sábado, 30 de março de 2013

OS TEMPLOS GREGOS E SUA DECORAÇÃO


QUATRO PLANTAS TÍPICAS


O templo parece-nos ser a mais característica de todas as edificações gregas, e seria natural concluir-se que os gregos consideravam tais construções como um requisito para o culto de seus deuses e deusas. De fato, nada mais do que um altar ao ar livre era realmente necessário. Entretanto, quando os gregos começaram a fazer estátuas de suas divindades, viram-se obrigados a providenciar um abrigo que as protegesse das intempéries. E foi para servir a essa função que se construíram os templos, que, assim, não se destinavam a acomodar uma congregação de fiéis; as cerimônias e os rituais religiosos ainda tinham lugar em um altar colocado fora deles, diante de uma de suas fachadas (usualmente, a fachada leste), e poucas pessoas neles entravam.

Um templo, fosse ele construído de madeira ou de pedra, podia ser muito simples. Um único recinto, ao qual se tinha acesso através de um pórtico, era suficiente (2.1a). Esse recinto, em que ficava a estátua do deus, denominava-se naos (os romanos chamaram-lhe cela, e esse termo também é usado, por vezes, com relação aos templos gregos). O pórtico tinha o nome de pronau (literalmente, "em frente do naos").
(2.1a) Planta de um templo simples. consistindo apenas em naos e pronau.


(2.1b) Planta de um templo com pórticos na frente e nos fundos.


 Os gregos não gostavam que a frente e os fundos tivessem um aspecto diferente; assim, quando um templo podia ser facilmente visto de mais de um lado, adicionavam-lhe um outro pórtico na parte traseira (2.1b). Não havia usualmente entrada no templo pelo pórtico da parte posterior, o opistódomo, cujo único propósito era proporcionar ao templo uma aparência mais simétrica.

(2.1c) Planta de um templo com peristilo.

Essa era a maneira como se projetavam os templos menores. Os templos maiores eram edificados em áreas desimpedidas e proeminentes, de modo a ser claramente visíveis de muitos ângulos. Os gregos tentaram dar às quatro fachadas desses templos um aspecto igualmente impressionante, cercando o núcleo do templo com uma colunata (2.1c, 2.2 e 2.3). Essa colunata circundante era chamada peristilo (das palavras gregas peri = "em volta" e stylos = "colunata"), e continua usualmente o naos com seu pronau na parte fronteira e, como elemento de equilíbrio, o opistódomo na parte de trás (2.2).

(2.2) Planta de um típico templo períptero.


O templo era geralmente construído sobre uma plataforma de três degraus. O degrau superior chamava-se estilóbata e sobre ele assentavam as colunas do peristilo e as paredes do naos (2.3). Como um templo era parte de um santuário, a entrada para o santuário determinava usualmente o ângulo pelo qual o templo seria primeiramente visto. Na maioria dos casos, a aproximação fazia-se por uma esquina do templo (ver 6.5). Desse ângulo (2.3), o templo podia ser imediatamente percebido mais como um volume tridimensional do que como uma fachada plana, e suas principais dimensões (comprimento, largura e altura) podiam ser abrangidas de um só relance. Com seu desenho claro, sua independência e suas quatro vistas igualmente satisfatórias, o templo peristílico é uma criação caracteristicamente grega.

(6.5) desenho da Acrópole de Atenas, mostrando a localização dos principais edifícios do século V a.C.

(2.3) Vista geral de um templo períptero grego, tomada a partir de uma esquina. Terceiro quartel do século V a.C. Templo de Hefaístos (Hephaisteion), Atenas.


Algumas póleis muito ricas construíram templos com duas séries de colunas em torno deles. Essas imensas e dispendiosas estruturas deviam ter um aspecto verdadeiramente majestoso (2.1d).

(2.1d) Planta de um templo com duplo peristilo (díptero).

Os gregos variaram e modificaram suas quatro plantas fundamentais para os templos, introduzindo alterações nas proporções e na disposição dos vários elementos, desde a época em que começaram a construir templos até o momento em que, com o advento do cristianismo, deixaram de os erigir. Entretanto, mantiveram as formas básicas de modo tão constante quanto a pose do koûros foi conservada durante todo o período arcaico. Os gregos gostavam de desenvolver suas idéias dentro de um quadro estável.

DOIS ALÇADOS BÁSICOS: AS ORDENS DÓRICA E JÔNICA


Os templos gregos foram construídos de acordo com o simples princípio de pilar e dintel. Pilares verticais (ou colunas, ou paredes mestras) sustentavam dintéis horizontais (ou entablamentos, ou tetos). Os templos mais antigos foram construídos com madeira e adobe sobre fundações de pedra. Em fins do século VII a.C., a pedra, mais cara, mas também mais duradoura, começou a ser o material preferido para a própria construção. Os únicos templos de que sobreviveram ruínas substanciais são aqueles construídos de pedra. Nestes, os blocos das paredes eram colocados a seco, sem qualquer espécie de argamassa. As pedras calcárias e toscas eram regularmente revestidas de reboco ou emboço, para darem a aparência de uma superfície lisa e uniforme. O mármore era esmeradamente aplainado, e seu polimento final era tão meticuloso que as juntas entre um bloco e outro mal se percebiam. Os blocos adjacentes eram mantidos em suas posições principalmente pela gravidade, mas alguns grampos de ferro revestidos de chumbo eram também usados para impedir o seu deslocamento. Esses grampos não eram visíveis, uma vez concluído o templo. As colunas eram levantadas do mesmo modo, usando-se cavilhas de madeira para ajudar a ajustar um bloco sobre outro, e as juntas eram acabadas com tanto requinte que se tornavam virtualmente invisíveis, ou o conjunto era recoberto com uma fina camada de reboco. Nos estágios finais da construção, as colunas eram acanaladas, ou seja, caneluras verticais eram lavradas nos fustes.

As colunas sustentavam um entablamento horizontal que compreendia uma arquitrave (uma série de blocos retangulares colocados diretamente sobre as colunas), sobre a qual assentava o friso, que, por sua vez, era encimado por uma cornija. Colunas e entablamentos eram desenhados de acordo com os modelos da ordem dórica ou da ordem jônica. Em cada uma dessas ordens, as proporções dos elementos e o esquema da decoração eram reciprocamente coordenados; misturar as duas ordens foi prática muito rara antes do período helenístico.

A ordem dórica (2.4) era forte, simples e maciça. Os fustes das colunas eram robustos (sua altura correspondia a apenas entre quatro e seis vezes o seu diâmetro na parte inferior) e assentavam diretamente no estilóbata (2.3 e 2.7). Os capitéis que rematavam os fustes em sua parte superior eram simples formas avolumadas semelhantes a almofadas, encimadas por ábacos retangulares sem qualquer decoração, que sustentavam uma arquitrave lisa e inteiriça. Esta, por sua vez, servia de suporte ao friso, que era dividido em tríglifos (retângulos com sulcos verticais, cuja aparência sugeria extremidades de vigas) e métopas (retângulos que podiam ser lisos, pintados ou esculpidos em relevo) dispostos alternadamente. Havia um tríglifo sobre cada coluna e um entre cada par de colunas, de modo que o ritmo escondido pela disposição das colunas era exatamente reproduzido no ritmo do friso que as encimava (2.3).

(2.4) À esquerda, a ordem dórica; (2.5), à direita, a ordem jônica.

A ordem jônica (2.5) era mais delicada e ornamentada. Os fustes das colunas eram mais delgados (sua altura correspondia a entre oito e dez vezes seus diâmetros inferiores) e assentavam em bases elaboradas que consistiam em, pelo menos, duas partes convexas e uma parte côncava (2.5 e 2.6). Os capitéis jônicos descrevem uma curva para a direita e outra para a esquerda, as quais terminam em volutas, e são encimados por um ábaco esculpido sobre o qual assenta a arquitrave, freqüentemente dividida em três faixas horizontais. Essa tríplice divisão reflete sutilmente os três degraus em que o templo está usualmente assente. O friso é dividido e às vezes decorado por uma faixa contínua de relevos esculpidos. A cornija, no topo, é mais rica do que a cornija dórica e pode levar diversas faixas de desenhos talhados em relevo.

(2.6) Base e extremo inferior do fuste de uma coluna jônica, final do século V a.C., Erectéion, Atenas.

As formas básicas das duas ordens eram constantes, mas, dentro de certos limites, os elementos e proporções podiam ser modificados. A ordem jônica era, em geral, tratada mais livremente do que a dórica. Por exemplo, na ordem jônica – tal como foi, de início, desenvolvida no Egeu oriental e nas costas da Ásia Menor (e muitas vezes também posteriormente) -, foram usados dentelos, pequenos entalhes semelhantes a dentes, em lugar de um friso contínuo. Entretanto cada ordem preservou sempre um caráter especial, que lhe é próprio e que pode ser percebido nos menores detalhes. Assim, a figura 2.7 transmite a força e a simplicidade da ordem dórica, ao passo que a figura 2.6 revela a graça e a delicadeza da ordem jônica. (Ambas as figuras mostram a extremidade inferior de uma coluna – o fuste da dórica e a base da jônica - onde ela assenta no estilóbata.)

(2.7) Extremo inferior do fuste de uma coluna dórica, meados do século V a.C., Propileu da Acrópole, Atenas.

No final do século V a.C. foi inventado o capitel coríntio (2.8), que não tardou a se tornar popular e foi muito usado durante as épocas helenística e romana como uma forma alternativa ao capitel jônico, dentro de uma versão algo enriquecida da ordem jônica.

(2.8) Capitel coríntio, século IV a.C., Museu de Epidauro.

Todos os templos eram cobertos por um telhado inclinado, o que resultava em cimalhas triangulares à frente e atrás, que receberam o nome de frontões (2.3). Acrotérios decorativos ornamentavam os três ângulos dos frontões e suavizavam a geometria severa do telhado do templo.

ESPAÇOS E FORMAS A DECORAR


Três áreas nos templos gregos convidavam à decoração esculpida (ou pintada): os frontões triangulares nos templos de ambas as ordens (se bem que os da ordem jônica apenas raramente fossem preenchidos), as métopas nos templos dóricos e os extensos e estreitos frisos nos templos jônicos.

Nada disso teria apresentado problemas se os gregos se contentassem em preencher esses espaços com padrões florais ou abstratos, como seria feito mais tarde, algumas vezes, pelos romanos e pelos decoradores neoclássicos do século XVIII. Contudo, os gregos não se satisfaziam com algo tão simples. Preferiam representar pessoas, ou monstros, e representá-los, se possível, vivendo uma história. Consideremos os problemas que surgiram então.

0S FRONTÕES E SEUS PROBLEMAS


Um frontão é um triângulo longo e baixo. Não é fácil dispor figuras dentro dele de tal modo que elas possam preenchê-lo harmoniosamente e contar uma história, fazendo-o de modo coerente. Isso fica evidenciado pelas dificuldades com que se deparou o artista que esculpiu as gigantescas figuras em relevo que decoram o frontão do templo de Ártemis em Corfu, nos primeiros anos do século VI a.C. (ca. 580) (2.9). A parte mais alta, que é também a área central do triângulo, ficou ocupada por uma enorme Górgona, cujas feições aterrorizantes teriam sido consideradas eficazes para afugentar do templo os espíritos maléficos. Mas suas funções não eram apenas as de mera guardiã. Essa Górgona era a Medusa, a quem o destino reservara ser decapitada pelo herói Perseu. No momento de sua morte, ela deu à luz dois filhos - Pégaso, o cavalo alado, e Crisaor, um homem -, que brotaram do seu pescoço quando foi decapitada. A postura de Medusa, com os joelhos dobrados, pretende sugerir que ela está fugindo de Perseu; o fatídico desfecho de sua fuga é indicado pela presença dos dois filhos, Pégaso à esquerda e Crisaor à nossa direita.

(2.9) Reconstituição do frontão oeste do templo de Ártemis, em Corfu, primeiro quartel do século VI a.C. (ca. 580).

A Górgona está ladeada por panteras agachadas, que não têm a dupla função da Medusa: proteger o templo e, simultaneamente, sugerir uma história; são apenas guardas do templo, e sua postura reclinada habilita-as a ajustarem-se confortavelmente ao incômodo declive do frontão.

Alojadas nos cantos estão várias figuras minúsculas, puramente narrativas. As da esquerda remetem à história da queda de Tróia: o rei Príamo, sentado, está prestes a ser morto pelo grego que o ataca; um troiano morto jaz atrás dele. As figuras da direita são participantes da gigantomaquia, a batalha dos deuses com os gigantes. O grande deus Zeus, manejando seu raio, subjuga um gigante, que cai de joelhos a seus pés. Um outro gigante está deitado de costas no canto.

Sob o aspecto decorativo, o frontão é soberbo; do ponto de vista narrativo, é incoerente. Três histórias são contadas sem que haja qualquer espécie de relação entre elas; além disso, elas são narradas em escalas totalmente desconexas. Isso pode não ter constituído motivo de perturbação para quem apreciava o frontão na época em que foi feito. O espectador podia dar-se por satisfeito ao reconhecer simplesmente as três histórias, deleitando-se com cada uma delas em separado. É muito provável que não concebesse o espaço do frontão como um campo único, em que deveria aparecer uma imagem unificada da realidade. Mas a exigência de representações convincentes e coerentes, mesmo em tão embaraçosa moldura triangular, acabou vingando. Isso aconteceu como resultado do modo pelo qual os gregos encaravam a arte e de sua noção, revolucionária na época, de que a arte devia ser o espelho da natureza.

Já vimos que, quando olhavam para a estátua de um homem, os gregos (ao contrário de outros povos mais antigos) consideravam-na mais como um homem do que como uma estátua. Por conseguinte, exigiam que se assemelhasse a um homem, e foi para satisfazer essa exigência que se produziram imagens cada vez mais naturalistas. Os gregos pensavam do mesmo modo a respeito dos frontões. No começo, satisfizeram-se com uma composição agradável e uma porção de histórias, mas, com o tempo, passaram a considerar o espaço do frontão uma espécie de palco em que deveria ser representada uma visão plausível de uma situação real. Assim, passaram a desejar que os artistas enchessem o espaço de um frontão com uma única história, inteligivelmente narrada por figuras concebidas, todas elas, numa única escala. Isso apresentava um problema difícil, mas, no espaço de menos de cem anos, uma solução satisfatória já tinha sido encontrada.

O autor do frontão leste em Egina, esculpido por volta de 490 a.C., decidiu descrever uma batalha mitológica (2.10). Essa foi uma boa escolha. A poderosa deusa Atena está postada no centro, a cabeça coberta com o elmo, que atinge o ápice do frontão. De ambos os lados, heróis mortais, naturalmente menores do que ela, lutam e tombam. Os incidentes do combate estão dispostos de maneira tal que os guerreiros mais próximos do centro estão de pé, enquanto os mais afastados cambaleiam, arremetem, agacham-se ou tombam, em conformidade com a inclinação do frontão. A mesma escala é usada para todas as figuras (agora inteiramente esculpidas em pleno relevo); o tema violento confere plausibilidade às diferentes alturas.

(2.10) Reconstituição do frontão leste do templo de Afaia, em Egina, primeiro quartel do século V a.C. (ca. 490-480).

A geração seguinte presenciou um tour de force na concepção e no desenho dos frontões: o frontão leste do templo de Zeus em Olímpia (465-457 a.C.) (2.11). Não há ação violenta e, no entanto, no âmbito de uma cena tranquila  é contada uma história convincente com figuras em escala uniforme, ficando todo o frontão harmoniosamente ocupado.

(2.11) Reconstituição do frontão leste do templo de Zeus, em Olímpia, segundo quartel do século V a.C. (465-457).

No centro está Zeus, novamente um deus de estatura superior à dos simples mortais. À sua direita (nossa esquerda) está Enomau, rei da Elida, oferecendo sua filha como noiva a qualquer homem que possa levá-la em seu carro e alcançar o istmo de Corinto antes que Enomau o ultrapasse e mate. Enomau tem cavalos divinos, e doze pretendentes já foram derrotados na corrida e trucidados pelo rei. Um jovem de aparência submissa está do lado esquerdo de Zeus, como que escutando as condições da corrida. É Pélops, aquele que irá derrotar o velho rei e esposar a jovem. A futura noiva e sua mãe flanqueiam os homens. Vêm a seguir as quadrigas; as cabeças dos cavalos, mais altas do que as garupas, voltam-se simetricamente para o centro. Atrás deles, de um lado, um auriga acocorado segura as rédeas do carro e, do outro, um vidente consternado senta-se e perscruta o futuro, onde vê o terrível desastre que aguarda Enomau. Criados e outras personagens secundárias estão sentadas mais perto dos cantos, que são perfeitamente preenchidos pelas figuras reclinadas dos deuses fluviais, com as pernas estendidas até o ponto em que os ângulos laterais se fecham (2.20).

2.20 Deus fluvial do canto do frontão leste do templo de Zeus em Olímpia, ca. 460 a.C.; comprimento: 230 cm. Museu de Olímpia.

A cena é tensa, tem unidade e é eficaz. A sutil diferença entre as caracterizações do arrogante Enomau e do modesto Pélops, o intenso envolvimento dos protagonistas e a atitude indiferente dos criados - um garoto passa o tempo brincando distraidamente com os dedos dos pés - fazem parte da exploração clássica da personalidade e do estado de espírito que também vimos no Efebo de Crítios (1.1O e 1.14) e no Zeus de Artemísio (1.15 e 1.16).


(1.10) Efebo de Crítios, ca. 480 a.C., altura: 86 cm. Museu da Acrópole, Atenas.

(1.14) À esquerda, Efebo de Crítios (o mesmo de 1.10), cabeça; (1.15) à direita, Zeus de Artemísio (o mesmo de 1.16), cabeça.

(1.16) Zeus de Artemísio, segundo quartel do século V a.C., altura: 209 cm. Museu Nacional, Atenas.

Os frontões do Partenon em Atenas, esculpidos uma geração depois (438-432 a.C.), são ainda mais ambiciosos. Como o templo era incomumente largo, os frontões tinham de ser extraordinariamente longos, uma mudança em escala que acentuava os problemas inerentes ao desenho de frontões. Se os frontões de Olímpia podiam ser confortavelmente ocupados por cerca de quinze figuras, mais de vinte eram necessárias para encher os frontões do Partenon. Como estes se encontravam em nível muito mais elevado em relação ao solo do que era usual, as figuras foram esculpidas com muito maior profundidade, de modo a poder captar a luz e permanecer inteligíveis a certa distância. Embora desenhadas a traços largos, essas figuras apresentam um acabamento altamente refinado (2.21) e até as costas, que não seriam visíveis quando as estátuas estivessem em seus respectivos lugares, foram esculpidas com escrupuloso cuidado.

(2.21) Deus fluvial do frontão oeste do Partenon, em Atenas, 438-431 a.C.; comprimento: 156 cm. Bristish Museum, Londres.

O frontão oeste mostrava a competição entre a deusa Atena e o deus Posêidon pela proteção a Atenas (2.12). Essas duas gigantescas divindades ocupavam o centro, afastando-se uma da outra e voltando-se para direções opostas. Parelhas de cavalos empinavam, provavelmente de ambos os lados. Temos que confiar num desenho do século XVII para a nossa informação sobre a composição, pois a maior parte da escultura ainda era visível então, só tendo sido posteriormente destruída. Partindo dos impetuosos movimentos e contramovimentos da região central do frontão, as ondas de excitação vão diminuindo aos poucos, até se extinguirem finalmente nas calmas e indiferentes figuras reclinadas dos deuses fluviais que ocupam os cantos.

O deus fluvial (2.21) que outrora ocupava o canto esquerdo do frontão oeste, hoje no British Museum, ilustra a combinação de grandeza e sutileza que distingue a escultura dos frontões do Partenon. Os músculos fletem-se, fluem e ondulam, enquanto o ventre descontraído cede ligeiramente e cai para diante. A anatomia é retratada naturalisticamente, mas sem preciosismos de detalhe. A flexibilidade da carne, o vigor dos músculos, a dureza dos ossos, tudo isso é sugerido, porém não exaustivamente explorado.


(2.12) Desenho do século XVII do frontão oeste do Partenon, em Atenas, terceiro quartel do século V a.C. (438-432). desenho existente a Biblioteca Nacional de Paris.

O sentido de dramaticidade e arrebatamento transmite-se maravilhosamente nesse frontão (2.12), mas, para além da impressionante composição central as coisas parecem se desintegrar, parece acontecer como no frontão de Corfu (2.9). Os deuses e deusas postados de cada lado, presenciando o espetacular evento que tem lugar no centro, aparecem em escala muito reduzida. Note-se como é minúsculo o deus fluvial no canto, comparado a Posêidon, no centro. No tocante ao desenho, o artista excedeu-se tentando acomodar um número demasiado grande de figuras. O brilhantismo fulgurante do cinzelamento das poucas figuras sobreviventes tendia, porém, a desviar a atenção das imperfeições da composição.

MÉTOPAS: POUCAS FIGURAS, QUE DIZEM MUITO


Por serem quase quadradas, as métopas são mais fáceis de decorar e preencher do que os frontões. Entretanto se o artista quiser que a história apresentada numa métopa possa ser entendida a certa distância, deve escolher cuidadosamente o momento a ser ilustrado e usar não mais que três ou quatro figuras.

O escultor de uma métopa do Tesouro de Sícion em Delfos, esculpida por volta de 560 a.C., produziu uma bela peça de decoração (2.13). (Um tesouro era um pequeno edifício erigido num santuário pan-helênico para guardar as dádivas e oferendas feitas pela pólis que o construíra.) A métopa mostra agora três heróis - originalmente havia, pelo menos, mais um marchando para a direita, tocando orgulhosamente os bois que roubaram numa incursão de pilhagem de gado. Uma tríade de figuras verticais paralelas ocupa toda a altura da métopa. Seguram suas lanças inclinadas no mesmo ângulo e caminham em passo acertado com o do gado, cujas pernas, meticulosamente alinhadas, recuam até o fundo do relevo. Um belo padrão emerge, elegantemente composto de formas repetidas, à maneira arcaica (cf. 1.5).

(2.13) Roubo de gado, métopa do Tesouro de Sícion, ca. 560-550 a.C.; altura: 58 cm. Museu de Delfos.

As métopas do exterior do templo de Zeus em Olímpia (465-457 a.C.) foram deixadas sem decoração, mas as doze métopas que encimam os pórticos (seis sobre o pórtico da frente e seis sobre o dos fundos) foram esculpidas em relevo, ilustrando os doze trabalhos de Héracles (em cada métopa é representado um dos feitos do herói).

Roubar os pomos da imortalidade do jardim das Hespérides fazia parte de um dos trabalhos de Héracles. Este persuadiu Atlas a buscar os pomos enquanto sustentava o céu em seu 1ugar (2.14). A métopa mostra Atlas, jubiloso por estar gozando de uma liberdade de movimentos que sua tarefa não lhe permitia, avançando do lado esquerdo com as mãos estendidas, trazendo os pomos. Héracles está de frente para ele, oprimido pelo fardo que assenta pesadamente sobre seus ombros. A deusa Atena, protetora de Héracles, está do lado esquerdo, uma mão erguida num gesto fácil de ajuda ao herói.

(2.14) Atlas trazendo a Héracles os pomos das Hespérides, métopa do templo de Zeus em Olímpia, ca. 460 a.C.; altura: 160 cm. Museu de Olímpia.

Algo mais sutil do que as linhas paralelas e os padrões repetidos na métopa do Tesouro (2.13) relaciona as três figuras da métopa de Olímpia (2.14). Atlas, a única figura mostrada em ação, caminha da direita para a esquerda. Seu peito é mostrado de três quartos; os antebraços estendidos estabelecem um forte contraste horizontal com as linhas predominantemente verticais do desenho e chamam a nossa atenção para os pomos nas mãos. Perfil contra perfil, dá-se o encontro com Héracles, apresentado em vista lateral. Atena, majestosa e imóvel, põe fim ao movimento. A métopa era a última da série do lado esquerdo, e a figura vertical da deusa, inteiramente frontal, confere finalidade à composição total. A solidariedade de Atena para com Héracles é delicadamente sugerida não só pela mão erguida como também pelo modo como volta a cabeça - de perfil, tal como Héracles - fazendo face a Atlas.

O mestre das métopas de Olímpia também era capaz de retratar cenas de conflito de um modo soberbo. Mostrou Héracles lutando com o monstruoso touro de Creta (2.15) numa composição baseada em duas diagonais cruzadas, de tal modo que as duas davam a impressão de ser particularmente grandes em relação às das outras métopas. Numa esplêndida invenção destinada a transmitir a intensidade da luta, o artista faz o herói torcer a cabeça do gigantesco touro para enfrentá-lo frente a frente.

(2.15) Héracles e o touro de Creta, métopa do templo de Zeus em Olímpia, ca. 460 a.C.; altura: 160 cm. Louvre, Paris.

O dinamismo dessa composição explosiva foi muito apreciado em épocas posteriores. A mesma estrutura sublinha o conflito das figuras centrais no frontão oeste do Partenon (2.12) e foi também usada em uma das mais impressionantes métopas do Partenon (2.16).

(2.16) Lápita e centauro, métopa do Partenon de Atenas. 447-442 a.C.; altura: 134 cm. British Museum, Londres.

O Partenon foi decorado de forma excepcionalmente rica com esculturas. Não só os frontões invulgarmente extensos foram repletos de figuras como todas as 92 métopas do lado de fora do templo foram também esculpidas (em 447-442 a.C.). As métopas do lado sul, praticamente as únicas razoavelmente preservadas, representam o conflito dos lápitas com os centauros, criaturas míticas que eram parte homem e parte cavalo. Numa das métopas (2.16), um homem e um centauro procuram energicamente desvencilhar-se um do outro; a tensão da luta é visualmente acentuada pelo jogo de luz e sombra nas dobras profundas da capa que cai por trás do lápita e sobre seus braços. O corpo do lápita é retratado com uma riqueza tão sutil de detalhes anatômicos e com transições de tamanha delicadeza e suavidade que as métopas de Olímpia, com suas magníficas simplificações, parecem, em contraste, asperamente severas.

A métopa da extremidade oeste do lado sul do Partenon é grandiosa (2.17). Tal como a métopa de Olímpia que mostra Héracles recebendo os pomos das Hespérides (2.14), era a última métopa, à esquerda, de uma série. Se em Olímpia a figura estática de Atena termina o movimento, a ação na métopa do Partenon, por sua vez, é fechada pela vigorosa curva do corpo do lápita, que enfia um chuço, originalmente adicionado em bronze, na ilharga do centauro que o ataca. O mesmo propósito artístico é aqui realizado, mas com maior liberdade.

(2.17) Lápita e centauro, métopa da extremidade oeste do lado sul do Partenon (proveniente de um molde), 447-442 a.C.; alt: 134 cm.

Partindo do desenho esquemático, atraentemente padronizado, da métopa arcaica do Tesouro de Sícion (2.13), os gregos desenvolveram gradualmente o equilíbrio clássico, dinâmico, das mais belas métopas do Partenon (2.16 e 2.17).

FRISOS: DIFICULDADES DE COMPOSIÇÃO


Os frisos apresentavam mais problemas de desenho e composição do que as métopas. Um friso era uma faixa imensamente longa e estreita para a qual não era fácil encontrar um tema satisfatório. A elaborada decoração do Partenon incluía um friso, uma característica jônica incomum nesse templo predominantemente dórico. Ele foi esculpido entre 442 e 338 a.C. (2.18 e 2.19 e 7.6), e o tema escolhido é uma procissão em honra da deusa Atena. Foi composto de modo que as figuras do friso esculpido parecessem acompanhar o observador que caminhasse pelo templo na mesma direção que elas. Em três dos lados, a procissão desloca-se toda numa direção, ao longo do comprimento total de cada lado (2.18). Na frente, os dois braços da procissão convergem para o centro, produzindo um ponto natural de repouso para os olhos. O fluxo das figuras é unificado mas não monótono. Por vezes, a procissão é densa e as figuras deslocam-se rapidamente (2.18); outras vezes, o ritmo é comedido (2.19) e em alguns casos chega mesmo a ser solene (7.6).

(2.18) Parte da procissão das Panatenéias, no friso o Partenon, 442-438 a.C., altura: 106 cm. Bristish Museum, Londres.

(7.6) Parte do friso do Partenon, 442-438 a.C.; altura: 106 cm. Louvre, Paris.


CONTRASTE ENTRE O ESTILO CLÁSSICO INICIAL E O FINAL

O requintado trabalho de escultura do friso do Partenon é revelado por um detalhe de alguns jovens levando uma novilha ao sacrifício (2.19). A austera simplicidade da métopa de Olímpia (2.15) faz com que pareça quase rudimentar em comparação com a escultura ricamente expressiva do friso do Partenon. Note-se até que ponto são diferentes as representações da novilha e do touro de Creta. O mesmo contraste pode ser apreciado numa comparação entre um deus fluvial do frontão leste em Olímpia (2.20) e um deus fluvial do frontão oeste do Partenon (2.21).

(2.19) Parte da procissão das Panatenéias, no friso do Partenon, 442-438 a.C.; altura: 106 cm. British Museum, Londres.

Um observador que vivesse nos tempos antigos e comparasse o original do Discóbolo do início do período clássico (1.18), e o original do Doríforo, do final do período clássico (1.23), certamente notaria um contraste idêntico. As duas obras devem ter diferido não só no desenho como também no estilo e no tratamento da superfície. A austera simplicidade da concepção de Míron afetou todos os aspectos de sua estátua; o delicado equilíbrio de formas da postura do Doríforo é sintomático do método de trabalho de Policleto, que se celebrizou principalmente pelo requinte do acabamento. Se combinarmos em nossa mente o desenho do Discóbolo com a austera vitalidade das esculturas de Olímpia, e a pose do Doríforo com a delicadeza da superfície das esculturas do Partenon, estaremos bem perto de compreender por que as realizações dos períodos clássicos inicial e final foram tão admiradas.

(1.18) Cópia romana do Discóbolo de Míron; original feito ca. 450 a.C., altura: 125 cm. Museo Nazionale delle Terme, Roma.

(1.23) Cópia romana do Doríforo, de Policleto; o original data de ca. 440 a.C., altura: 199 cm. Museo Nazionale, Nápoles.





Os templos gregos e sua decoração é o segundo capítulo do livro Grécia e Roma, da coleção História da arte da Universidade de Cambridge, escrito por Susan Woodford.
Editado por CÍRCULO DO LIVRO S.A.
Título do original: "Cambridge introduction to the history of art: Greece and Rome".
Copyright by Cambridge University Press, 1982
Tradução: Álvaro Cabral.
Licença editorial para o Círculo do Livro por cortezia de Zahar Editores S.A.

sábado, 9 de março de 2013

ABRAHAM LINCOLN


O homem que trouxe liberdade - Abraham Lincoln, o décimo  sexto presidente dos Estados Unidos da América.

O homem da caneta de ouro
   Sentado à mesa, ao lado de grandes janelas, o homem alto inclinou o corpo para a frente, estendeu a mão, e puxou uma folha de papel. Com a outra mão pegou a caneta - uma bela caneta de ouro, própria para a assinatura do documento que estava a sua frente. Um breve silêncio pairou entre as pessoas que o observavam.
   O presidente assinava papéis todos os dias: cartas, leis, determinações para o Exército na interminável guerra contra o Sul e perdão para os soldados que fugiam dela. O homem da caneta de ouro tinha um bom coração - conhecia o sofrimento e sempre que podia perdoava os desertores.
   Mas, nesse primeiro dia de janeiro de l863, seria assinado algo mais importante que um simples perdão: era a emancipação para todo um povo, um sinal de que, pela primeira vez em muitas gerações, eles poderiam viver legalmente como seres humanos.
Quando assinado, o papel proclamaria a liberdade de quase 4 milhões de escravos negros, de "propriedade e uso" dos fazendeiros rebelados do Sul.

A Proclamação da Emancipação que Lincoln  assinou no primeiro dia de janeiro de 1863. O decreto deu a liberdade a quase 4 milhões de negros americanos, mantidos como escravos nas lavouras de algodão dos Estados do Sul.

“Eu ordeno e proclamo que..."
   O presidente mergulhou a pena da caneta no tinteiro, suspendeu-a no ar e parou. Preocupado, olhou atentamente as próprias mãos. Estavam tremendo. Mentalmente, ordenou que o tremor parasse. Em vão.
   Isso nunca ocorrera antes. Cuidadosamente o presidente descansou a caneta ao lado do tinteiro e flexionou os dedos. Estavam quase insensíveis, e o braço, pesado como chumbo.
   Não era de estranhar, considerando-se como passara a manhã. Era tempo de guerra, mas o primeiro dia do ano ainda era o primeiro dia do ano. Durante a manhã, como sempre fazia no primeiro dia do ano, recebera e retribuíra apertos de mão de todos os visitantes da Casa Branca.
   Não era aquela, certamente, a melhor maneira de preparar o momento que se tornaria histórico. Esse papel poderia mudar todas as coisas. O presidente não só sabia disso como também o que havia escrito nele. Milhares de pessoas leriam sua assinatura com o mesmo cuidado que leriam todas as linhas da página. Como lêem, até hoje, as linhas mais importantes: “Eu ordeno e proclamo que todas as pessoas mantidas como escravos nos Estados designados (...) são, daqui para a frente, livres..."

Mais que liberdade
   Aquelas poucas palavras traziam mais que liberdade. Poderiam acarretar medo e destruição, pois significariam a ruína das propriedades dos donos de escravos. Elas acabariam com uma situação que os proprietários lutavam para manter. Mas ajudariam a terminar com o terrível pesadelo da guerra. E lá estava ele para transformá-las em lei, com uma insignificante e trêmula assinatura.
   Nada era mais sólido que sua resolução. Tremendo ou não, nesse dia sua mão teria que obedecer ao comando da mente e assinar a Proclamação da Emancipação.
   O presidente dos Estados Unidos pegou a caneta de ouro novamente e, em sua inclinada e cuidadosa caligrafia, assinou: Abraham Lincoln.

Três acontecimentos grandiosos
   Abraham Lincoln foi um dos mais importantes presidentes que os Estados Unidos já tiveram. Um homem extraordinário: tão humilde quanto ambicioso, piedoso e firme, perseverante e profundamente inteligente. Mesmo hoje, mais de cem anos depois de sua morte, ele faz parecer insignificante a maioria dos outros líderes da história.
   Lincoln provavelmente não precisava de mais nada para ser reconhecido como o grande líder que foi. Mas é lembrado também por duas realizações não menos relevantes: ele salvou seu país da autodestruição e libertou os escravos.

Todos os desbravadores passavam muito tempo derrubando árvores para limpar a terra. Ainda quando garoto, Lincoln - visto aqui cortando madeira para fazer cerca - era famoso pela habilidade com o machado. Esta imagem de "Abe", o cortador de madeira, foi, mais tarde, aproveitada por amigos políticos para destacar suas virtudes. Mas Lincoln odiava as lembranças de seu passado de pobreza.

Uma cabana de madeira
   O presidente que libertou os escravos nasceu pobre. Lincoln veio ao mundo numa cabana de madeira perto de Nolin Creek, Estado do Kentucky, no dia 12 de fevereiro de 1809. Não era muito mais que um abrigo - uma porta, uma janela e a chaminé. A cabana era o lar do menino “Abe" e sua família: a irmã mais velha, Sarah, com 2 anos de idade, e os pais, Thomas e Nancy. O pai, homem cordial e comunicativo, era um pequeno fazendeiro que tirava o sustento da família, a duras penas, do solo do Kentucky.
   A pequena família não ficou muito tempo em Nolin Creek. A terra era melhor mais adiante, na direção de Knob Creek, para onde os Lincoln se mudaram. E se mudariam novamente, quando Abraham tinha 7 anos, para Indiana, o mais novo Estado americano.

A morte de Nancy
   Se as antigas casas dos Lincoln, no Kentucky, ficavam em locais remotos, a nova, em Little Pigeon Creek, ficava quase dentro da floresta. Eles chegaram no rigor do inverno e não poderiam construir nenhuma casa até a chegada da primavera. Então, a família suportou os meses de neve em um abrigo de madeira de três lados. Somente o calor da fogueira, no lado aberto da cabana, mantinha o frio lá fora.
   Em 1818, quando Abraham estava com 9 anos, a fatalidade abalou a família. Cansada, esgotada, no limite da resistência, Nancy Lincoln morreu. Apesar de contar apenas 30 anos, seus dentes já haviam caído e sua pele estava ressecada como uma folha morta.
   Eram as mulheres do sertão, com sua habilidade para comandar a casa e tratar das doenças, que realmente conduziam suas famílias. Sem Nancy, a vida na cabana logo se tornaria confusa, sem higiene e infeliz. Algo deveria ser feito. Um ano depois, Thomas casou-se com a viúva Sarah Bush Johnston. Todos a chamavam de “Sally".

Sally e os livros
   Sally Lincoln foi uma boa mãe para Abraham, tanto quanto Nancy havia sido; talvez até melhor. Afetuosa e expansiva, ela compreendia as particularidades de seus enteados, aceitava o silêncio e o mau humor de Abraham, que contrastavam tão estranhamente com as brincadeiras que fazia quando estava com disposição de ânimo. Sally se esforçava para dar uma boa educação às crianças.
   Thomas Lincoln não concordava com tanto ler e escrever. Não para o menino que ele estava preparando para ser um bom lavrador. Sally, apesar de ser quase analfabeta, discordava. Com seu incentivo, Abraham aprendia como podia, por meio da leitura da Bíblia, de grandes romances, como Robinson Crusoé, e outros livros, como a história dos Estados Unidos e da vida de seu primeiro presidente, George Washington. Depois de haver lido todos eles, Abraham os leria outra vez e outra vez. Lia até quando estava trabalhando, entre o preparo de um sulco e outro de terra.
   Sua escolaridade era acidental: um mês aqui, outro lá, em breves espaços, em escolas perdidas no interior do país, entre um ciclo e outro do plantio e da colheita. No total, não deve ter passado mais que um ano dentro de uma sala de aula.

Para Abe, era o bastante
   Thomas Lincoln achava que isso já era o suficiente. Além do mais, os fatos importantes de Pígeon Creek não passavam de nascimentos, mortes e colheitas. E, para o filho, importava o trabalho: pesado, opressivo, pago a 25 cents por dia, quando os fazendeiros vizinhos contratavam seus serviços.
   Nessa época, Abraham estava a um passo de odiar Thomas, mas não havia nada que pudesse fazer para mudar a situação. Todos os seus ganhos iam automaticamente para o pai. Essa era a lei. Somente quando completasse 21 anos seria capaz de se manter, ser seu próprio patrão.
   Em 1830, seu vigésimo primeiro aniversário chegou e passou. Nada de novo. No mesmo ano, Thomas estava outra vez descontente e mudou-se com a família para Illinois. A mudança significava apenas a repetição da velha fórmula: mais neve, mais terra para ser arada, mais árvores para derrubar. Para Abe, era o bastante. Quando a neve se foi, na primavera de 1831, ele foi embora com ela.

New Salem era um lugar mais animado que Pigeon Creek. Apesar disso, ainda era um povoado rude, de construções de madeira. As casas de madeira mostradas aqui eram usadas para armazenar e preparar lã.

Um desordeiro diferente
   Lincoln foi parar em New Salem, um povoado agreste às margens de um rio, onde se sentiu perfeitamente adaptado, como sertanejo que era.
   Ele estava com mais de 1,80 metro de altura e espantosamente forte. Abraham brigou com o maior arruaceiro de New Salem, ganhou a liderança da gangue de valentões da cidade e, nas horas de trabalho, atraía fregueses para o armazém, com suas extravagantes histórias cheias de malícia.
   Curiosamente, ele não bebia. Não era apenas isso que não se encaixava na imagem de desordeiro que New Salem tinha dele. Havia pessoas educadas na cidade: o médico, o diretor da escola e James Rutledge, dono de uma hospedaria. Admirador deles – e um pouco mais do que meio apaixonado por Ann, filha de Rutledge -, Lincoln introduziu-se na polêmica sociedade local.
   Os outros membros da sociedade torceram o nariz ao novo morador, mas levariam o maior susto de suas vidas ao descobrir que o moço desordeiro do armazém modificara-se e revelava-se um orador de primeira categoria. Encorajado, Lincoln continuava buscando conhecimentos, estudando por conta própria, como em Little Pigeon Creek. Estudou matemática, trabalhou duro seu inglês, aprimorando a base gramatical que sustentava sua linguagem escrita e falada. E, com 23 anos de idade, entrou para a política.

Política e lei
   Todos discutiam política no armazém de New Salem quando não estavam falando dos problemas do transporte pelo rio ou assobiando ruidosamente com alguma história picante de Lincoln, que deixava o dono do armazém de cabelo em pé. Abraham escapara do trabalho pesado na longínqua fazenda de seu pai, mas queria ir muito além dos limites de New Salem e Illinois. A política poderia ajudá-lo? Era possível. Afinal, os homens que entravam para a política pareciam progredir rapidamente.
   Em 1832, Abraham Lincoln candidatou-se a deputado nas eleições do Estado de Illinois. Não foi eleito, mas a experiência fez com que almejasse mais. Na segunda vez, em 1834, teve mais sorte. Quando se instalou a nova legislatura de Illínois no inverno daquele ano, seu quadro incluía um homem gigantesco, de rosto fino e olhos firmemente plantados no futuro. Foi então que ele juntou mais uma ambição a sua Iista: tomar-se advogado.
   Um advogado! Era uma meta extraordinária para um agricultor, um homem da remota fronteira da civilização, que ainda se expressava com o sotaque de Indiana, acrescentando ou diminuindo letras em algumas palavras. Mas foi em Indiana que ele sentiu pela primeira vez o fascínio da lei. Pouco tempo antes de partir, descobrira a sala do tribunal local e os dramas legais encenados ali. Seduzido, Lincoln estudou cuidadosamente a Constituição dos Estados Unidos - o código de leis pelas quais o país era governado.

“Todos nascem iguais”
   Ele se interessou também pela Declaração da Independência: o magnífico documento escrito pelos fundadores do país ao rei George III, da Inglaterra, quando, em 1776, eles romperam com o governo britânico. “Nós nos apegamos a essas verdades por ser evidente", dizia a declaração, “que todos os homens nascem iguais e são dotados pelo Criador de direitos inalienáveis - entre eles, a vida, a liberdade e a busca da felicidade..." Palavras que o jovem Lincoln lembraria por toda a vida. Agora que havia se tornado um legislador Lincoln decidiu continuar o auto-aprendizado, de forma mais aprofundada. Tomou emprestado todos os livros que encontrou e começou a estudar sem descanso. Três anos depois, em março de 1837, com 28 anos, ele se sentiu habilitado como advogado. Em abril, deixou New Salem para sempre. Foi tentar a sorte em Springfield, capital do Estado.

O primeiro escritório de advocacia de Lincoln, em Springfield: "Travessa Hoffman, número 4 - sobreloja". A sala acima da loja de móveis Tom Dupleaux era mobiliada apenas com uma cadeira, um banco, uma cama e uma estante para os livros emprestados.

Sorte e amor
   Lincoln entrou em Springfield montando um cavalo emprestado, com seus pertences dentro de uma mochila atada à sela e os pés pendentes, na altura das patas do animal. Ele tinha um trabalho pela frente e um escritório, mas nenhum lugar para morar. E pouco dinheiro: somente 7 dólares. Insuficientes até para comprar uma cama.
   Logo no começo, a sorte o ajudou. O lojista do qual tentou comprar uma cama admirou a estatura e a aparência sóbria do freguês e ofereceu-lhe um alojamento, no andar superior do estabelecimento. De graça. Lincoln se instalou. Com inteligência e habilidade de expressão, logo se firmou como um advogado de renome.
   Embora fosse tímido com as mulheres, sua vida social não demorou a prosperar. Springfield era mais movimentada e civilizada que New Salem. Como profissional, Lincoln visitava as melhores famílias da cidade. Em 1839, quando já completara 30 anos, ele se apaixonou por uma das mais inteligentes e ricas moças de Springfield.

Mary Todd Lincoln é vista aqui em uma foto oficial, na Casa Branca, em 1861. A vistosa filha de um rico banqueiro do Sul e Abraham Lincoln se casaram em 4 de novembro de 1842.

Mary Ann Todd
   Como Lincoln, Mary Ann Todd era fascinada pelo poder e pela política. Fora isso, ela e seu alto pretendente eram essencialmente diferentes. Mary era pequena, cheia de vivacidade e elegante. Palavras nunca lhe faltavam e não tinha qualquer timidez. Sua família, originária do Kentucky, pertencia à alta sociedade local. Eram muito ricos e possuíam escravos negros para todos os serviços.
   O pai de Lincoln também era do Kentucky. Longe de possuir escravos, ele passou a maior parte de sua vida lavrando, ele mesmo, a terra. Embora fosse uma posição incomum para alguém .do Kentucky, o velho Thomas desaprovava a escravidão. O filho pensava da mesma forma - já protestara contra os donos de escravos na Assembléia Legislativa de Illinois.

O símbolo de sucesso: a casa de Springfield, que Lincoln - nessa época um próspero advogado - comprou para sua família, em 1844. Como outras pessoas da polida sociedade de Springfield, tinha uma serviçal para fazer o trabalho da casa, cuidar das crianças e abrir a porta. Mas o ex-lenhador Lincoln de vez em quando esquecia as formalidades e ele mesmo abria a porta, antes que a empregada pudesse fazê-lo.

Para trás, o passado
   Os Todd não gostavam de Lincoln, de sua origem humilde. Apesar das diferenças e dificuldades, Abraham e sua Molly, de uma forma ou de outra, cuidavam de conservar o amor entre eles. No dia 4 de novembro de 1842, os dois se casaram, mais ou menos às escondidas, na grande casa da irmã de Mary, que só foi informada do casamento no mesmo dia, de manhãzinha. Para a família de Lincoln ninguém também contou nada, durante meses. A verdade era que Lincoln se sentia amargamente envergonhado por seu passado de miséria. Tanto nessa época quanto por muitos anos depois, ele fez tudo o que pôde para esquecer esse fato.
   A primeira casa dos recém-casados não era grande coisa: apenas um quarto no andar de cima de uma hospedaria. Mas, em pouco tempo, o promissor advogado deixaria para trás os tempos difíceis, dessa vez para sempre. Por volta do final da década de 1840, eles se mudaram para uma bela casa de madeira, com persianas e uma delicada sacada de ferro batido. Um belo cenário para a maior vitória política que Lincoln conquistaria em porcentagem de votos: em 1846, com dois terços dos votos, os eleitores de sua região eleitoral escolheram-no para representá-los no Congresso dos Estados Unidos.

A América de Lincoln
   Hoje, os Estados Unidos da América se estendem do oceano Atlântico, a leste, ao Pacífico, a oeste. Com mais de 240 milhões de habitantes, é o terceiro maior país do mundo.
   No tempo de Abraham Lincoln, era muito diferente. No início de 1800, pouco antes de Lincoln nascer, a população não ultrapassava 5 milhões de habitantes. As pessoas que se rebelaram contra os estatutos da Inglaterra e formaram a própria nação viviam no Leste, em treze colônias fundadas por europeus.
   Gradualmente, a crescente população dos Estados Unidos expandiu-se em direção a oeste, além da fronteira do território desses treze Estados. À medida que um novo território recebia colonizadores em número suficiente para configurar uma comunidade organizada, era reconhecido como Estado. Os próprios Lincoln tomaram parte dessa corrida para o Oeste. Saíram da Virgínia para tentar a sorte no "inexplorado e sangrento chão” do Kentucky, arduamente defendido pelos povos indígenas que lá viviam. A mudança não trouxe sorte para o avô de Abraham, morto pelos nativos.

O algodão não era a única cultura nos Estados do Sul. Os escravos mostrados aqui estão cortando cana-de-açúcar em uma plantação de Louisiana. Em 1860, data da fotografia, havia 3.953.000 escravos negros no Sul, cerca de um terço da população total. Entre os sulistas brancos, possuir muitos escravos era sinal de riqueza e poder. Menos de um quarto deles possuía um escravo, e a maioria tinha pouco menos de vinte. Mas um fazendeiro sabia que precisava da força escrava de, no mínimo, trinta para tornar-se realmente rico.

O Norte e o Sul
   Mesmo quando eram colônias, os treze Estados tinham características bem diferentes. E, como as fronteiras dos Estados Unidos deslocaram-se para o Oeste, essas diferenças seguiram na bagagem dos colonizadores e acabaram estabelecendo seu marco principal: o que dividiria o país entre Estados do Norte e do Sul.
   O Sul, com solo rico e clima quente e úmido, transformou-se na terra das grandes fazendas ("plantations"). Para os sulistas, o modo de vida ideal era o da elite inglesa: elegante, refinado, sociável, com todo o tempo do mundo para caçadas ao ar livre. E, dentro de casa, somente música e leitura.
   Os nortistas tinham perspectivas de vida diferentes. Eram responsáveis, acreditavam no trabalho pesado, educação, democracia e igualdade. Havia sido a colônia de Massachusetts, ao norte, que, por volta de 1770, liderara a rebelião contra a Inglaterra.

A riqueza do Sul: as bolas de algodão, brancas como neve, cobrindo a terra até o horizonte. Conforme eram apanhadas, iam sendo colocadas dentro de um grande saco, bem amarrado à cintura. Os colhedores mostrados aqui eram todos escravos, que tinham que apanhar, no mínimo, quase 70 quilos por dia.

Mercado, máquinas e algodão
   Uma vez independente, o novo país necessitava muito de mercadorias que pudesse exportar para a Europa. Não demorou muito para se encontrar esse produto: era o algodão. O algodão cru é o branco e macio revestimento de uma semente. Uma planta que cresce e produz com fartura em climas quentes. Os Estados do norte dos EUA eram muito frios e secos e, portanto, impróprios para essa lavoura. Mas, nos campos do Sul, o algodão crescia como erva daninha. Do outro lado do Atlântico, o mercado estava impaciente para comprar o tecido barato e durável que podia ser fabricado a partir dessa "erva daninha".
   A Europa tinha o mercado. E tinha também os meios de produção: as máquinas recém-inventadas, vibrando nas fábricas que estavam sendo instaladas em todos os lugares. A Europa, de fato, promovia uma extraordinária transformação social com o advento da Revolução Industrial.
   Nos Estados Unidos, o Sul era rápido para descobrir as oportunidades. Já havia, uma vez, ganho muito dinheiro com tabaco e arroz. Em meados dos anos 1790, os sulistas substituíram essas culturas pela do algodão. Os negócios explodiram, derramando dinheiro também nos Estados do Norte.
   Como a Inglaterra, berço da Revolução Industrial, o norte dos Estados Unidos transformava-se num opulento país industrializado, com fábricas, bancos e firmas comerciais. A produção das fábricas incluía os tecidos de algodão e as próprias máquinas para produzi-los.
   Os bancos emprestavam dinheiro aos produtores de algodão do Sul. As empresas comerciais controlavam os negócios entre o Sul e seu vasto mercado estrangeiro. O “reino do algodão" do Sul trouxe prosperidade e crescimento para todos.
   Para todos os que eram livres.



O diagrama mostra como os escravos eram comprimidos no porão de um navio na viagem da África para o Novo Mundo. O cenário foi testemunhado por um médico que, angustiado, relembrou como "os escravos lutavam pela vida, buscando oxigênio com todas as forças, agonizando como animais, com falta de ar". Em muitos navios, os escravos eram amontoados em espaços bem menores.

Tratados como animais
   Os fundadores dos Estados Unidos haviam consagrado seu país à idéia de igualdade para todas as pessoas. Mas, antes de Lincoln entrar para o Congresso, o país se transformara em uma nação onde 3 milhões de pessoas eram legalmente tratadas como animais.
   Eram os escravos negros: africanos e descendentes de africanos, vendidos para serem atirados à escravidão no Novo Mundo.
   Esse comércio transatlântico de seres humanos era mais antigo que o “Reino do Algodão". Tão antigo quanto os Estados Unidos. Nas treze colônias, começou a ser praticado no início de 1600. Por mais de duzentos anos, os mercadores estiveram arrancando os africanos de suas casas e famílias, atirando-os em um inferno difícil de descrever e quase impossível de suportar.
   Dos milhões de escravos que eram transportados em navios mercantes, da costa da África para o Oeste, um número espantoso não sobrevivia nem mesmo à viagem.
   O tormento começava logo que entravam no fétido e sufocante cargueiro.
   Se o escravo fosse homem, não sairia mais ao ar livre nem veria o céu até alcançar a América, três meses depois. Se ele chegasse à América!
  Cada escravo adulto era comprimido num espaço de 75 centímetros de altura, 38 de largura e menos de 2 metros de comprimento. As crianças tinham bem menos. Às mulheres e crianças normalmente era permitido subir ao convés durante o dia. Mas os homens, depois de empilhados, eram obrigados a ficar onde estavam - em espaços delimitados, apertados como caixões. Lá, eles comiam, vomitavam, evacuavam, contorciam-se com febre e caminhavam para uma triste morte, se o destino fosse misericordioso...
   Homens e mulheres ansiavam pela morte. Quando tinham chance, muitas vezes atiravam-se desesperadamente ao mar. Mas a maioria deles acabava por encontrar a morte na infecta escuridão, deitados e acorrentados.
   Algumas vidas começavam ali, também. Um médico de navio viu, horrorizado, nascer um bebê escravo enquanto a mãe ainda estava acorrentada a um cadáver que o feitor, bêbado, esquecera de remover.
   Um capitão de navio negreiro previa perder um oitavo de sua carga na viagem para a América. No entanto, essa era, normalmente, uma baixa estimativa. Os navios chegavam ao Novo Mundo com dois terços de sua carga original. Ou com a metade, e até menos.
  Os mortos e os loucos eram postos de lado, dispensados como todos os objetos que a tripulação considerava imprestáveis. Tubarões seguiam o navio por toda a rota, através do Atlântico.
  Tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, os traficantes de escravos haviam enriquecido com esse horrendo comércio. Nos primeiros anos do século 19, tiveram êxito as reformas britânicas destinadas a impedir que sua frota mercante praticasse esse comércio. Os Estados Unidos seguiram o exemplo da Inglaterra. Mas, longe de prejudicar os lucros dos escravagistas americanos, a proibição, na verdade, aumentou o comércio. Porque, nessa época, o algodão havia mudado tudo.
   Sem os escravos poderia não haver colheita de algodão, riqueza para os plantadores do Sul, expansão do comércio exterior com a Inglaterra e o resto do mundo. Colheita, fartura e comércio dependiam do trabalho dos escravos: plantando, capinando e colhendo.
   A lei, agora, dizia que essas vítimas do “Rei Algodão" não poderiam mais ser importadas. Mas não fazia diferença para os mercadores. Eles riam da lei e se vangloriavam do aumento do preço que seus carregamentos poderiam ter. Na época em que Abraham Lincoln chegou ao Congresso, os escravos saudáveis eram vendidos a 2.500 dólares cada um, e os mercadores enriqueciam mais e mais, a cada viagem.
   Ilegal, rápido e sem escrúpulos diante dos lucros, o abominável comércio persistia.



Outra forma de vender escravos, em um mercado na Virgínia: a pele corada e os aventais novos eram o resultado de uma das técnicas de venda dos astutos senhores. Para aumentar o preço, os donos sempre providenciavam para que os escravos estivessem com a melhor aparência possível, antes de vendê-los. Os mais magros eram especialmente engordados para a venda.

Trabalho de sol a sol
   O tempo de colheita do algodão era longo, muito longo. E os escravos trabalhavam de sol a sol. Recebiam ordem para começar o trabalho, parar para comer, começar outra vez e somente descansar à noite. Quando não cumpriam rigorosamente as ordens, eram selvagemente chicoteados.
   Apesar de enriquecer seus donos, os escravos trabalhavam nas plantações de algodão sem jamais conseguir nada para seu próprio proveito. Era a lei. Eles não podiam ser pagos. Para muitos sulistas, os negros não eram pessoas a quem se dá empregos, mas sim animais para serem manejados. Eram tratados tão bem quanto os outros rebanhos da fazenda - ou um pouquinho pior.
   A alimentação era razoavelmente boa: carne de porco e farinha de milho; sem isso, poderiam produzir pouco. As roupas, de tecido fino e frágil. Usavam sapatos velhos, puídos e, mesmo assim, somente no inverno. Quanto à moradia, os cavalos de corrida dos fazendeiros viviam mais bem protegidos, pois tinham, no mínimo, estábulos limpos e secos, equipados com cocheira e manjedoura. A maioria dos escravos vivia em pequenas cabanas, sem janelas, cheias de buracos, por onde o vento entrava zunindo. Somente alguns tinham a sorte de viver em cabanas com móveis para sentar, dormir e cozinhar. A maioria dormia como o gado, no chão, sobre a palha.

Alguns escravos americanos foram libertados por seus donos. Mas, para a maioria deles, havia apenas duas vias para se livrarem da escravidão: a morte ou a fuga. Para capturar os fugitivos, os fazendeiros formavam patrulhas, como a mostrada aqui: seus cavalos podiam alcançar facilmente um homem, enquanto os escravos precisavam de muita sorte ou esperteza para se esconder dos cães ferozes. O horror de ser caçado por um desses animais selvagens foi brilhantemente captado por um desenhista do século 19.

O poder dos donos
   Os donos de escravos faziam tudo o que podiam para mantê-los em seu poder para sempre. Os escravos não podiam comprar nada - nem vender. A eles não era permitido aprender a ler ou escrever. Não podiam se casar nem testemunhar em juízo. Como medida de proteção para si mesmos, não podiam, jamais, ferir uma pessoa branca. Acima de tudo, não podiam sair da terra dos patrões sem permissão. Como a terra, eles faziam parte da propriedade; portanto, se fugissem, estariam roubando o patrão. A punição para esses casos era, no mínimo, o chicote. Teoricamente aos donos não era permitido matar seus escravos. Na prática, a lei fechava os olhos. Escravos eram chicoteados, espancados e queimados - até a morte.

Leilão de escravos na Virgínia. Ao lado do rechonchudo leiloeiro, uma jovem família negra se submete à inspeção dos compradores. A mãe e o bebê serão, certamente, vendidos juntos. Mas, se o preço for adequado, o leiloeiro pode vender o pai para outro dono, dividindo a família talvez para sempre. Os espectadores, enquanto isso, se comportam como se estivessem num clube. Indiferentes à tragédia humana, eles entram ali para passar o tempo, tagarelar e ler jornais.

Leiloados como objetos
   Comprar ou vender mercadorias não era permitido aos escravos. Mas, como patrimônio de alguém, podiam ser vendidos ou comprados, o que acontecia diariamente, nos armazéns e casas de leilão em todo o sul do país, como se fossem panelas, vasos ou móveis. Quando um proprietário estivesse com pouco dinheiro, poderia resolver o problema vendendo alguns escravos. Se morresse falido, seus herdeiros poderiam fazer dinheiro vendendo a força de trabalho escrava. Serviam, ainda, a outro fim: eram usados em lugar do dinheiro por jogadores que apostavam um ser humano numa rodada de cartas ou num lançamento de dados.
   Se um jogo de móveis vai a leilão, normalmente as peças são arrematadas separadamente. O mesmo acontecia com as famílias de escravos quando, engordados e limpos para a venda, subiam à plataforma do leiloeiro. Mesmo impedidos de casar, eles se amavam e tinham flhos. Os donos não se importavam. Na verdade, ficavam encantados, pois muitos viam a mulher negra da mesma forma que suas éguas e porcas: máquinas de procriação para aumentar o patrimônio a cada nove meses. As escravas que porventura conseguissem sobreviver a dez partos eram, em alguns casos, agraciadas com a liberdade.

Esta fotografia, tirada em Atlanta, Geórgia, em meados do século 19, mostra uma casa de comércio de escravos, encaixada entre duas outras lojas. Para o dono, o comércio de escravos era somente um negócio - como a fábrica de tabaco da porta seguinte. Nesse tempo, a escravidão estava tão embutida no modo de vida dos sulistas que qualquer ameaça a ela parecia uma ameaça ao próprio Sul.

As lembranças de Rose Williams
  Uma boa reprodutora estava salva de ser vendida - mas não a criança. Apesar de milhares de negros viverem em condições parecidas às de um campo de concentração, eles tentavam formar uma família normal.
   Por mais que quisessem, e por mais que se amassem, não conseguiam escapar do terrível medo que pairava sobre eles. Se o proprietário decidisse vendê-los para diferentes compradores, corriam o risco de nunca mais se encontrarem.
   Não faz muito tempo, Rose Williams, uma mulher negra já com 90 anos de idade, recordava como havia passado por esse pesadelo. Ela era apenas uma menina quando seu pai foi arrematado em um leilão por um fazendeiro chamado Hawkins. Rose esperava sua vez, comprimida no pequeno palanque, observada pelos interessados. Após uma agitada disputa de lances, Hawkins também comprou a mãe da menina. Chegou a vez de Rose.
   Quatrocentos dólares... 425... e 450. Para a criança, as pessoas que decidiam seu destino eram apenas vozes: vozes de homens brancos, vindas da multidão que a rodeava, examinando-a fixamente.
   Os lances aumentavam e as vozes agora se resumiam a apenas duas.
   “Então, as lágrimas correram por minhas faces", recordou Rose, “porque eu estava sendo vendida para algum homem que me separaria de minha mãe. Alguém ofereceu 500 dólares e o leiloeiro perguntou: 'Eu ouvi mais? Ela vai ser levada por 500'."
   Quinhentos dólares: um quinto do que normalmente alcançava no mercado um escravo adulto, mas, ainda assim, um bom dinheiro. E veio outra oferta: 25 dólares a mais.
  Bang! O leiloeiro desceu o martelo. Trêmula, incrédula e feliz, Rose ouviu que havia sido vendida para o mesmo fazendeiro, Hawkins. A pequena família estava salva novamente... por enquanto.



Como vivia o Sul. A cabana de escravos contrasta com a bela casa de senhores.

Liberdade no Norte
   Alguns escravos foram libertados por seus proprietários. Apenas alguns. A maioria deles sabia que havia apenas dois caminhos, além daquela vida de horrores. Um deles era a morte; o suicídio ocorria com freqüência entre os escravos. O outro, a fuga para o Norte: o industrializado e democrático Norte, onde a escravidão fora condenada há muitos anos.
   Os nortistas não permitiam escravos em suas terras, mas não tinham opinião formada sobre o assunto. Os sentimentos eram confusos. Não questionavam os direitos dos sulistas de dirigirem seus Estados como bem entendessem. Muitos sentiam-se menos à vontade com os negros que os próprios sulistas. Suportavam a idéia da abolição, mas não gostavam de imaginar negros vivendo lado a lado com os brancos.
   Ao mesmo tempo, havia nortistas que se opunham sinceramente à escravidão, e era crescente o número deles. O novo sentimento de compaixão se ampliava pelo Oeste. As pessoas começavam a reagir contra a ríspida realidade da Revolução Industrial. Descobriam o quanto a vida era implacável para todos – menos para os ricos. E exigiam reformas.
   No norte dos Estados Unidos, muitos desses reformistas eram abolicionistas, entregues por inteiro à causa da abolição da escravatura em todo o país. Argumentavam que a fraternidade dos homens era pregada pela Declaração da Independência e pelo cristianismo. A escravidão contradizia esse preceito.
   Isso dividia o país cujo nome - EUA, ou simplesmente a União - carregava em si a mensagem da unidade. Além do mais, a escravidão era um modo grosseiramente ineficiente de produzir riquezas.

Os fazendeiros mais poderosos tinham dinheiro em abundância para construir esplêndidas mansões. O salão de baile como o mostrado acima, em Louisiana, competia em elegância com as grandiosas casas da Europa.

Ameaça no Sul
   Os sulistas não se deixaram abater por esses ataques. Eles não poderiam produzir sem os escravos, pois dependiam deles para tudo. Sem eles, a riqueza do Sul poderia se escoar da noite para o dia.
   Quem cultivaria os campos de algodão, colheria a preciosa safra, consertaria carroças e cercas? Quem ferraria as patas dos cavalos, cuidaria das crianças? E a roupa costurada e limpa, a comida pronta? Quem entregaria as mensagens? Acima de tudo, a presença dos escravos mostrava quanto dinheiro seus donos possuíam.
   Sem eles, a vida dos brancos cairia aos pedaços, completamente. Não era essa perspectiva do futuro sem o trabalho escravo que preocupava os mais inteligentes. A ameaça real, esta sim, vinha das constantes mudanças na geopolítica dos Estados Unidos.
   Todos os Estados da União mantinham o direito de resolver seus problemas como bem entendessem, inclusive no que se referia à escravidão. Mas havia uma exceção nessas regras básicas. Se, por acaso, três quartos dos Estados se unissem para tornar ilegal a escravidão, os outros seriam obrigados a acatar a decisão. Enquanto o número de Estados livres e escravistas fosse exatamente igual, o Sul estaria salvo. Mas, se os números mudassem, essa segurança acabaria. E os números já começavam a mudar, à medida que o século 19 avançava. Cada mudança abria mais o caminho que poderia levar a União a um ponto sem retorno e daí à guerra inevitável. Como de fato aconteceu.

O preço da compaixão. O dono do armazém mostrado era conhecido abolicionista. Mas suprimir a escravatura significaria a abolição da sociedade do Sul - a sociedade branca. Furiosos com essa perspectiva, os donos de escravos estão aqui destruindo as propriedades de seus opositores. Alguns abolicionistas chegaram a perder a vida.

Compromisso de Missourí
   Em 1820, uma lei chamada Compromisso de Missouri deu ao Norte e ao Sul uma total igualdade de doze Estados para cada lado. Desde então, segundo o Compromisso, a escravidão seria proibida em qualquer novo Estado formado ao norte da fronteira sul do Missouri.
   Cada um dos dois lados pensava haver levado vantagem com o acordo. O Sul jogara com sucesso o jogo dos números para manter seu estilo de vida. O Norte, por sua vez, acreditava ter interrompido a expansão da escravidão para sempre.
  Mas os legisladores não levaram em conta as surpresas que surgiram ininterruptamente na década de 1830 proporcionadas pelos texanos, subitamente rebelados contra seus governantes - os mexicanos. Eles acabariam constituindo uma república independente, escravista, e pediam para ser admitidos como membros dos Estados Unidos.

A vez da Califórnia
   Os problemas políticos entre o Norte e o Sul começaram a emergir. Os rebeldes texanos foram, finalmente, integrados à União. A Flórida também era um Estado escravista, como vários Estados do Norte. O jogo dos números fugia ao controle muito rapidamente.
    Em 1850 foi a vez da Califórnia integrar-se à União e entrar no jogo. Sua posição geográfica a levaria a ficar com um pé em cada lado da linha do antigo Compromisso de Missouri. Norte e Sul discutiram acaloradamente, até surgir um novo acordo que agradasse aos dois lados. A Califórnia seria um Estado livre e uma nova e rigorosa lei poderia ser aprovada, forçando o retorno dos escravos que haviam fugido para o Norte.
   Os abolicionistas estavam amedrontados e prometeram a si mesmos vencer o desafio. Mas o acordo de 1850 alertara também o Sul para os problemas. Quatro dos Estados escravistas começaram a sugerir um último e dramático remédio: antes que a União destruísse sua forma de vida, eles a deixariam, em conjunto.
    Refletiram, conversaram, e a idéia de secessão ficou de lado... por uns tempos.

Tio Tom
  Se a situação entre as duas metades dos Estados Unidos estava difícil em 1850, logo se tornaria pior. Em 1852, foi lançado um livro que atingiria o coração do mundo ocidental: A Cabana do Pai Tomás (UncIe Tom's Cabin), de Harriet Beecher Stowe, que retratava a escravidão sob o ponto de vista dos escravos: o terror, a brutalidade, o desespero. Vendeu milhões de exemplares.
   Poucos foram aqueles que não se sensibilizaram com a mensagem. Nos Estados livres, as vozes se levantavam, num coro ensurdecedor, pedindo a abolição.

Kansas-Nebraska
   Em 1854, outra mudança nas fronteiras dos Estados Unidos provocou nova crise. Antes de se tornar Estado, uma região colonizada recebia o status de “território". Nesse ano, dois novos territórios foram estabelecidos no Oeste: Kansas e Nebraska.
   A escravidão seria permitida? Os escravos seriam libertados? Ou os novos territórios poderiam escolher o que melhor lhes conviesse?
   No final, para fúria de muitos nortistas, os Estados Unidos escolheram a terceira opção. A decisão dos legisladores revogou o antigo Compromisso de Missouri para sempre e deu sinais de que a escravidão poderia se expandir para onde os fazendeiros brancos quisessem.

Abraham Lincoln, o advogado que um dia se tornou presidente dos Estados Unidos. Conforme sua reputação crescia, o povo americano ansiava por detalhes sobre ele, mas Lincoln evitava tocar no assunto. "Magro, moreno, pesando em média 80 quilos, olhos cinzentos e sem outros sinais ou marcas", foi como uma vez descreveu a si mesmo.

Lincoln e a escravidão
  Abraham Lincoln, um legislador do Norte, abraçava com força e interesse todas as lutas. Sua visão sobre a situação dos escravos era semelhante à de outros legisladores modernos do Norte. Ele abominava a escravidão e tudo o que a cercava. Odiava ver como a questão estava dividindo seu país, seu querido e democrático país. Abraham Lincoln tinha certeza de que um dia a escravidão desapareceria naturalmente, quando os agricultores de algodão esgotassem o solo. Mas, se fosse permitida além das regiões de cultivo do algodão, seu fim poderia nunca chegar.
  Ao mesmo tempo, ele não era um abolicionista. A moderação representava a principal característica de sua personalidade. Essa moderação não significava fraqueza e ignorância, mas era fruto de anos difíceis, de reflexão e do auto-aprendizado que, pacientemente, vinha acumulando desde a infância. Além disso, como sua madrasta dizia sempre, ele havia sido um garoto de bom coração. A bondade ainda estava viva, mas, com a maturidade, adquirira outra dimensão.
  Lincoln era um homem bom. Não exatamente com o coração, mas com a cabeça. Além de respeitar a lei, respeitava as pessoas: os diferentes pontos de vista, os sonhos, as esperanças e o direito à individualidade, o modo próprio de cada um ser e não "o que" ou "quem” alguém gostaria que fosse. Respeitava o direito dos antigos Estados escravistas de administrar seus problemas como quisessem, desde que autorizados pela lei dos Estados Unidos. Ele dizia que, em um país livre, o povo deve ser livre até para ter escravos - se fosse o que a lei permitisse.

“Um dever supremo"
  Era um ponto de vista complicado, baseado mais na razão que na emoção, e Lincoln tinha consciência dessa,contradição. Ele revelou seus sentimentos e opiniões em uma carta a um amigo, em 1845, ano em que o Texas ingressou na União.
  “Eu sustento isso", escreveu, "por ser um dever supremo para nós dos Estados livres, uma dívida com a União dos Estados e talvez para a própria liberdade (por paradoxal que possa parecer) não interferir na escravidão dos outros Estados. Por outro lado, eu sustento isso por ser igualmente claro que nós não deveremos nunca, conscientemente, nos prestar, direta ou indiretamente, a impedir a morte natural da escravidão... (Não podemos) encontrar novos lugares para ela continuar a existir, quando ela pode, em breve, ser uma coisa do passado."

Breve afastamento
   Na época em que o caso Kansas-Nebraska levou os ânimos ao ponto culminante, Lincoln estava vivendo outra vez em Springfield, Illinois, exercendo a função de advogado. Para seu desapontamento, seu mandato no Congresso não o lançara no cenário da política nacional, longe disso. Ele era inteligente, ambicioso, político hábil e orador público de primeira ordem. E, ainda assim, por alguma razão, o Lincoln congressista não fora bem-sucedido.
  Talvez seu desempenho não tivesse sido bom. Com seu raciocínio frio e respeito pela verdade, talvez tivesse uma tendência a apoiar questões impopulares. Ou talvez estivesse apenas sem sorte. Contudo, quando, em 1849, chegou a hora de ser reconduzido ao Congresso, os eleitores se voltaram para outro lado e escolheram outra pessoa. Resignadamente ele voltou a trabalhar como advogado.
   Lincoln não sabia disso, mas seu afastamento forçado da política não duraria por muito tempo. Cerca de dez anos depois, ele retornaria a Washington como o homem mais importante dos Estados Unidos.

Líderes para um novo partido
   O incidente de Kansas-Nebraska mudou a sorte de Lincoln, decisivamente. Até então, os nortistas que se opunham à escravidão estavam divididos em vários campos políticos. Eles se deram conta de que deveriam começar a trabalhar em harmonia. Rapidamente, formaram um partido novo, o Republicano, com dois objetivos principais: um deles, manter a escravidão limitada às propriedades dos velhos Estados escravistas; o outro, impedir que a União se desintegrasse.
   O novo partido precisava de líderes, mas era difícil encontrar as pessoas certas. Obviamente, eles deveriam ser bons políticos, homens com autoridade, homens que falassem bem e convencessem multidões. Mas eles deveriam ser de certo modo diferentes. Melhor: respeitáveis. O abolicionista típico, muitos nortistas pensavam, tinha um caráter tempestuoso, explosivo, poderia dizer ou fazer qualquer coisa para sustentar seus propósitos. Os republicanos queriam alguém que exalasse bom senso e moderação. Alguém como Abraham Lincoln.

"Estou alegre, eu me uni aos republicanos..." Ao som da música da campanha eleitoral, uma multidão de partidários de Lincoln desfila em frente a sua casa, em Springfield. Lincoln, de pé na porta, com uma jaqueta branca, pode ser reconhecido pela enorme estatura.

Uma casa dividida
   Lincoln se filiou ao Partido Republicano em 1856 e rapidamente fez seu nome dentro dele. Nos anos seguintes, o homem dos republicanos refez seu caminho na política: discursando, debatendo, disputando eleições. O partido reconheceu então que havia encontrado a pessoa certa, um quase desconhecido que se revelou um dos mais brilhantes oradores de todo o país.
   Por todo lllinois, milhares de pessoas apareciam para ouvi-lo debater a escravidão com seu rival político, Stephen A. Douglas, do Partido Democrático, o homem que conseguira aprovar a lei de Kansas-Nebraska. O experiente Douglas, também um brilhante orador, sabia que havia encontrado um adversário à altura.
  Milhares de outras pessoas, lendo os jornais pela manhã, vibraram com as emocionantes palavras de Lincoln, endereçadas à Convenção Republicana de l858. Em linguagem que uma criança poderia entender, ele citou primeiro a Bíblia: "Uma casa dividida contra si mesma não pode resistir".
   Então, usando suas próprias palavras, ele continuou: “Eu acredito que este governo não pode resistir, permanentemente, metade escravo, metade livre”.
  “Eu não espero que a União se dissolva, não espero que a casa desabe - mas que não seja mais tão dividida. Ela se tornará inteiramente uma coisa ou inteiramente outra.
  “Ou os opositores da escravidão impedirão que eIa se expanda... ou seus defensores a empurrarão para a frente, até se tornar legal em todos os Estados, antigos e novos, tanto no Norte quanto no Sul."

Lincoln em debate com seu adversário político, o famoso "Pequeno Gigante". Com pouco mais de 1,0 metro de altura, o senador Stephen A. Douglas (segundo, à direita) recebeu o apelido por causa da estatura e de seu impressionante renome como orador. Sua voz grave e ressoante impressionava. Em contraste, a voz de Lincoln era aguda e estridente. Mas os ouvintes eram fisgados pelo modo como ele conseguia voltar-se para trás para falar a uma grande multidão, como neste desenho.

O presidente Abraham Lincoln
   Dois anos depois, chegou a vez da população do Leste se deslumbrar com o homem esbelto, de cabelos revoltos, olhar e voz firmes. No Instituto Cooper de Nova York, uma compacta audiência vibrou quando ele declarou que os republicanos acreditavam em sua causa.
   Lincoln disse a seus ouvintes que o Sul queria que o Norte parasse de considerar a escravidão um erro. “Eles acham que estão certos e que nós estamos errados. Este é exatamente o ponto de nossa controvérsia (...) E, se achamos que a escravidão é um erro, como poderemos nos render a eles? Poderemos depositar nossos votos no ponto de vista deles e nos posicionar contra os nossos?"
   Os sofisticados nova-iorquinos ficaram de pé e aplaudiram ruidosamente quando ele finalizou: “Vamos acreditar que a razão faz a força, e, acreditando nisso, vamos, até o fim, ousar cumprir nosso dever como nós o entendemos".
   Em maio de 1860, os republicanos se encontraram para escolher o candidato do partido ao mais elevado de todos os cargos políticos: o de presidente da República. Lincoln venceu. E, no dia 6 de novembro daquele ano, ele venceria outra vez. Com os votos de todos -menos um - os Estados do Norte, Abraham Lincoln foi eleito o décimo sexto presidente dos Estados Unidos da América do Norte.
   Foi uma vitória da moderação, da humildade, da razão e do bom senso. Uma vitória que conduziria os Estados Unidos diretamente para a guerra.

O Sul se liberta
   Um republicano na Casa Branca! Para os Estados escravistas, era o fim. Durante toda a década de 1850, eles viram seu modo de vida e sua cultura sujeitos a ameaças cada vez mais fortes. E, agora, lá estava um republicano encarregado de conduzir todo o país!
   Só restava uma coisa a fazer: deixar a União, declarar independência, sair enquanto a vida e a subsistência ainda estavam intactas. Sair... !
   Em 2O de dezembro de 1860, antes de Lincoln se mudar para Washington, o Estado da Carolina do Norte se declarou independente - não mais fazia parte dos Estados Unidos e não mais se subordinaria às leis da União. Antes de março de 1861, quando o novo presidente faria o juramento, seis outros Estados fizeram o mesmo: Mississípi, Flórida, Geórgia, Alabama, Louisiana e Texas. Formaram uma nação rival: os Estados Confederados da América. Nessa nova nação, alguns homens, mulheres e crianças eram iguais: os brancos.
   “Uma casa dividida contra si mesma..." De sua elevada e solitária nova posição, Lincoln contemplou esse acontecimento com temor.

Governo para o povo e pelo povo
   Durante toda sua vida, desde o tempo em que teve pela primeira vez um livro nas mãos, Lincoln foi um apaixonado pela concepção de Estados Unidos: uma forte união de repúblicas, conduzida não por reis e lordes, mas por pessoas comuns, como ele próprio. O garoto do campo, nascido em uma cabana de madeira, era agora o presidente da nação.
   Para um cidadão dos Estados Unidos, todas as coisas seriam possíveis. Origem inferior, pobreza e passado humilde não eram empecilhos para o sucesso. Para os Estados Unidos, o que importava era trabalhar arduamente, ter muita energia e bom coração. O Sul ainda possuía um sistema social em que a origem da pessoa e sua formação eram de vital importância. Mas, um dia, essa condição desapareceria junto com o sistema de produção agrícola que a mantinha viva.
   Agora, de qualquer modo, o sistema todo estava se desintegrando diante de seus olhos. Um país governado por pessoas comuns estava sendo afundado... por pessoas comuns. Isso significava que a concepção de governo do povo poderia não funcionar?
   Lincoln não acreditava nisso. Não podia acreditar. A União haveria de ser salva, e os Estados independentes, trazidos de volta. Pela força, se necessário. Eles eram agora rebeldes, e a maneira de acabar com a rebelião era esmagá-la. Se os rebeldes queriam a guerra, eles teriam a guerra.
  No dia 12 de abril de 1861, as tropas confederadas começaram a bombardear um posto do Exército da União, o forte Sumter, em Charleston Harbor, Carolina do Sul. Depois de dois dias, as tropas da União se deram por vencidas.
   A Guerra Civil Americana havia começado.

O dia em que os Estados Unidos mudaram para sempre: o começo da Guerra Civil Americana, em 12 de abril de 1861. Os primeiros disparos partiram das tropas do Sul. Os sulistas haviam exigido a rendição do forte Sumter, em Charleston Harbor. Quando suas ordens foram rejeitadas, eles abriram fogo.

A Guerra entre os Estados
   Se os americanos soubessem o que estavam preparando para eles mesmos, até o mais teimoso deles pensaria duas vezes. A Guerra de Secessão - como era também chamada - envolveria a nação na mais sangrenta e terrível hostilidade que o mundo ocidental conhecera até então. Não era só o que os dois lados acabavam de fazer um com o outro. A agressão já fora ruim o suficiente A escalada da guerra, porém, é que seria algo terrível: meio milhão de mortos e outro tanto de feridos. Para uma guerra travada sem aviões nem armamentos modernos, esses números são verdadeiramente horripilantes.

Os Estados Unidos no tempo da Guerra Civil. Os Estados confederados aparecem em amarelo. Os que lutaram com Lincoln para salvar a União são mostrados em rosa. A Virgínia Ocidental originalmente era parte da Virgínia rebelde. Mas, em 1863, ela separou-se e passou para o lado da União, como Estado independente.

Através do rio Potomac
   O lado confederado consistia de onze estados. Aos sete primeiros haviam se juntado outros quatro: Arkansas, Virgínia, Carolina do Norte e Tennessee. A União contava com todos os Estados livres do Leste e Oeste, do Maine à Califórnia.
   Surpreendentemente também se uniu a ela um pequeno número de Estados escravistas: Delaware, Maryland, Kentucky e Missouri. Parte da Virgínía - que formou o Estado da Virgínía Ocidental - também se integraria à União. A maioria dos Estados escravistas leais ficava na divisa entre os dois lados em guerra. Obviamente, mantê-los leais era de crucial importância para a União.
  Washingtom, a capital da União e quartel general de Lincoln, também ficava na fronteira. Das janelas de sua sala, ele podia observar diretamente o território rebelde, do outro lado do rio Potomac.
   A União superava em número a Confederação, e suas modernas indústrias estavam bem equipadas para manter a guerra em curso. Mas, antes de mais nada, o Sul contava com duas vantagens que o Norte não podia ainda rivalizar: audácia e generais brilhantes. O mais competente e brilhante de todos era o virginiano Robert E. Lee, um homem de destacado talento e grande integridade, como Lincoln.
  Em contraste, Lincoln teve que carregar nas costas, por longo tempo, generais tímidos, incompetentes e lentos. 0 resultado pôde ser visto nos campos de batalha: as encostas, de cima a baixo dos Estados do Leste, transformadas em um cenário repelente de corpos e sangue.

A floresta que logo se transformará em cemitério: a seção "Hornet's Nest",  do campo de batalha de Shiloh, Tennessee. Milhares de americanos - nortistas e rebeldes - morreram aqui, e o nome passou a ser sinônimo de carnificina.

Vitórias e derrotas
   A primeira grande batalha, em Bull Run, Virgínia, em 21 de julho de 1861, terminou em desastre para o Norte. Quase em pânico, as tropas da União se dispersaram e fugiram. Ouvindo as notícias, até o moderado e quieto Lincoln blasfemou selvagemente. E como o ano de 1862 seguiu o exemplo de 1861, Lincoln teve bons motivos para continuar blasfemando.
   As vitórias do Norte não eram decisivas; seus avanços, muito precários. E o número de vítimas, assombroso. Em abril de 1862, por exemplo, os dois lados se encontraram, em dois dias de batalha, em Shiloh, Tennessee. O Sul finalmente se retirou, mas foi uma amarga vitória para o Norte. A União teve 13 mil vítimas, e a Confederação, quase o mesmo.
   Durante todo o verão, o general da União G.B. McClellan dirigiu suas ações contra o leste da Virgínia, tentando tomar a capital confederada, Richmond. Apesar de ter chegado com facilidade perto da área inimiga, o general falhou. A União perdeu outros 37 mil homens, e a Confederação, quase o mesmo tanto.
   Em agosto, os dois exércitos estavam de volta a Bull Run, um pequeno rio cortado peIa estrada de ferro abaixo de Manassas Junction. A segunda batalha de Bull Run terminou em espantosa derrota para o Norte - outra retirada precipitada, 14 mil mortos e as tropas confederadas entrincheiradas a cerca de 30 quilômetros de Washington.
   Um mau resultado para a União. Na verdade, muito mau.

A arma secreta de Lincoln
  Pouco antes de as notícias sobre a segunda batalha de Bull Run atingirem Lincoln, ele guardava dois motivos de esperança: duas armas secretas que talvez ajudassem a levar aquela pavorosa matança ao fim.
   Uma era um homem: o general Ulysses S. Grant, extraordinária figura. Ele não gostava de guerra nem do Exército. Parecia não gostar de nada mais além do cantil. Mas, diferente dos outros generais, ele lutava como um demônio. Shiloh, com seu resultado sangrento, fora obra dele. Ele estava, agora, no vale do Mississípi, atacando os confederados em seu extenso flanco do Sul. Considerando sua grande energia, ele deveria ter sucesso. Se tivesse, reduziria a Confederação à metade.
   A outra arma secreta de Lincoln era algo bem diferente. Se funcionasse, ela destruiria a Confederação por dentro, por inteiro. Resolveria também um problema que há muito tempo vinha atrapalhando a unidade de toda a nação: a escravidão.

Lincoln disse “Não"
  Lincoln não era um abolicionista, mas vários de seus partidários abraçavam a causa. Estavam certos de que, um dia, Lincoln passaria a pensar como eles. Logo depois do começo da guerra, eles sentiram que esse dia poderia não estar muito longe. Pediram a Lincoln para realizar algo que ninguém, em tempo de paz, teria poder para fazer: abolir a escravidão nos Estados rebeldes.
  Lincoln ouviu, concordou com as argumentações e recusou o pedido. Se abolisse a escravidão, ele, imediatamente, perderia o apoio dos democratas.
   Os rivais políticos dos republicanos odiavam abolicionistas e também odiavam negros. Mas, por enquanto, eles estavam dispostos a lutar para salvar a União. Se a escravidão fosse abolida no Sul, a trégua entre os partidos políticos poderia acabar imediatamente. 0 Norte se desintegraria e o Sul venceria.
   Os abolicionistas foram embora. Mas voltaram à carga. Outra vez Lincoln disse não. Eles redobraram seus argumentos e acrescentaram outro: antes da guerra, o mais significativo comprador de algodão era a Inglaterra. Agora, a Inglaterra poderia reconhecer a Confederação como um país independente e até vir em socorro do Sul. Seria o fim de tudo para a União.
   Mas os ingleses não aprovavam a escravidão. E se o Norte se comprometesse a bani-la para sempre?

Mesmo antes da emancipação, os escravos do Sul haviam começado a aproveitar as chances que a guerra lhes oferecia. Sabiam que, atrás da linhas da União, os refugiados (como esta família da Virgínia, na foto) estariam a salvo e livres. Muitos proprietários tentaram impedir a fuga para as áreas de batalha. Mas a pressão que os brancos fizeram sobre os negros foi desaparecendo rapidamente. Desafiando seus donos, os outrora amedrontados escravos desobedeceram a ordens, recusando-se a trabalhar e esperando pelo momento da fuga.

Começando a dizer “Sim"
  Lincoln respondeu “Não", mais uma vez. O coração, talvez, já estivesse dizendo “Sim". Pessoalmente, ele concordava com os abolicionistas. Como não concordar, odiando a escravidão como odiava? Lincoln reverenciava os ideais de igualdade e liberdade da União. Foi como estadista que ele disse "Não". Mas agora o estadista que havia nele estava começando a aceitar as propostas dos abolicionistas. Seu grande objetivo naquela guerra desgastante era salvar sua querida União.
  Teria ele a aprovação da Inglaterra? Acreditava que sim. E, certamente, arruinaria a capacidade de luta do Sul: sem escravos, o Sul não poderia produzir nada, ganhar nada... fazer nada.
   Mas o que dizer sobre os Estados aliados da fronteira com o Sul? Esta era a dificuldade real. Em qualquer hipótese, esses Estados tinham que ficar do lado da União.
  Resignadamente, Lincoln somou esse problema a todos os outros, que já não eram poucos. Problemas como seus generais ineficientes, seu grupo de conselheiros e políticos desconfiados e difíceis de comandar.
   Problemas como sua esposa.

Tad - de "Tadpole" - Lincoln, fotografado com o pai, na casa da família, em Washington. O  nome real de Tad era Thomas. Seus pais, que o adoravam, dram-lhe esse apelido quando nasceu por causa de sua cabeça grande.

Pobre Mary
  Mary, pobre Mary, era um dos piores problemas. Ela era, agora, uma mulher de 40 anos e, para Lincoln, parecia tão bonita como em 1842, quando se casaram. Ela o amava.
  Mas isso não impedia que tivessem terríveis desentendimentos. Eles ainda eram basicamente diferentes: Lincoln, um homem sóbrio, propenso à tristeza e depressão, enquanto Mary era toda paixão e excitação. Ela adorava os amigos. Odiava os inimigos. E, quando hostilizada pelos amigos por seu temperamento inflamável, odiava os amigos também.
   Acima de tudo, ela adorava roupas e móveis finos, e isso acabaria provocando muita confusão.
   Ser mulher do presidente não era trabalho fácil, porém menor que todos os outros. Mary, além do mais, era sulista. Seus irmãos lutavam no lado rebelde e, para a alta sociedade de Washington, ela representava pouco menos que uma rebelde. Para chocar seus críticos, Mary decidiu fazer da Casa Branca a mais elegante e bem mobiliada residência da capital.
  Ela havia reservado 20 mil dólares para esse fim. Mas gastou muito mais que isso. Quando Lincoln descobriu, ficou pasmado. Muito dinheiro gasto em babados, enfeites e cortinas: dinheiro em excesso, gasto enquanto a nação lutava pela vida. Tudo se ajeitava no final, mas o temperamento caprichoso de Mary não melhorava.

Uma recepção de ano-novo na Casa Branca, pintada por um artista, no primeiro dia de 1862. Os cumprimentos de ano-novo eram fixados regularmente na agenda anual do presidente. Aqui, Lincoln - o homem mais alto da sala - aperta mãos de uma interminável fila de convidados.

Willie e Tad
  Em última instância, eles tinham filhos para mantê-los juntos. Robert, o mais velho, estava agora quase homem feito e o pequeno Eddie morrera, muito tempo atrás. Mas Willie e Tad, com 11 e 8 anos de idade, ainda estavam descobrindo o mundo, bem-humorados e travessos. Os pais os adoravam, mas eles faziam o staff da Casa Branca estremecer.
  Nada ficava a salvo: nem a campainha da Casa Branca, que Tad tocava com insistência, nem os morangos para os banquetes oficiais, que Tad comia sem avisar ninguém, nem os lençóis, amarrotados pela cabra de Tad, alojada em sua cama. Tad, abreviatura de “Tadpole", normalmente liderava as travessuras, mas Willie era quase tão criativo quanto ele. E os jogos e risadas continuaram sem parar - até um terrível dia de fevereiro de 1862, quando os dois meninos caíram doentes, com febre.
   Tad se recuperou. Mas Willie morreu. Tendo ficado apenas com o filho mais velho e o mais novo, Mary se afundou em um desgosto tão intenso que, durante três meses, não saiu do quarto.
   O presidente foi atingido no coração. Mas, obstinadamente, continuou a lutar por seu objetivo: vencer a guerra.

Sobre o poder da guerra
  Como tentativa, Lincoln esboçou planos para abolir a escravidão, lentamente, com a aprovação dos Estados da fronteira. Mas, quando solicitados, estes não deram nenhum sinal de apoio.
  Lincoln debateu consigo mesmo outra vez. Muito bem. Então, a abolição deveria ser imposta da maneira mais dura. Não havendo consenso, ele a decretaria apoiado no extraordinário poder que a guerra lhe dava. Em julho de 1862, ele fez sua própria cabeça.
  Era preciso acabar com a guerra. E Lincoln precisava dos escravos - não mais escravos, mas pessoas livres, prontas e dispostas a apoiar o Norte e, talvez, até lutar por ele. A liberdade dessas pessoas repousava nas mãos do presidente. Era chegada a hora de elas a receberem.
   Como comandante-em-chefe da nação, ele proclamaria a emancipação dos escravos.

Esperando a vitória
  Quando anunciou seu plano aos atônitos conselheiros, eles, a princípio, pediram-lhe que aguardasse. Era polêmico demais e perigoso - além do que não era a hora certa para isso. Se o Norte tivesse conseguido algumas grandes vitórias, as coisas poderiam ser diferentes. Mas, como estavam agora, os planos do presidente pareciam uma tentativa mal-acabada para instigar a rebelião dos escravos. A contragosto, Lincoln concordou. Ele teria que esperar pela notícia de uma vitória da União - se ela um dia chegasse.
    O que chegou, em 31 de agosto de 1862, foram as notícias da segunda batalha de Bull Run.
  Poucos dias depois, em 5 de setembro, o general Lee invadiu o Estado escravista de Maryland, um dos Estados fronteiriços leais à União. O inimigo estava agora em solo nortista, movendo-se para além da capital da União, na direção norte.
  Grant, o melhor general de Lincoln, ainda estava lá embaixo, no Mississípi. Em desespero, Lincoln voltou-se para o indeciso McClellan e o despachou para fazer o melhor que pudesse.

Depois da batalha de Antietam Creek, as notícias sobre a vitória do Norte deram a Lincoln a confiança de que precisava para prosseguir com os planos de emancipação dos escravos. Mas o sinal que ele pediu ao destino custou a vida de 21 mil homens.

O pacto do presidente
   Então, no silêncio de sua sala, o presidente selou um pacto com Deus - ou, talvez, com o destino. Ele era, normalmente, um homem religioso. Mas os tempos eram outros, agora. Lincoln disse a si mesmo: se McClellan batesse os sulistas, tomaria isso como um sinal. Seria o aviso de que sua decisão de libertar os escravos estava certa.
    Se McClellan vencesse, Lincoln iria em frente e decretaria a emancipação.
   Em 17 de setembro, o general da União encontrou as forças do Sul em um riacho chamado Antietam Creek. Depois de uma batalha encarniçada, McClellan venceu. Como sempre, as baixas foram gigantescas: 12 mil mortos, somente no lado da União. E, como sempre, McClellan desperdiçou sua vantagem ao não manter o inimigo sob ataque: mesmo arrebentados como estavam, os sulistas manobraram para fugir de volta para a Virgínia
   Mas foi o suficiente. Uma vitória. Em 23 de setembro, Lincoln publicou uma proclamação preliminar de emancipação. Prometia liberdade a todos os escravos dos Estados rebeldes, se os rebeldes não fizessem a paz até o primeiro dia de janeiro de 1863.

A imagem da guerra e a realidade. O quadro mostra o Exército da União atacando os Confederados em Vicksburg, no Mississípi. Ele retrata mais o modo como o Norte via a guerra do que as reais condições dos campos de batalha.

Ano-novo, 1863
   Eles não a fizeram. Quando o 1º de janeiro chegou, as duas Américas ainda estavam envolvidas em combates homicidas. Então, com os dedos trêmulos, Abraham Lincoln assinou o papel que aboliu a escravidão no Texas, Arkansas, Mississípi, Alabama, Flórida, Geórgia, nas Carolinas, Virgínia e Louisiana.
   As exceções eram áreas que já haviam sido retomadas pela União, como a Virgínia Ocidental. Os Estados escravistas da fronteira estavam desobrigados também. Tornara-se mais vital que nunca a lealdade desses Estados à União. Chegaria a hora de tomar uma decisão sobre eles, mais tarde. Se o Norte vencesse.

A fotografia acima - um soldado ferido sendo atendido por um companheiro - mostra um quadro muito mais preciso da vida na frente de batalha.

Uma guerra em dois fronts
  A importante decisão poderia ter feito Lincoln perder a guerra. Resultou na perda significativa de apoio popular. Em outubro de 1862, os democratas apearam os republicanos do poder, Estado após Estado, nas eleições realizadas logo depois da proclamação preliminar: os eleitores contrários à abolição e especialmente temerosos de que os negros libertados pudessem “invadir" o Norte, para se fixar e trabalhar entre os brancos, deram a vitória aos democratas.
   Eles tinham se unido aos esforços de guerra, conforme diziam, para salvar a União, não para acabar com a escravidão. Muito em breve, seus protestos se transformariam em uma barulhenta campanha exigindo que parassem a guerra.
   Lincoln estava, agora, numa guerra de duas frentes: no Sul e em casa, no Norte. E, no campo de batalha, ele e a União estavam derrotados depois do terrível golpe.

No princípio, o Exército de Lincoln erra composto por voluntários. Mas, em 1863, o Norte começou a convocar todos os homens com idade entre 20 e 45 anos. Os nortistas ficaram furiosos e as revoltas contra a convocação explodiram em várias cidades. Aqui, revoltosos põem fogo em uma repartição do governo. Eles atacaram com fúria assassina as cidades dos negros. Quando a revolta de Nova York foi controlada, quinhentas pessoas haviam morrido.

“Meu Deus, meu Deus"
   Dezembro foi o mês de Fredericksburg, na Virgínia, onde 12 mil soldados da União foram exterminados quando tentavam atravessar um rio. Janeiro de 1863 foi o mês da "Mud March" (Marcha da Lama). Os 130 mil homens do Exército da União tentaram atravessar o mesmo rio e atolaram na lama pegajosa e sufocante produzida pelas chuvas de inverno.
   E maio foi o mês de Chancellorsville, também na Virgínia, perto do mesmo rio, onde a União perdeu outros 17 mil homens.
  Apesar de calejado pelos desastres, Lincoln empalideceu ao ouvir as notícias de sua última derrota. “Meu Deus, meu Deus", ele murmurava, andando freneticamente de um lado para o outro de sua sala. 'O que o país vai dizer? O que o país vai dizer?"
   No começo de março de 1863, o Norte e seu presidente atingiram o fundo do poço. Foi a hora da escuridão.


Na estrada para Gettysburg, no dia anterior ao da cerimônia de homenagem. Lincoln é, provavelmente, a figura de chapéu alto, perto do trem. Apesar de ninguém saber, ele estava doente, acometido por um tipo de varíola. Os eventos dos dias seguintes o esgotaram completamente.

Gettysburg
  Finalmente, boas notícias começaram a chegar pelo fim do mês, vindas do tenaz Grant. Como um terrier de dentes afiados, ele esteve fustigando as defesas do Sul durante meses; agora, afinal, ele começava a ter alguma sorte. No Nordeste, entretanto, a situação logo passou de mal a pior.
   Em junho, o general Lee invadiu a União novamente, marchando através de Maryland para dentro da Pensilvânia. A qualquer momento, agora, eles poderiam voltar e atacar Washington.
    Mas o ataque nunca veio.
  No dia 19 de julho de 1863, os exércitos das duas Américas se encontraram em uma cidade chamada Gettysburg e travaram a mais sangrenta batalha que a guerra jamais havia documentado. No fim, dois dias depois, mais de 40 mil homens haviam caído mortos ou feridos. Mas os rebeldes estavam se retirando porque a União vencera.
  Em 7 de julho, chegaram notícias de que Grant selara a vitória do Norte. Ele havia tomado Vícksburg, uma cidade do Mississípi sitiada desde maio. Todo o Deep South estava agora sob seu domínio.
   A sorte estava virando.

Relembrando a morte: hoje o Cemitério Nacional de Vicksburg.

Os mortos da União
  Hoje, o nome de Gettysburg é tão conhecido nos Estados Unidos quanto o de Trafalgar ou Waterloo. Mas o motivo dessa fama não se deve tanto à batalha ali travada, mas pelo que aconteceu depois.
   Em 19 de novembro de 1863, 150 mil pessoas se reuniram em uma colina, fora da cidade, local do cemitério aberto para os mortos da União. Em pé sob o sol brilhante, elas ouviram, por duas horas, o principal orador da cerimônia, um destacado estadista. Então, chegou a vez de Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos.
  Seu discurso demorou não duas horas, mas dois minutos. Alguns dos ouvintes ficaram surpresos -  foi tão curto, tão simples! Outros responderam àquela simplicidade com calorosos aplausos. E muitos não ouviram o que ele disse.
   As palavras que eles perderam são, agora, mundialmente famosas como as palavras do “Gettysburg Address". Com seu resumo do que significa um bom governo, elas se mantêm como um marco na história da democracia.

"Nós nos encontramos em um grande campo de batalha..."No palanque em Gettysburg, Abraham LIncoln fez o mais célebre discurso da história dos Estados Unidos. Era um dia de ventania e o presidente não pôde fazer sua voz ser ouvida por toda a multidão. Lincoln ficou deprimido pela pouco calorosa recepção que seu discurso pareceu ter tido.

Homenagem aos mortos
  “Há 87 anos", dizia o discurso de Lincoln, “nossos antepassados deram à luz, neste continente, a uma nova nação, concebida com liberdade e consagrada ao propósito de que todos os homens são criados iguais”.
   “Agora, nós estamos engajados em uma grande guerra civil, testando o quanto esta ou a outra nação assim concebida e consagrada pode suportar. Nós nos encontramos em um grande campo de batalha desta guerra. Nós viemos aqui para dedicar parte dele ao repouso eterno daqueles que, aqui, deram suas vidas para que a nação possa viver. É inteiramente justo e digno que nós façamos isso”.
   “Mas, em sentido amplo, nós não podemos dedicar, não podemos consagrar, nós não podemos santificar este chão. Os bravos homens, vivos e mortos, que lutaram aqui já o consagraram, muito além do que nosso pobre poder é capaz de acrescentar ou diminuir. O mundo pouco notará, por pouco tempo vai lembrar o que dissemos aqui, mas não poderá jamais esquecer o que eles fizeram aqui. A nós cabe consagrar nossa vida ao trabalho inacabado que eles, que lutaram aqui, tão nobremente adiantaram até este ponto”.
   “A nós cabe consagrar nossa vida à grande tarefa que restou a nossa frente - que dessas honrosas mortes nós retiremos devoção crescente à causa pela qual eles deram a mais completa medida de sua devoção - que esta grande nação, sob a proteção de Deus, tenha um novo nascimento da liberdade - e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não pereça na Terra."


Os negros alistados
   Em março de 1864, Grant foi promovido a general-chefe de todos os exércitos da União. Ele passou a controlar a guerra no Leste, deixando os comandos do Oeste para um de seus generais, William Sherman, um homem habilidoso e tenaz, como seu chefe.
   Por todo o verão, os dois comandantes exerceram uma inexorável pressão sobre a Confederação: atacando, perdendo, atacando, entrincheirando-se, atacando outra vez... Suas perdas eram espantosas, mas a União continuou enviando mais homens. E havia, agora, nova fonte de voluntários.
   Como as linhas da União se moveram para o Sul, milhares de escravos negros encontraram refúgio e liberdade atrás delas. E então se alistaram. Negros livres do Norte juntaram-se a eles. Antes do fim da guerra, quase 200 mil lutavam pela União, que lhes trouxera a Iiberdade. Lincoln estava certo ao pensar que poderia precisar deles. Agora, eles representavam a mais importante ajuda para o presidente vencer a guerra.

Escrava fugitiva, Harriet Tubman, trabalhando como agente secreta, ajudou a libertar trezentos outros escravos pelo "Underground Railroad" - nome dado ao sistema que os abolicionistas criaram para facilitar a fuga dos negros.

Tudo pela presidência
  Por enquanto, a guerra ainda parecia perdida. Apesar de Gettysburg, apesar de tudo os que Grant e Sherman realizaram, os confederados ainda não estavam batidos. Essa situação levava a crer que Lincoln perderia a presidência: as eleições se aproximavam outra vez, Lincoln perdera a popularidade e o Norte ansiava pela paz.
   Ele deveria ceder? Rasgar os planos de liberdade, declarar paz ao Sul, dizer-lhe que a escravidão poderia prosseguir sem obstáculos? A idéia o apavorava. Mas, ainda que somente por um horrível minuto, em 24 de agosto de 1864, ele considerou a questão com seriedade. No dia seguinte, Lincoln voltou a ser ele outra vez. Vetou qualquer plano de paz, mesmo arriscando perder as eleições.

Muitos sulistas recusaram tratar os soldados negros da União como prisioneiros de guerra. Quando as tropas confederadas capturaram este forte, em 1864, os prisioneiros negros foram queimados vivos ou fuzilados.

Sherman na Geórgia
   Quando tudo parecia perdido, a sorte voltou para o Norte de uma vez para sempre. Em 2 de setembro, Sherman tomou uma das maiores cidades do “Reino do Algodão": Atlanta, na Geórgia. De Iá, no mesmo ano, ele partiria para uma marcha de mais de 400 quilômetros em direção à costa que tornaria seu nome famoso para sempre. A “Marcha de Sherman para o Mar" cortou o território inimigo como se fosse uma espada, destruindo tudo o que encontrava em sua rota. Seu código era guerra total, travada tanto contra os soldados quanto contra a população civil. Antes do Natal daquele ano, uma enorme faixa de terra devastada restaria como testemunha de suas convicções.
   As notícias sobre a importante vitória em Atlanta eletrizaram o Norte. Aquela horrenda guerra poderia, quem sabe, ser finalmente ganha, pondo fim à carnificina. O Exército da União redobrou seus esforços e, nas eleições de 8 de Novembro, o próprio Abraham Lincoln conseguiria uma apertada vitória sobre seu oponente democrata.

O preço da guerra. Em 1865, devastações como esta podiam ser vistas em todos os lugares nos Estados do Sul e do Leste. A maior parte se deve ao general Sherman. Mas foram os confederados que destruíram as construções mostradas aqui, em sua capital, Richmond, na Virgínia.

A Guerra acabou
  Cinco meses depois, em 9 de abril de 1865, o general Lee, do sul, enfrentou o general Grant, do Norte, em um vilarejo chamado Appomattox Courthouse, na Virgínia, onde ocorrera a maioria das batalhas.
   Cercado e debilitado, o grande Sul rendeu-se, perguntando se seus homens poderiam manter seus cavalos para trabalhar a terra na primavera.
   Grant, então, comunicou às tropas que a guerra chegara ao fim. Os Estados Unidos da América estavam unidos outra vez.

O Exército confederado se rende em Appomattox Courthouse, em 9 de abril de 1865. Observado por Ulysses Grant (à direita), o grande general do Sul, Robert E. Lee, assina o documento de rendição em uma pequena mesa. A luta continuou por pouco tempo em alguns lugares, mas a guerra estava acabada.

É preciso ganhar a paz
   Delirando de alegria, Washington e o Norte comemoraram a vitória. Bandas e sinos tocaram e a população comprimia-se nas ruas, brindando a União e o presidente. Dentro da Casa Branca, Lincoln estava mais preocupado do que nunca. Eles ganharam a guerra. Agora, de algum modo, teriam que conquistar a paz e reparar os estragos da selvageria da guerra. E mais: persuadir de uma vez os rebeldes a aceitar completamente uma nova forma de vida, sem o trabalho dos escravos.
   Uma tarefa assustadora, mas Lincoln estava determinado a “conquistar a paz pacificamente", como afirmou; “com rancor, não, mas com caridade para todos”.

“Nosso Primo Americano"
   Poucos dias depois era 14 de abril: Sexta-feira da Paixão, a sexta-feira que precede a Páscoa dos cristãos. Mas, para Lincoln, agora o arquiteto da reconstrução do país, era um dia de trabalho como todos os outros -  encontros, decisões, assinaturas.
    No final da tarde, ele tomou a carruagem com sua esposa, Mary, e atravessou Washington, como sempre fazia. Estavam planejando sair mais tarde, também, para assistir à comédia Nosso Primo Americano, no Teatro Ford.
   Logo depois das oito, Lincoln e Mary entraram na carruagem outra vez e começaram a atravessar as ruas escuras e nevoentas. Pegaram dois amigos no caminho e chegaram depois do início da peça, mas sua entrada não passou despercebida. Todas as pessoas se levantaram e aplaudiram o presidente.

O assassinato de Lincoln, em 14 de abril de 1865. Segurando um punhal na mão esquerda, e com o revólver na direita, John Wilkes Booth disparou um tiro na cabeça do presidente. Ninguém viu, nem ouviu o assassino entrar no camarote. O guarda-costas de Lincoln havia abandonado o posto pouco antes, Apesar de ter fugido, Booth foi capturado e morto poucas semanas depois.

Um tiro na terceiro ato
  Do lado de fora do camarote, o homem da segurança do presidente ficou de guarda durante algum tempo. Então, inacreditavelmente ele se afastou. Enquanto isso, a peça se tornava cada vez mais engraçada. Corria o terceiro ato e todas as atenções se concentravam no palco. De repente, ouviu-se um tiro. Por um segundo, todos emudeceram, ninguém se movia, falava ou respirava. Então, sucessivos gritos partiram do camarote presidencial.
   Incrédulas e atônitas, as pessoas não se moviam. Um homem surgiu na ponta do camarote, com um punhal na mão. Aos gritos, apunhalou um dos amigos de Lincoln. Depois, deu um salto, atirando-se sobre o palco, e, cambaleando, desapareceu de vista.
   Todos os olhos se voltaram para o camarote, onde três pessoas, gritando, se inclinavam sobre Lincoln. O presidente dos Estados Unidos estava caído, afundado e imóvel em sua poltrona. Inconsciente, com uma bala assassina no cérebro, Abraham Lincoln estava morrendo.

Em 21 de abril de 1865, americanos de todo o Norte tomaram as ruas para homenagear o presidente morto. O caixão de Lincoln foi carregado de Washington a Springfield, onde ele repousa para sempre.

A morte do presidente
  As nove horas seguintes foram tenebrosas. O público do teatro havia corrido em pânico. Como o assassino que escapara com facilidade, um médico do Exército irrompeu no camarote oficial e beijou o presidente. Então, Lincoln foi carregado para uma casa, do outro lado da rua, e colocado em uma cama. Mary, quase enlouquecida com o choque e a aflição, veio para junto dele, como depois, também, o filho mais velho, Robert, soldado do comando do general Grant. Quando a notícia correu Washington, vieram amigos, médicos e estadistas.
  O assassino foi reconhecido por várias pessoas: um ator chamado John Wilkes Booth. Silenciosamente, ele entrou no camarote, aproximou-se por trás do absorto presidente e deu um tiro em sua cabeça.
  Booth era uma pessoa conhecida, que amava o Sul e odiava Lincoln. Antes de puxar o gatilho ele gritou para o presidente: “Assim morrem todos os tiranos...”
  Rapidamente, Washjngton foi colocada sob lei marcial, e o vice-presidente, Andrew Johnson, convocado a assumir o comando do país. Fora da casa onde o presidente agonizava, uma multidão angustiada aguardava notícias.
   Às 7h22 da manhã seguinte, 15 de abril de 1865, morria Abraham Lincoln. Ele foi o primeiro, mas não o último, presidente dos Estados Unidos a ser assassinado.

A décima terceira emenda
  Quando Lincoln foi assassinado, sua proclamação de 1863 e os exércitos da União já haviam levado a liberdade para 3 milhões e meio de escravos E, enquanto viveu, o presidente fez seu plano de emancipação dar um grande salto à frente.
   Ele sabia muito bem que a proclamação, decretada no tempo da guerra, poderia ser subvertida. Somente foram libertados os negros dos Estados rebeldes. Então, logo depois da reeleição, ele requereu ao Congresso a aprovação de uma nova lei de alcance geral - uma emenda na Constituição que proibiria a escravidão em todos os lugares dos Estados Unidos.
   Em janeiro de 1865, o Congresso concordou com sua proposta. Por maioria de votos, a Constituição recebeu sua décima terceira emenda: “Nem escravidão nem servidão involuntária, exceto como punição por crime, a respeito do que a parte interessada deverá ter plena convicção, poderão existir dentro dos Estados Unidos...”
   Quando a emenda formalmente se transformou em lei, tornou livres todos os escravos nos Estados Unidos, em todos os lugares.

Legalmente livre - mas ainda oprimido. No final dos anos 1860, os negros americanos eram, em teoria, iguais aos brancos. Mas. tanto no Sul quanto no Norte, muitos americanos brancos foram implacáveis em sua oposição à igualdade dos negros. Como é mostrado no cartum, os negros sucumbiam a três poderosos grupos: os industriais do Norte (à direita), os fazendeiros do Sul (no meio, com o chicote no bolso) e os trabalhadores das indústrias do Norte (à esquerda). Sob suas botas, um negro, veterano da guerra, em vão tenta se levantar. O bottom na jaqueta do fazendeiro do Sul celebra o massacre das tropas negras no forte Pillow.

O direito de votar
   Aquele não seria o fim dos planos de Lincoln. Antes da Guerra Civil, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidira que, mesmo livre, o negro não poderia tornar-se cidadão americano. Mas Lincoln e a guerra, juntos, desmentiram a Suprema Corte. Seu principal objetivo era, então, proporcionar aos negros a cidadania total dentro da sociedade americana: na vida pública, nas escolas e com todas as outras oportunidades para progredir.
    Uma chave importante para o reconhecimento como cidadão era o voto. Antes da guerra, somente três Estados do Norte haviam permitido aos negros votar em suas eleições. Agora, depois de quatro anos de derramamento de sangue, era tristemente óbvio o que o antigo dono de escravos do Sul pensaria de tal proposta. Muita gente do partido de Lincoln também odiava a idéia, mas os radicais insistiam com Lincoln para que apressasse o andamento do plano.
  Acuado entre esses conflitos de interesses, Lincoln estava ainda lutando para encontrar soluções quando foi assassinado.
  Os sucessores do presidente, no entanto, fizeram do direito do negro ao voto uma condição para levar os Estados rebeldes de volta à União. Em 1869, o Congresso aprovou outra crucial emenda - a décima quinta - para a Constituição: "O direito de votar dos cidadãos dos Estados Unidos não poderá ser negado ou reduzido - pelos Estados Unidos ou por qualquer Estado - por causa de raça, cor ou condição anterior de servidão".
  Então, bem próximo ao final da década de 1860, a escravidão foi abolida nos Estados Unidos da América. Negros e brancos passaram a ter os mesmos direitos, por força da lei. Aquela, finalmente, era a lei. No entanto, por todo o Sul continuou a ser intencional e escandalosamente desobedecida.
  Sim. A Confederação fora derrotada. Os escravos com os quais sua riqueza foi construída eram, agora, cidadãos livres: todos eles eleitores e membros da sociedade americana.
   Mas nunca - nunca enquanto vivesse - a maioria dos brancos confederados aceitaria a idéia de igualdade entre brancos e negros. E, quando o presidente morreu, os brancos sentiram que poderiam frustrar o espírito das leis de Lincoln com outras leis; as deles.
   A guerra e a emancipação dos negros aniquilaram o antigo modelo do Sul escravista. Mas a guerra mal tinha acabado e os Estados sulistas já começavam a preparar um novo código para submeter os negros.
  Os “Black Codes" determinavam que os antigos escravos ainda deveriam tratar seus patrões por "master" (senhor) e "mistress" (senhora), exatamente como faziam antes. Na Carolina do Sul, eles somente poderiam exercer as mesmas funções de antes da guerra: lavradores, babás e cozinheiras. No Missíssípi, só poderiam viajar em vagões de trem separados dos brancos. Na Flórida, a divisão se estenderia até mesmo à questão religiosa: negros não poderiam rezar em igrejas de brancos. Uma pessoa negra que tentasse se juntar aos brancos na oração recebia a punição tradicional do Sul: chicote.
  Regras como essas, destinadas a manter os negros longe dos brancos, eram conhecidas como ' 'Leis de Jim Crow' ', nome do personagem negro de uma canção popular na década de 1850. Quando as notícias sobre tais leis chegaram ao Norte, os republicanos se horrorizaram. A ira dos nortistas impulsionou a aprovação de leis que, formalmente, dariam cidadania aos negros.
  Quando a décima quinta emenda constitucional foi aprovada, os negros dos Estados Unidos festejaram o triunfo. Mas a comemoração durou pouco tempo. O Sul se encarregou disso, pois tinha legisladores próprios, habilitados em arquitetar outras leis ' “Jim Crow". Havia uma rede social de nós bem atados, na qual a lealdade entre os brancos reinava absoluta. E havia a Ku Klux Klan: a sociedade não muito secreta que sustentava o domínio dos brancos, com puro terror.
  Se um negro ousasse exercer seus direitos legais, recebia a visita dos homens encapuzados da Klan, carregando chicotes, baldes de alcatrão ou - o mais sinistro de tudo - uma corda.
  Uma vítima que conseguisse escapar coberta com penas e alcatrão fugiria rapidamente, tão brutal era esse tipo de castigo. A corda significava enforcamento numa viga ou árvore, o que estivesse mais próximo.
  Em desespero, os negros do Sul viam perderem-se pouco a pouco todos os benefícios que Lincoln e a guerra trouxeram para eles. O direito de votar, o de receber salário, o de ser um membro respeitado da comunidade: que direitos eram esses em uma sociedade determinada a mantê-los separados, aterrorizados e pobres?
   Muitos negros que tomaram o rumo do Norte logo descobririam que a situação era apenas pouco melhor do que no Sul. Sindicatos não os admitiam. Obrigados a aceitar trabalhos e salários inferiores, viviam nas áreas mais miseráveis das cidades. No começo do século 20, a Ku Klux Klan foi atormentar os negros no Norte, levando sua terrível fama. Entre 1880 e 1919, a Klux linchou 3 mil negros que se atreveram a insistir no direito de igualdade.
  Mas, por mais impiedosa que a situação ainda parecesse, as mudanças estavam agora a caminho. Poderosas organizações negras emergiam, como a Associação Nacional para o Progresso do Povo Negro, prometendo terminar com êxito a luta pela real liberdade dos negros americanos. Líderes negros surgiam e, à medida que o século avançava, seu valor, posição e poder tendiam a crescer.


“Eu tenho um sonho"
  Em 28 de agosto de 1963, 250 mil pessoas saíram em marcha, em Washington, para comemorar o centenário da emancipação. Liderados pelo grande defensor dos direitos civis dos negros, Martin Luther King, elas se reuniram ao redor do memorial construído para o homem que as libertara.
   Os cartazes que carregavam revelavam suas reivindicações. “Nós pedimos em 1963 a liberdade prometida em 1863", dizia um deles. E outro: “Um século de divida a ser paga".
   Luther Kíng faria o discurso de sua vida, que, como o "Gettysburg Address", também se tornou histórico.
   “Eu tenho um sonho...", disse Luther King. “Eu tenho um sonho que, um dia, esta nação se levantará e levará até o fim o real significado deste princípio: ‘Eu carrego essas verdades por ser evidente que todos os homens são criados iguais’”.
  “Eu tenho um sonho que, um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos donos de escravos estarão prontos para se sentarem juntos à mesa da fraternidade”.
   “Eu tenho um sonho que, um dia, mesmo o Estado do Mississípi será transformado em um oásis de liberdade e justiça”.
   “Eu tenho um sonho que meus quatro pequenos filhos um dia viverão não julgados pela cor da pele, mas pelo conteúdo do caráter."
  Cinco anos depois, Luther King seria morto; outra vítima de uma bala assassina. Mas, desde então, seu sonho vem ficando mais perto da realização.
   O movimento continuaria: mais e mais negros seriam eleitos para cargos públicos. Mais e mais conseguiriam passar pelas barreiras que os impediam de ter um trabalho, uma boa casa e uma vida digna.
   Contudo, ao mesmo tempo, os negros americanos continuam mais pobres que os brancos. Em 1990, durante a realização de uma reunião de cúpula internacional em Houston, Texas, a Ku Klux Klan desfilou ostensivamente, com seus tenebrosos slogans e sinistros uniformes. Acima de suas cabeças tremulava a bandeira “Stars and Bars" (Estrelas e Listras), que uma vez levou o Sul à Guerra Civil.
   Ainda hoje, a memória de Abraham Lincoln aguarda a conclusão da tarefa suprema que ele iniciou há mais de um século.



Datas Importantes

1776 Treze colônias na América do Norte declaram independência da Inglaterra e formam os Estados Unidos da América.

1809 Em 12 de fevereiro, nasce Abraham Lincoln, em Kentucky, numa cabana de madeira.

1816 A família Lincoln muda-se para Indiana.

1818 Morre a mãe de Lincoln. No ano seguinte seu pai se casa novamente.

1820 O Compromisso de Missouri estabelece o equilíbrio entre os Estados livres e os escravistas e proíbe a expansão da     escravidão no noroeste dos Estados Unidos.

1831 Lincoln deixa a casa do pai para sempre e se estabelece em New Salem, Illinois.

1834 Lincoln é eleito deputado estadual em Illinois.

1837 Lincoln se habilita advogado, com 28 anos, e muda-se para a capital de Illinoís, Springfield.

1842 Lincoln casa-se com Mary Ann Todd. O casal teve quatro filhos, dos quais somente o mais velho sobreviveria até a vida adulta.

1845 O Texas se liga à União dos Estados como Estado escravista.

1846 Lincoln é eleito para o Congresso. Seu mandato termina em 1849.

1850 Por intermédio do Ato de Compromisso de 1850, a Califórnia ingressa na União como Estado livre, a lei contra escravos fugitivos é aprovada e o Compromisso de Missouri perde o valor.

1851 É publicado A Cabana do Pai Tomás, livro que ataca o sistema de escravidão. Um ano depois, com a repercussão do livro, aumenta a pressão pela abolição nos Estados Unidos.

1854 É aprovado o Ato de Kansas-Nebraska, permitindo que a população dos novos territórios decida se quer ou não a prática do sistema de escravidão. O Partido Republicano nasce para combater a expansão da escravidão.

1856 Lincoln se filia ao Partido Republicano.

1860 Em maio, os republicanos escolhem Lincoln candidato do partido para a eleição presidencial. Em novembro, Lincoln, com 51 anos, é eleito presidente dos Estados Unidos. O Estado escravista da Carolina do Sul se desliga da União.

1861 Em janeiro e fevereiro, seis outros Estados se rebelam: Mississípi, Flórída, Alabama, Louisiana, Geórgia e Texas. Passam a formar os Estados Confederados da América. Em abril, as tropas confederadas atacam o forte Sumter, na Carolina do Sul, começando a Guerra Civil. Nas semanas seguintes, quatro outros Estados escravistas se separam da União e se juntam à Confederação. Em julho acontece a primeira batalha de Bull Run, na Virgínia, que acabou em derrota para a União.

1862 Em abril, a União vence a batalha de Shiloh, no Tennessee, mas perde milhares de soldados. Para ajudar a salvar a União, em julho, Lincoln decide abolir a escravidão nos Estados rebeldes. E, no mês de agosto, a União é derrotada na segunda batalha de Bull Run. As tropas confederadas invadem o território da União no mês de setembro, mas saem derrotadas na batalha de Antietam, em Maryland. Estimulado pelo sucesso, Lincoln divulga a versão provisória de sua Proclamação da Emancipação. Em dezembro, a União é derrotada em Fredericksburg, Virgínia.

1863 No primeiro dia de janeiro, Lincoln assina a Proclamação da Emancipação, libertando todos os escravos dos Estados da Confederação. Maio é o mês de outra esmagadora derrota para a União em ChancellorsvilIe, Virgínia. Em junho, a Confederação invade o território da União outra vez. De 1 a 3 de julho, a batalha de Gettysburg, na Pensilvânia, traz a vitória para a União. No dia 4, o general da União, Ulysses S. Grant, recebe a rendição de Vicksburg, Missíssípi. Em 19 de novembro, Lincoln faz seu mais  famoso discurso, o “Gettysburg Address", em uma homenagem às vítimas da guerra, no cemitério de Gettysburg.

1864 No dia 8 de novembro, Lincoln é reeleito presidente dos Estados Unidos. Em 31 de janeiro, o Congresso aprova a décima terceira emenda, declarando ilegal a escravidão em todos os lugares dos Estados Unidos. No dia 9 de abril, o general Robert E. Lee, da Confederação, assina a rendição - e a guerra acaba. Em 14 de abril, Lincoln é baleado na cabeça enquanto assiste a uma peça no Teatro Ford, em Washington. Morre no dia l5, com 56 anos de idade.

1869 O Congresso aprova a décima quinta emenda, concedendo o direito de voto a todos os cidadãos americanos.






ABRAHAM LINCOLN é um volume da Série Personagens que mudaram o mundo - Os grandes humanistas
Autor deste volume: Anna Sproule
Editor da obra original: Helen Exley
Tradução: Matilde Leone
Edição: Esníder Pizzo
Copyright Anna Sproule, 1992 - Copyright Exley Publications, 1992
Copyright 1993 by Editora Globo S.A. para a língua portuguesa, em território brasileiro.









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