sexta-feira, 19 de abril de 2013

A CONFEDERAÇÃO DOS CARIRIS


No Sul do Brasil, a famosa Confederação dos Tamoios, decantada em prosa e em verso, ameaçou a dominação portuguesa. No Nordeste, especialmente no Rio Grande do Norte e no Ceará, a Confederação dos Cariris, embora muito menos falada, quase destruiu em seus fundamentos a colonização lusa. Os Cariris eram uma nação indômita e inquieta, de língua travada, como se dizia, isto é, que não falava o idioma tupi. Habitavam o sertão, mas, ao longo dos rios, de suas cabeceiras se estendiam até as proximidades da costa. Ocupavam a vastíssima região compreendida entre a margem esquerda do rio São Francisco e as quebradas das serras do Araripe e da Ibiapaba. Combatidos pelos bandeirantes baianos da Casa da Torre de Garcia d'Ávila, com eles às vezes se aliaram para dar caça a outros indígenas seus inimigos.
Escuros, altos, membrudos, ornados de penas negras, carrancudos e tristonhos, figuram nos documentos antigos com os vários nomes de Carirys, Carirés, Kiriris e até Alarves. Essas denominações cabiam ao seu ramo principal. Outros ramos do mesmo sangue usavam apelidos diferentes. Evangelizaram-nos no alto S. Francisco, no Século XVII, os capuchinhos franceses Martim de Nantes, Teodoro de Lucé, Bernardo de Nantes, Boaventura de Becherel, Anastácio d'Audierne e José de Ploermel. Deve-se ao primeiro a interessantíssima "Relation succinte et sincère de la Mission du Pe. Martin de Nantes, prédicateur capucin, missionaire apostolique dans le Brésil parmi les incliens appelés Cariris". No Ceará, aldearam-nos e converteram-nos, no Século XVIII, os franciscanos italianos Carlos Maria de Ferrara, Francisco de Palermo e Joaquim de Veneza, os frades carmelitas fundadores de Missão Velha e Missão Nova e o jesuíta Jacob Cochlo. Todavia, em 1780, restavam poucos descendentes dessas tribos bravias, que foram transferidos para as vilas de índios mansos das cercanias da sede da capitania do Ceará: Paupina ou Messejana, Arronche ou Parangaba e Caucaia ou Soure, onde foram dentro de algum tempo absorvidos pela população local.
Grande número de tribos Cariris, umas mais numerosas, outras menos, viviam pelas diversas ribeiras sertanejas do Ceará até próximo do litoral ou para ele se dirigiam de outubro a novembro, para a colheita do caju, que usavam como alimento e na fabricação do vinho denominado mocororó. Quando se iniciou o povoamento desses rincões com a fundação das primeiras fazendas de gado e dos primeiros estabelecimentos agrícolas, nos seus deslocamentos a indiada não respeitou as reses e plantações dos brancos que se apossavam das terras consideradas por eles como suas. Tais choques foram o violento prefácio duma luta brutal que, de 1683 a 1713, duraria 30 anos. Durante esse longo período, as várias nações Cariris se confederaram contra o invasor, mas se viram implacavelmente batidas, escravizadas, chacinadas e disseminadas no seio de outras populações.
A grande luta começou em 1683 no Rio Grande do Norte. Os índios Jandins ou Janduís, habitantes das regiões do Açu, Mossoró e Apodi, aliados outrora dos holandeses, a quem ajudaram na bárbara matança da população portuguesa no engenho Cunhaú, levantaram-se em armas contra o domínio luso, matando, saqueando, arrasando as propriedades, não deixando "pedra sobre pedra". O incêndio da revolta propagou-se celeremente pelo vale cearense do Jaguaribe, alcançando os mais longínquos sertões, chegando aos limites do Piauí. As tribos dos Paiacus, Icós, Anacés, Quixelôs, Jaguaribaras, Acriús, Arariús, Canindés, Jenipapos, Tremembés e outras acompanharam os Janduís, lançando-se ferozmente à luta.
Em face da gravidade da situação, dos pedidos de socorro que lhe chegavam das zonas conflagradas, não dispondo de forças suficientes para reprimir a revolta, frei Manuel da Ressurreição, então no governo-geral do Estado do Brasil, decidiu requisitar do capitão-mor de S. Vicente e S. Paulo uma tropa de paulistas aguerridos e conhecedores do modo de combater do gentio, para pôr termo àquela anarquia, do mesmo modo de Palmares. Veio por isso de S. Paulo, rompendo os ínvios sertões, o terço do mestre-de-campo Matias Cardoso, que atravessou o São Francisco, varreu os Janduís e estabeleceu na foz do Jaguaribe para dominar o vale o destacamento do capitão João Amaro Maciel Parente.
A presença dos paulistas não evitou que a guerra entre os brancos e os silvícolas confederados se dilatasse anos seguidos das fronteiras do Rio Grande do Norte ao interior de Ceará. A Matias Cardoso sucedeu no comando do aguerrido terço o mestre-de-campo Fernão Carrilho, que, em 1691, conseguiu bater os melhores aliados dos Janduís, os Paiacus, forçando-os a tratarem a paz e dando-lhes como condição a empresa de atacarem os confederados Icós e Carateús, alçados em guerra pelo sertão adentro.
Os Paiacus foram os mais terríveis e constantes inimigos dos colonizadores na zona do baixo Jaguaribe. Seu apelido varia muito na documentação coeva: Paiacus, Pacajus, Piacus, Pyacus, Baacuss, Bayacus, mesmo Baiquis e Baquaes. Raça valente nunca de todo submetida. Desde 1666, andava em constantes correrias e assaltos contra os brancos, combatida embora e dizimada pelas expedições primitivas dos ajudantes Francisco Martins e Filipe Coelho de Morais, veteranos nas campanhas contra os bugres. Aderiram em 1686 à rebeldia dos Janduís. Batidos por Fernão Carrilho em 1691, três anos depois, em 1694, tornavam a guerrear os lusos, sendo vencidos pela tropa do famigerado capitão Francisco Dias de Carvalho. Em 1696, o cansaço e as perdas de vidas levaram-nos a firmar a paz com os portugueses.
Todavia, a luta contra outras tribos da Confederação dos Cariris prosseguia sem descanso, tanto que foi necessário mandar vir novos reforços de S. Paulo sob o comando do mestre-de-campo Manuel Alves de Morais Navarro. Não se sabe bem por que motivo, se por alguma denúncia de estarem preparando qualquer traição, se por ter sido ferido em combate contra os selvagens e estar furioso por isso ou se por mera desconfiança e crueldade, o chefe militar paulista convidou os Paiacus aquietados para entrarem em campanha ao seu lado, atacando-os e matando-os de surpresa.
O sangrento episódio aconteceu no dia 4 de agosto de 1699. Estavam os Paiacus desarmados e pintados festivamente, dançando suas danças guerreiras, quando deram sobre eles, descarregando os mosquetes e cortando-os a espada, os aventureiros do terço de Morais Navarro. Mataram homens, mulheres e crianças sem piedade. O crime inominável levantou protestos indignados do missionário João da Costa, a que energicamente logo se associou o bispo de Olinda, D. Frei Francisco de Lima. Por ordem do rei, o mestre-de-campo foi preso e submetido a processo.
Apesar dessa terrível matança, como não cessasse a luta entre os brancos e os tapuias cearenses, de novo os Paiacus se rebelaram em 1703, acompanhados pelos Icós. Então, todo o vale do Jaguaribe pegou fogo. Mandado contra os Icós, o capitão Pedro Mendonça os derrotou, escravizando-os sem distinção de sexo ou idade. Contudo, os remanescentes dos vencidos, unindo-se a outras tribos em pé de guerra, continuaram a peleja de tal modo que, em 1706, o governo real mandava fornecer armas a todos os moradores da capitania do Ceará, para provimento de sua defesa pessoal, de suas famílias e de seus bens contra a indiada rebelde. Em 1708, o capitão Bernardo Coelho de Andrade, chefiando um destacamento de gente destemida, destruiu as resistências que lhe opuseram os Icós, os Cariris, os Cariús e os Carateús.
No ano de 1713, a Confederação dos Cariris mostrou-se ainda viva na revolta geral desencadeada pelos Paiacus, Anacés, Jaguaribaras, Acriús, Arariús, Canindés e Jenipapos, que forçaram os Tremembés a segui-los. A vila do Aquirás, então sede da capitania, foi inopinadamente atacada. Na sua defesa, morreram 200 pessoas. O resto da população fugiu, defendendo-se como pôde pelo caminho, que semeou de mortos, indo acolher-se à proteção dos canhões da  fortaleza de Nossa Senhora da Assunção na foz do Pajeú. Esse êxodo deu origem à vila, depois cidade da Fortaleza, que acabou superando a do Aquirás.
A bugrada à solta destruiu centenas de casas, sítios e fazendas. O interior da capitania quase se despovoa. As comunicações com Pernambuco, que se faziam pelo litoral, foram cortadas. Entrou então em ação o famoso regimento de ordenanças do coronel João de Barros Braga. Essa Cavalaria do Certam, como dizem os velhos documentos, vestida de couro e composta de homens conhecedores do terreno em que pisavam, bem como do modo de guerrear dos indígenas, exterminou-os em violentíssima guerra de morte que subiu pelo vale do Jaguaribe ao do Cariri e aos confins piauienses.
Depois dessa campanha, as relíquias dos Paiacus do baixo Jaguaribe, dos Canindés e Janipapos do rio Banabuiú foram aldeadas em Monte-mor-o-novo e Monte-mor-o-velho, depois, respectivamente, vilas de Guarani e de Baturité. A primeira chama-se agora Pacajus em memória dos seus indomáveis guerreiros bronzeados. Os restos dos Icós foram exilados em Sousa, no alto sertão da Paraíba. Os remanescentes dos Acriús e Arariús do rio Acaraú e da serra da Meruoca foram confinados na povoação de Nossa Senhora da Assunção da Ibiapaba, posteriormente crismada em Vila Real da Viçosa, onde pregara outrora o Padre Antônio Vieira. Os últimos Tremembés feneceram em Soure em Almofala, onde seus descendentes ainda hoje conservam lembranças de seus ritos coreográficos. Os derradeiros Cariris formaram no antigo Brejo a Missão do Miranda, que se tornou a Vila Real do Crato.
Assim, acabou melancolicamente a terrível Confederação dos Cariris que durante 30 anos trouxe em sobressalto as gentes que iam povoando e civilizando as terras do Rio Grande do Norte e do Ceará. Foi uma das mais notáveis experiências duma conjugação de esforços realizada por selvagens do Brasil, sempre tão desavindos e inimigos entre si, com o fito de obstar a conquista de suas terras. Esforço baldado, pois sua sorte diante do invasor fora lançada e não seria a bravura instintiva suficiente para vencer com arcos e flechas a inteligência sagaz, a pólvora, as balas de chumbo e a cultura superior do europeu. Como a humanidade tupi, embora menos maleável, a humanidade tapuia teria de ser dominada e absorvida pelo colonizador.



- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.

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