domingo, 8 de dezembro de 2013

OS PRIMEIROS CATEQUISTAS DO CEARÁ

A 20 de janeiro de 1607, num pequeno barco que carregava sal de Mossoró para Pernambuco, embarcaram para as terras do Ceará, que, pouco antes, Pero Coelho de Sousa explorara, tendo fim trágico, dois jesuítas portugueses: os padres Francisco Pinto e Luís Figueira, ambos de grandes virtudes pessoais e incansável zelo apostólico. Por sugestão do governo colonial, a conquista espiritual vinha ensaiar suas forças numa terra que resistira à conquista das armas.

Das salinas de Mossoró, os dois sacerdotes, acompanhados de alguns portugueses e de muitos índios cristianizados, caminharam a pé ao longo da costa ate as praias do Mucuripe e do Ceará, onde se estabeleceram, depois de fazerem pazes com um morubixaba de grande prestigio na região, o famoso chefe Amanaí, que os cronistas chamam, traduzindo-lhe o nome em vernáculo, Algodão. Pregando habilmente a religião, converteram inúmeros selvagens e, auxiliados por eles, fundaram no seio das tribos da redondeza, que acampavam à margem de lagoas ou na aba das serras próximas, quatro aldeias ou reduções, que ainda hoje existem na toponímia local: Pitaguari, na Aratanha, Caucaia, Paupina e Parangaba, vilas antigas e agora subúrbios de Fortaleza.

Quando o marquês de Pombal expulsou os jesuítas do Reino e seus domínios ultramarinos, ordenou a mudança dos nomes tupis dessas velhas aldeias indígenas para denominações lusas. Caucaia foi crismada em Soure, Paupina em Messejana, Parangaba em Arronches e Pitaguari em Santo Antônio. No decurso do tempo, os topônimos Soure e Messejana firmaram-se, mas o de Arronches caiu e o de Santo Antônio se tornou Santo Antônio do Pitaguari.

Nessas aldeias, os padres Pinto e Figueira reuniram os restos das tribos dos Caucaias, Paupinas e Parangabas, todas elas da nação Potiguara, que tinham sido arrastadas e desfalcadas nos vaivéns da conquista de Pero Coelho de Sousa, de 1603 a 1606. Findos tão ásperos trabalhos, deixando essas reduções a funcionar normalmente, os dois jesuítas continuaram a marcha, litoral cearense afora, ate o Paramirim, hoje Parnamirim, de onde cortaram o sertão rumo a Serra Grande ou Ibiapaba, que foram alcançar na região habitada pelos índios Ipus, onde existe a cidade que lhes conserva o nome. Depois de os evangelizar, subiram a serrania e tomaram contato com os Tabajaras, que os apelidaram abaúnas, homens pretos. Apresentou-se-lhes, dificílima tarefa. Encontravam-se no seio da maior taba daquelas paragens, espécie de capital das nações indígenas aliadas aos franceses que se haviam oposto à avançada de Pero Coelho de Sousa em 1604 e sido vencidas. Era ali a Ararema, a Grande Taba a que se refere Claudio de Abbéville.

A indiada, ressabiada ainda pela derrota, recebeu-os com grande desconfiança. Que desejavam esses homens vestidos de preto e de tão mansas palavras que lhe falavam dum Deus desconhecido, cuja brandura, sacrifício e misericórdia dificilmente impressionariam suas índoles batalhadoras? Que vinham fazer em seguimento àqueles arcabuzeiros terríveis que os haviam antes metralhado, aprisionando e escravizando grande número de seus companheiros?

Alguns franceses escapos a esses combates da serra, quando ali tinham chegado os portugueses de Pero Coelho de Sousa, não se haviam retirado para o Maranhão com seu chefe, o aventureiro Adolfo Montbille, mas permaneciam no meio do gentio e o incitavam às escondidas, manhosamente, contra os catequistas. Todavia, estes conseguiram com ingentes esforços erigir um nicho ou capela, onde diziam missa, pregavam e batizavam.

A 11 de janeiro de 1608, justamente na hora da missa, foram inopinadamente atacados por um bando feroz de Tacarijus, índios tributários dos Tabajaras, que frecharam o padre Pinto e o acabaram de matar a golpes de tacape, ao pé do altar. O padre Figueira conseguiu fugir, salvando-se milagrosamente, escondido nos matos durante longos dias. Ajudado por alguns Tabajaras ou Ipus amigos, varou os sertões inóspitos a custa de grandes sacrifícios e alcançou as aldeias do litoral cearense, onde o chefe Algodão o acolheu e confortou. A noticia dos sucessos da Ibiapaba fora levada ao governador Diogo de Campos Moreno, que mandou um navio a enseada do Mucuripe especialmente para conduzir o padre Figueira a Pernambuco.

Passando o furor dos Tacarijus assassinos, os índios mansos trouxeram numa rede para a aldeia da Paupina, atual Messejana, o corpo martirizado do padre Pinto, ali o sepultando piedosamente. Na vida e na morte, cercou-o a veneração filial dos Potiguaras. Chamavam-lhe carinhosamente Pai Pina e imploravam sua intervenção milagrosa nas moléstias e enfermidades. Rogavam-lhe mesmo que fizesse chover, quando a seca ameaçava torrar-lhes as roças. Era o seu santo e o seu patrono no Céu. Juravam mesmo por ele.

Os próprios Tabajaras, entre os quais perecera por sua cumplicidade com os Tacajirus tributários, insuflados pelos franceses, guardaram a memória da sua pregação e da sua bondade. Deles se transmitiu aos mestiços da região de Crateús, do Ipu e do rio Poti a lenda de que um litóglifo ou inscrição rupestre existente numa laje da Ibiapaba, com a forma de pé humano, é a pegada indelével do grande missionário. Assim, a lembrança do jesuíta ficou marcada para sempre nas páginas iniciais da história do Brasil.

A morte do companheiro e a terrível provação por que passara no Ceará não entibiaram no padre Luís Figueira o zelo apostólico. Continuou a salvar para Nosso Senhor Jesus Cristo as almas primitivas da indiada bárbara. Escreveu uma gramática da língua tupi, a fim de facilitar a ação de outros catequistas entre os selvagens, e procurou atuar em cenário mais vasto do que o Ceará, penetrando no seio das nações selvagens da Amazônia. Vinte nove anos depois de ter sido o padre Francisco Pinto trucidado pelos Tacarijus da Ibiapaba, em 1637, o padre Luís Figueira encontrou idêntica morte, ad majorem Dei gloriam. No famoso naufrágio de Pedro de Albuquerque, no rio das Amazonas, foi frechado e acabado a tacape pelos Aroans.

Os jesuítas marcaram a sua passagem pelas ínvias terras brasileiras, nos Séculos XVI e XVII, com o próprio sangue. A Nação deve um grande e expressivo monumento aos abaúnas que lançaram as fecundas sementes de sua cultura nas terras virgens, entre as tribos bárbaras.







- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, em 2004, de onde foi copiado este capítulo, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.