de Holanda
Colaboração Editorial: Luís Fernando Mercadante
Publicado em 1969


sexta-feira, 19 de abril de 2013

A CONFEDERAÇÃO DOS CARIRIS


No Sul do Brasil, a famosa Confederação dos Tamoios, decantada em prosa e em verso, ameaçou a dominação portuguesa. No Nordeste, especialmente no Rio Grande do Norte e no Ceará, a Confederação dos Cariris, embora muito menos falada, quase destruiu em seus fundamentos a colonização lusa. Os Cariris eram uma nação indômita e inquieta, de língua travada, como se dizia, isto é, que não falava o idioma tupi. Habitavam o sertão, mas, ao longo dos rios, de suas cabeceiras se estendiam até as proximidades da costa. Ocupavam a vastíssima região compreendida entre a margem esquerda do rio São Francisco e as quebradas das serras do Araripe e da Ibiapaba. Combatidos pelos bandeirantes baianos da Casa da Torre de Garcia d'Ávila, com eles às vezes se aliaram para dar caça a outros indígenas seus inimigos.
Escuros, altos, membrudos, ornados de penas negras, carrancudos e tristonhos, figuram nos documentos antigos com os vários nomes de Carirys, Carirés, Kiriris e até Alarves. Essas denominações cabiam ao seu ramo principal. Outros ramos do mesmo sangue usavam apelidos diferentes. Evangelizaram-nos no alto S. Francisco, no Século XVII, os capuchinhos franceses Martim de Nantes, Teodoro de Lucé, Bernardo de Nantes, Boaventura de Becherel, Anastácio d'Audierne e José de Ploermel. Deve-se ao primeiro a interessantíssima "Relation succinte et sincère de la Mission du Pe. Martin de Nantes, prédicateur capucin, missionaire apostolique dans le Brésil parmi les incliens appelés Cariris". No Ceará, aldearam-nos e converteram-nos, no Século XVIII, os franciscanos italianos Carlos Maria de Ferrara, Francisco de Palermo e Joaquim de Veneza, os frades carmelitas fundadores de Missão Velha e Missão Nova e o jesuíta Jacob Cochlo. Todavia, em 1780, restavam poucos descendentes dessas tribos bravias, que foram transferidos para as vilas de índios mansos das cercanias da sede da capitania do Ceará: Paupina ou Messejana, Arronche ou Parangaba e Caucaia ou Soure, onde foram dentro de algum tempo absorvidos pela população local.
Grande número de tribos Cariris, umas mais numerosas, outras menos, viviam pelas diversas ribeiras sertanejas do Ceará até próximo do litoral ou para ele se dirigiam de outubro a novembro, para a colheita do caju, que usavam como alimento e na fabricação do vinho denominado mocororó. Quando se iniciou o povoamento desses rincões com a fundação das primeiras fazendas de gado e dos primeiros estabelecimentos agrícolas, nos seus deslocamentos a indiada não respeitou as reses e plantações dos brancos que se apossavam das terras consideradas por eles como suas. Tais choques foram o violento prefácio duma luta brutal que, de 1683 a 1713, duraria 30 anos. Durante esse longo período, as várias nações Cariris se confederaram contra o invasor, mas se viram implacavelmente batidas, escravizadas, chacinadas e disseminadas no seio de outras populações.
A grande luta começou em 1683 no Rio Grande do Norte. Os índios Jandins ou Janduís, habitantes das regiões do Açu, Mossoró e Apodi, aliados outrora dos holandeses, a quem ajudaram na bárbara matança da população portuguesa no engenho Cunhaú, levantaram-se em armas contra o domínio luso, matando, saqueando, arrasando as propriedades, não deixando "pedra sobre pedra". O incêndio da revolta propagou-se celeremente pelo vale cearense do Jaguaribe, alcançando os mais longínquos sertões, chegando aos limites do Piauí. As tribos dos Paiacus, Icós, Anacés, Quixelôs, Jaguaribaras, Acriús, Arariús, Canindés, Jenipapos, Tremembés e outras acompanharam os Janduís, lançando-se ferozmente à luta.
Em face da gravidade da situação, dos pedidos de socorro que lhe chegavam das zonas conflagradas, não dispondo de forças suficientes para reprimir a revolta, frei Manuel da Ressurreição, então no governo-geral do Estado do Brasil, decidiu requisitar do capitão-mor de S. Vicente e S. Paulo uma tropa de paulistas aguerridos e conhecedores do modo de combater do gentio, para pôr termo àquela anarquia, do mesmo modo de Palmares. Veio por isso de S. Paulo, rompendo os ínvios sertões, o terço do mestre-de-campo Matias Cardoso, que atravessou o São Francisco, varreu os Janduís e estabeleceu na foz do Jaguaribe para dominar o vale o destacamento do capitão João Amaro Maciel Parente.
A presença dos paulistas não evitou que a guerra entre os brancos e os silvícolas confederados se dilatasse anos seguidos das fronteiras do Rio Grande do Norte ao interior de Ceará. A Matias Cardoso sucedeu no comando do aguerrido terço o mestre-de-campo Fernão Carrilho, que, em 1691, conseguiu bater os melhores aliados dos Janduís, os Paiacus, forçando-os a tratarem a paz e dando-lhes como condição a empresa de atacarem os confederados Icós e Carateús, alçados em guerra pelo sertão adentro.
Os Paiacus foram os mais terríveis e constantes inimigos dos colonizadores na zona do baixo Jaguaribe. Seu apelido varia muito na documentação coeva: Paiacus, Pacajus, Piacus, Pyacus, Baacuss, Bayacus, mesmo Baiquis e Baquaes. Raça valente nunca de todo submetida. Desde 1666, andava em constantes correrias e assaltos contra os brancos, combatida embora e dizimada pelas expedições primitivas dos ajudantes Francisco Martins e Filipe Coelho de Morais, veteranos nas campanhas contra os bugres. Aderiram em 1686 à rebeldia dos Janduís. Batidos por Fernão Carrilho em 1691, três anos depois, em 1694, tornavam a guerrear os lusos, sendo vencidos pela tropa do famigerado capitão Francisco Dias de Carvalho. Em 1696, o cansaço e as perdas de vidas levaram-nos a firmar a paz com os portugueses.
Todavia, a luta contra outras tribos da Confederação dos Cariris prosseguia sem descanso, tanto que foi necessário mandar vir novos reforços de S. Paulo sob o comando do mestre-de-campo Manuel Alves de Morais Navarro. Não se sabe bem por que motivo, se por alguma denúncia de estarem preparando qualquer traição, se por ter sido ferido em combate contra os selvagens e estar furioso por isso ou se por mera desconfiança e crueldade, o chefe militar paulista convidou os Paiacus aquietados para entrarem em campanha ao seu lado, atacando-os e matando-os de surpresa.
O sangrento episódio aconteceu no dia 4 de agosto de 1699. Estavam os Paiacus desarmados e pintados festivamente, dançando suas danças guerreiras, quando deram sobre eles, descarregando os mosquetes e cortando-os a espada, os aventureiros do terço de Morais Navarro. Mataram homens, mulheres e crianças sem piedade. O crime inominável levantou protestos indignados do missionário João da Costa, a que energicamente logo se associou o bispo de Olinda, D. Frei Francisco de Lima. Por ordem do rei, o mestre-de-campo foi preso e submetido a processo.
Apesar dessa terrível matança, como não cessasse a luta entre os brancos e os tapuias cearenses, de novo os Paiacus se rebelaram em 1703, acompanhados pelos Icós. Então, todo o vale do Jaguaribe pegou fogo. Mandado contra os Icós, o capitão Pedro Mendonça os derrotou, escravizando-os sem distinção de sexo ou idade. Contudo, os remanescentes dos vencidos, unindo-se a outras tribos em pé de guerra, continuaram a peleja de tal modo que, em 1706, o governo real mandava fornecer armas a todos os moradores da capitania do Ceará, para provimento de sua defesa pessoal, de suas famílias e de seus bens contra a indiada rebelde. Em 1708, o capitão Bernardo Coelho de Andrade, chefiando um destacamento de gente destemida, destruiu as resistências que lhe opuseram os Icós, os Cariris, os Cariús e os Carateús.
No ano de 1713, a Confederação dos Cariris mostrou-se ainda viva na revolta geral desencadeada pelos Paiacus, Anacés, Jaguaribaras, Acriús, Arariús, Canindés e Jenipapos, que forçaram os Tremembés a segui-los. A vila do Aquirás, então sede da capitania, foi inopinadamente atacada. Na sua defesa, morreram 200 pessoas. O resto da população fugiu, defendendo-se como pôde pelo caminho, que semeou de mortos, indo acolher-se à proteção dos canhões da  fortaleza de Nossa Senhora da Assunção na foz do Pajeú. Esse êxodo deu origem à vila, depois cidade da Fortaleza, que acabou superando a do Aquirás.
A bugrada à solta destruiu centenas de casas, sítios e fazendas. O interior da capitania quase se despovoa. As comunicações com Pernambuco, que se faziam pelo litoral, foram cortadas. Entrou então em ação o famoso regimento de ordenanças do coronel João de Barros Braga. Essa Cavalaria do Certam, como dizem os velhos documentos, vestida de couro e composta de homens conhecedores do terreno em que pisavam, bem como do modo de guerrear dos indígenas, exterminou-os em violentíssima guerra de morte que subiu pelo vale do Jaguaribe ao do Cariri e aos confins piauienses.
Depois dessa campanha, as relíquias dos Paiacus do baixo Jaguaribe, dos Canindés e Janipapos do rio Banabuiú foram aldeadas em Monte-mor-o-novo e Monte-mor-o-velho, depois, respectivamente, vilas de Guarani e de Baturité. A primeira chama-se agora Pacajus em memória dos seus indomáveis guerreiros bronzeados. Os restos dos Icós foram exilados em Sousa, no alto sertão da Paraíba. Os remanescentes dos Acriús e Arariús do rio Acaraú e da serra da Meruoca foram confinados na povoação de Nossa Senhora da Assunção da Ibiapaba, posteriormente crismada em Vila Real da Viçosa, onde pregara outrora o Padre Antônio Vieira. Os últimos Tremembés feneceram em Soure em Almofala, onde seus descendentes ainda hoje conservam lembranças de seus ritos coreográficos. Os derradeiros Cariris formaram no antigo Brejo a Missão do Miranda, que se tornou a Vila Real do Crato.
Assim, acabou melancolicamente a terrível Confederação dos Cariris que durante 30 anos trouxe em sobressalto as gentes que iam povoando e civilizando as terras do Rio Grande do Norte e do Ceará. Foi uma das mais notáveis experiências duma conjugação de esforços realizada por selvagens do Brasil, sempre tão desavindos e inimigos entre si, com o fito de obstar a conquista de suas terras. Esforço baldado, pois sua sorte diante do invasor fora lançada e não seria a bravura instintiva suficiente para vencer com arcos e flechas a inteligência sagaz, a pólvora, as balas de chumbo e a cultura superior do europeu. Como a humanidade tupi, embora menos maleável, a humanidade tapuia teria de ser dominada e absorvida pelo colonizador.



- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.