domingo, 16 de novembro de 2014

LIBERTAÇÃO DA AMÉRICA LATINA

     
Sob a bandeira do Chile recém-independente, um casal dança em frente a um botequim dos Andes nesta ilustração de Viagens pelo Chile, que Peter Schmidtmeyer publicou em 1924. Ex-colônia da Espanha e país predominantemente rural, o Chile foi apenas um dos muitos estados das Américas do Sul e Central a conquistar a independência na primeira metade do século XIX. A sangrenta batalha pela liberdade nem sempre produziu a felicidade que estas figuras podem sugerir; para a maior parte da América Latina, o preço da liberdade foi a divisão e a ditadura.

     No verão de 1805, um jovem aristocrata venezuelano, em viagem de turismo pela Itália com seu tutor, subiu ao Monte Sacro e contemplou, pensativo, os monumentos antigos de Roma. Naquele morro, relembrou ele, mais de dois mil anos antes, plebeus oprimidos tinham se reunido pela primeira vez em sua luta vitoriosa para arrancar igualdade política e justiça econômica de uma minoria de patrícios arrogantes. Tomado pela emoção, ele ajoelhou-se e, segurando as mãos do tutor, jurou libertar seu próprio país da opressão do domínio espanhol. Simón Bolívar devotou o resto de sua vida a cumprir esse juramento.
     Vinte anos depois, em outubro de 1825, ele escalou as encostas tremendas do monte Potosí e sobre seu pico desolado desfraldou as bandeiras de Colômbia, Peru, Chile e Argentina. Não mais um aspirante a rebelde, ele era o general Bolívar, cidadão mais famoso da América do Sul, conhecido em todo o continente como o Libertador. Presidente da Colômbia e ditador do Peru, inspecionava agora as montanhas da Bolívia, país batizado em sua honra. Seu sonho se realizara. A Espanha perdera finalmente o controle do continente sul-americano. O regime colonial dera lugar a repúblicas independentes cujas constituições prometiam liberdade e prosperidade. “Em quinze anos de luta terrível e contínua”, anunciou Bolívar para seus auxiliares reunidos no alto do Potosí, ”destruímos o edifício que a tirania ergueu durante três séculos de usurpação e violência ininterrupta”.
     Os cinco anos seguintes iriam trair os ideais e sacrifícios das campanhas de Bolívar. Uma a uma, as novas repúblicas da América Latina cairiam na desunião e violência, enquanto os novos déspotas do Novo Mundo tomariam o lugar do jugo imperial da Espanha. Desiludido e desacreditado, Bolívar foi obrigado a assistir à queda do edifício que erguera com tanto ardor. “Mudar um mundo está além dos poderes de um pobre homem”, admitiu finalmente. Mas nunca perdeu a dimensão de suas próprias realizações. “Meu nome já pertence à história e lá eu terei justiça”, escreveu desafiador, pouco antes de morrer.

     Na época do nascimento de Simón Bolívar, em 1783, o imenso império americano da Espanha tinha mais de 250 anos de existência. Desde que as sociedades indígenas foram destruídas pelos conquistadores no início do século XVI, os espanhóis tinham tomado conta de boa parte da América do Sul. Somente o Brasil, colônia de Portugal, estava fora da jurisdição da Espanha.
     Distante quatro semanas de viagem da metrópole, esse vasto território era governado em nome do monarca espanhol por quatro vice-reis que, por sua vez, delegavam a administração regional a uma série de capitães-gerais, governadores e funcionários menores. No sudeste, ficava o vice-reinado do Rio da Prata, compreendendo os atuais Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia.

Em 1808, quase toda a América do Sul e Central, com exceção do Brasil e de alguns pequenos territórios pertencentes a França, Holanda e Inglaterra, era governada pelo rei da Espanha através de um sistema de vice-reinados (mapa menor). Porém, as guerras napoleônicas desestabilizaram os países ibéricos, dando às suas colônias a chance de conquistar a liberdade; em 1825, Espanha e Portugal já não mais controlavam território algum no continente americano. Durante algum tempo, fizeram-se tentativas de unir os novos estados independentes; o herói revolucionário Simón Bolívar reuniu Venezuela, Equador e Nova Granada sob sua liderança. Em 1850, no entanto, nada mais restava desses esforços. Como mostra o mapa principal, a América Latina estava dividida em países separados que mantiveram, em grande parte, as mesmas fronteiras até hoje.

     O vice-reinado do Peru, do lado do Pacífico, incluía o moderno Peru e a maior parte do Chile de hoje, territórios separados e já virtualmente independentes um do outro. A Nova Granada ocupava o norte do continente, abrangendo Venezuela, Colômbia, Equador e Panamá. Mais ao norte, o vice-reinado de Nova Espanha compreendia a América Central, México e quase todo o oeste dos Estados Unidos. No Caribe, Cuba, Porto Rico e Santo Domingo - atual República Dominicana - completavam as possessões americanas da Espanha.
     Desde o início, a metrópole considerara seu império do Novo Mundo como uma fonte de renda e de matérias-primas. Os metais preciosos, que tinham originalmente atraído os conquistadores, continuavam a enriquecer a corte espanhola. Em 1800, noventa por cento da prata do mundo vinha das minas do México e da região do Alto Peru - hoje Bolívia. Mas a agricultura constituía a maior parte das exportações da América espanhola. Enormes propriedades, ou haciendas da Nova Granada plantavam café, tabaco e cacau, pelos quais a Europa desenvolvera um apetite insaciável; o açúcar das plantações do Caribe abastecia o paladar cada vez mais adocicado do Velho Mundo; nas vastas pastagens da Argentina e Venezuela, rebanhos de gado selvagem eram uma fonte lucrativa de couros para exportação.
     A América espanhola não era estimulada a lucrar ela mesma com nenhuma dessas matérias-primas. Com efeito, só tinha permissão para comerciar com a Espanha e, na Espanha, só com o porto de Cádiz. A política da metrópole era manter suas colônias em estado de perpétua dependência econômica, mercados cativos para suas indústrias manufatureiras. Quando os comerciantes de Cádiz reclamaram que as vendas de vinho espanhol estavam caindo nas colônias do norte, por exemplo, os vinhedos de Nova Granada foram arrancados para evitar que vinhos baratos locais tomassem o lugar do produto importado, mais caro.
     Acontece que a Espanha precisava desesperadamente da receita do Novo Mundo. Ela só conseguia manter sua posição entre as potências europeias graças ao fluxo constante de metais preciosos e matérias-primas de suas colônias. Com os Bourbon, que ascenderam ao trono espanhol em 1700, foram feitos esforços para aumentar a renda mediante o aperto do controle sobre as possessões. Novas leis subiram o imposto sobre consumo e reforçaram os monopólios estatais de produtos como tabaco, bebidas e sal. Os poderes dos cabildos, conselhos municipais que constituíam a única forma de representação permitida aos cidadãos das colônias, foram restringidos e funcionários assalariados chegaram da Espanha para supervisionar os governos provinciais. Quando as milícias locais deram sinais de que talvez se rebelassem, designaram-se oficiais espanhóis para preencher os postos mais altos.
     Enquanto aumentava o controle sobre a burocracia colonial, o regime dos Bourbon liberalizava a economia. Durante a segunda metade do século XVIII, diminuíram as tarifas sobre importações e exportações e aboliram-se antigas restrições comerciais. Embora ainda estivessem proibidos de negociar diretamente com países estrangeiros, os mercadores da colônia ganharam o direito de comerciar com qualquer porto espanhol, bem como com outras colônias espanholas.
     Porém, as reformas chegaram tarde demais. Essas tentativas de modernização e centralização apenas estimularam uma exigência crescente de independência. Até mesmo a nova liberdade de comércio foi pouca para satisfazer as colônias. Para alguns comerciantes latino-americanos, as reformas não tinham avançado o bastante; outros arruinaram-se com a entrada de artigos importados baratos. Tributos pesados e burocratas espanhóis intrometidos ofendiam a quase todos. O ressentimento em relação ao domínio europeu crescia e aumentavam paulatinamente as tensões sociais e raciais que caracterizavam a América do Sul desde a conquista. Já estavam liberadas as forças que mergulhariam a região na rebelião e na guerra civil.


     Agudamente polarizada entre espanhóis e americanos, entre raças e culturas, entre ricos e pobres, a sociedade da América espanhola estava há muito tempo à beira da explosão. Em 1800, quase dezessete milhões de habitantes viviam nas colônias espanholas; destes, apenas três milhões eram brancos. No topo desse grupo racial mais privilegiado estavam os peninsulares, nativos da Espanha, que não passavam de 40 mil. O resto dos brancos eram criollos nascidos no Novo Mundo. Embora nem todos fossem ricos, os criollos estavam em muito melhor situação que os de raça mesclada e não-brancos, que constituíam a massa da população sul-americana. Eram os mestiços, de sangue branco e indígena, e os mulatos, mistura em proporções variadas das raças europeia e africana.
     De sua posição de superioridade, os brancos referiam-se a todos os não-brancos livres como pardos. Dentro desse grupo, porém, havia vários graus de brancura. Gente de pele clara de raça mista empenhava-se em estabelecer legalmente sua cor branca. O que estava em questão era mais do que orgulho: a classificação étnica afetava toda a vida da pessoa. Os pardos não tinham acesso à educação e a cargos públicos; um pardo podia ser proibido de usar sombrinha, sua esposa, de usar jóias, seda ou veludo; em algumas regiões, até mesmo os assentos nas igrejas eram segregados.
     Perto do fundo da escala social estavam os índios e negros livres, bem como os zambos, de sangue misto negro e indígena. Por fim, vinham os trabalhadores indígenas e escravos africanos, cujo número variava de região para região. A maioria, de índios, não era classificada oficialmente como escrava, mas seus valiosos serviços em minas, fazendas e obras públicas eram garantidos por vários meios - inclusive induzi-los a dívidas que nem uma vida inteira de trabalho poderia pagar. Desprezadas e oprimidas, as classes escravizadas de negros e índios forneciam o alicerce sobre o qual repousavam a riqueza e os privilégios da Espanha e de suas colônias.

Uma gravura do livro de Peter Schmidtmeyer apresenta a laboriosa atividade de refinar o minério de prata nos Andes. O minério bruto passa por covas cheias de água, de onde o sedimento com o metal é removido e pisado com uma mistura de sal, esterco e mercúrio (no centro). O amálgama é depois lavado (à direita) e aquecido para purificar a prata. Durante séculos, a enorme riqueza mineral da América do Sul enriqueceu Espanha e Portugal. Em 1800, as montanhas hispano-americanas produziam praticamente toda a prata do mundo. As guerras de independência, no entanto, levaram a uma fuga de mão-de-obra e capital da qual a indústria de mineração latino-americana só se recuperaria no final do século XIX.

     A política espoliativa da metrópole provocou rebeliões violentas, embora espasmódicas. Nos dois primeiros séculos de jugo colonial, as revoltas de índios e escravos eram comuns. Mas as reformas dos Bourbon provocaram protestos ainda maiores. Em 1780, Tupac Amaru, um índio peruano que se dizia descendente dos incas, provocou ondas de choques em toda a América do Sul com uma revolta que exigia o fim da opressão dos impostos. Porém, os 60 mil homens sem treinamento que responderam a seu chamado às armas não eram páreo para os exércitos comandados por experientes oficiais europeus.
     O levante foi esmagado. Feito prisioneiro, Tupac Amaru teve primeiramente que assistir à execução de sua família; depois, foi amarrado a quatro cavalos e esquartejado em público. Apesar dessa punição cruel e exemplar, o espírito de rebelião continuou a se espalhar escala social acima como uma peste. No inicio do século XIX, o contágio já tinha despertado ressentimentos adormecidos até mesmo entre os criollos abastados. O movimento rebelde encontrava assim seus lideres.
     Em todo o continente, os criollos constituíam a aristocracia da América do Sul. Possuíam grandes haciendas e levavam uma vida de conforto privilegiado sustentado por escravos. Seus filhos frequentavam escolas europeias; suas famílias moravam em capitais elegantes - Caracas, Lima, Buenos Aires -, comparáveis aos centros provinciais da Espanha no estilo de seus edifícios públicos e no esplendor de suas reuniões sociais. Tudo que o dinheiro podia comprar, os criollos tinham a liberdade de usufruir. Mas era-lhes negada a única coisa que satisfaria seu crescente senso de identidade: poder político. Com medo da deslealdade e preocupados em recompensar seus emigrantes, a Espanha assegurava-se de que os melhores postos administrativos, bem como as posições mais graduadas do exército e da Igreja, fossem para os peninsulares. A arrogância desses recém-chegados enfurecia a elite criolla. O naturalista alemão Alexander von Humboldt, que visitou a América do Sul no início do século XIX, comentou: “O europeu mais baixo, menos educado e inculto acredita-se superior aos brancos nascidos no Novo Mundo”.

Esta gravura de 1824 mostra a principal edificação de uma grande hacienda, ou propriedade rural. Embora mais trivial que o ouro ou a prata, a produção agrícola desses latifúndios compunha a maior parte das exportações da América Latina. A sede da fazenda não era apenas a mansão do senhor, mas também o local de preparação de mercadorias como carne e couro (à direita) para o mercado. Os proprietários desses latifúndios - em sua maioria de ascendência europeia - eram ao mesmo tempo comerciantes e fazendeiros, vendendo geralmente os produtos de suas terras em seus estabelecimentos urbanos. Lucravam também com as vendas na própria hacienda: os empregados eram obrigados a comprar suprimentos no armazém da propriedade, tal como o que aparece em primeiro plano, quase sempre a preços exorbirtantes.

     O sopro de revolução vindo do exterior despertou mais ainda as aspirações políticas do criollos. Não estavam eles na mesma situação de seus vizinhos norte-americanos, antes que se libertassem do jugo britânico em 1781? Não eram eles escravos de uma corte decadente e negligente, tal como os revolucionários franceses de 1789? Jovens criollos ambiciosos liam as obras de pensadores liberais europeus. Revolucionários incipientes trocavam volumes contrabandeados de autores como Voltaire, Jean Jacques Rousseau, Adam Smith e John Locke. Alguns pagaram caro por ousar pensar. Antonio Nariño, um jovem brilhante de Bogotá, tentou publicar uma versão em espanhol da Declaração dos Direitos do Homem, o credo da Revolução Francesa. Por esse ato de “traição” ficou preso durante dez anos.
     Os eventos na Europa ajudaram a acelerar os primeiros passos hesitantes da América espanhola em direção à independência. Em 1796, a Espanha aliou-se à França numa dispendiosa guerra contra a Inglaterra, provocando um bloqueio naval retaliativo que efetivamente a isolou de sua principal fonte de riqueza. Isso deixou as colônias livres para comerciar usando navios estrangeiros, um estado de independência econômica que jamais tinham gozado. O gosto dessa liberdade nunca seria esquecido.
     Livre comércio, liberdade de expressão, mais representação política: os gritos familiares dos movimentos revolucionários de todo o mundo começavam a ser ouvidos no continente. A maioria dos rebeldes novatos continuava fiel ao rei espanhol, enquanto pedia a queda de seu governo. Uns poucos, porém, argumentavam que a Espanha jamais toleraria uma América do Sul semi-independente e defendiam o rompimento com a metrópole. A independência era a única solução.
     Os ventos da revolução tinham começado a soprar no Caribe muito antes que os criollos entrassem num acordo sobre o que fazer. Em 1804, depois de anos de rebelião, a colônia francesa de Saint-Domingue conseguira a independência, tornando-se a República do Haiti. Liderada pelo ex-escravo Toussaint L'Ouverture, uma difícil aliança de escravos negros e mulatos expulsou um exército mandado por ninguém menos que Napoleão Bonaparte. Os nacionalistas hispano-americanos ficaram ao mesmo tempo animados e consternados. O que podia ser feito no Haiti, podia ser feito também na Venezuela ou no Peru. Mas a que custo? No Haiti, os rebeldes tinham expulsado todos os brancos. Muitos criollos hesitavam em se comprometer, com medo de desencadear as forças dos não-brancos que estavam abaixo deles. Um vulcão construído por eles mesmos poderia entrar em erupção.

Três mexicanos de classe alta exibem os trajes europeus que marcam sua ascendência espanhola.

     No entanto, os acontecimentos no sul do continente surpreenderam até mesmo os nacionalistas mais radicais. Sempre alerta para novos mercados, a Grã-Bretanha já via as colônias isoladas da Espanha pelo bloqueio como um útil acréscimo a seu império comercial em expansão. Em junho de 1806, uma força britânica do cabo da Boa Esperança entrou no rio da Prata e ocupou Buenos Aires. Mas enquanto o vice-rei fugia e a resistência espanhola oficial desmoronava, surgia um bolsão de resistência entre as classes mais pobres. Em dois meses, os ingleses foram desbaratados por um exército multirracial improvisado, liderado por criollos. A autoridade espanhola foi restaurada, mas os nativos descobriram sua própria força e começaram a suspeitar que o monstro dominador estava sem dentes e garras.
     No mesmo mês em que os cidadãos de Buenos Aires celebravam a vitória sobre os britânicos, um bando de seiscentos rebeldes desembarcava na capitania-geral da Venezuela e apelava para que seus concidadãos se levantassem contra os espanhóis. À frente desse exército otimista estava Francisco de Miranda, um visionário carismático e fanfarrão que passara boa parte da vida na Europa tentando obter apoio para a independência hispano-americana. Alto, bonito e sempre impecável no trajar, Miranda era o grande propagandista da libertação colonial. Jantara com Napoleão, que o comparara a Dom Quixote; conquistara a afeição e, dizia-se, a cama de Catarina, a Grande, da Rússia. Mas sua capacidade como general estava muito aquém de seu gênio para as relações públicas. Sem contato com seu país, em particular com a elite criolla, enganou-se sobre a disposição da Venezuela. Mesmo com o apoio informal da marinha inglesa, sua invasão foi um fracasso embaraçoso. Miranda fugiu para Londres, onde sua casa se tornou um centro de expatriados sul-americanos subversivos. “Nunca admitas que o desespero ou o desânimo alguma vez dominem tua alma”, disse ele certa vez a um co-revolucionário. Apesar do fracasso militar, seu entusiasmo contagiante permaneceu como uma inspiração para o crescente número de criollos que viam na revolta armada a única saída para o futuro.

     Foi nessa sociedade de altos ideais e ambições reprimidas, de otimismo e inércia, que Simón Bolívar deu seus primeiros passos. Nascido em Caracas, principal cidade da Venezuela, era o quarto filho de uma família criolla muito rica, que traçava sua ancestralidade hispano-americana até o século XVI. Seu pai morreu quando tinha 3 anos, a mãe, seis anos depois. Embora criado por um tio, a influência mais forte foi a de um tutor politicamente radical chamado Simón Rodríguez. Com ele, Bolívar leu os livros liberais que circulavam entre os nascentes revolucionários.

Esta pintura a óleo de 1829 mostra Simón Bolívar, o grande herói da independência hispano-americana, em uniforme militar. Aclamado como o Libertador da América do Sul, Bolívar acalentava o sonho de unir todas a ex-colônias espanholas numa federação política, mas suas ambições visionárias estavam fadadas ao fracasso. Este retrato, pintado um ano antes de sua morte, captura seu rosto cansado e marcado num momento em que já estava assistindo à queda de muitos países que libertara no caos político.

     Mas foi na Europa, onde completou sua educação, que Bolívar desenvolveu a paixão pela política. Foi lá também que se revelou outro traço seu: o amor pela fama. Assistiu à coroação de Napoleão em 1804 e ficou emocionado com o amor universal que a imensa multidão tinha por seu herói. Ser assim tão reverenciado, escreveu Bolívar, parecia-lhe “o pináculo dos desejos de um homem”.
     Foi então que Bolívar começou a nutrir ideias de desempenhar um papel no futuro de sua nação. ”Creio que seu país está pronto para a independência”, disse-lhe Alexander von Humboldt, ao encontrá-lo pouco depois de retornar de sua viagem à América em 1804, “mas não vejo o homem que possa realizá-la”. No fundo da alma, Bolívar aceitou o desafio. Com seu velho tutor Rodríguez, excursionou a pé pela Europa. Em Roma, perto do final da viagem, fez o juramento do Monte Sacro. O curso de sua vida estava decidido.
     Ao voltar para a América do Sul em 1807, Bolívar assumiu a vida de um abastado terra tenente. Dirigiu com habilidade seu latifúndio, mantendo as aparências de um proprietário modelo. Mas sua principal preocupação continuava a ser a independência política da terra natal. Com outros conspiradores, fazia reuniões - disfarçadas de encontros literários ou de jogos - a fim de debater sobre os métodos mais adequados para atingir seus objetivos republicanos.
     Os eventos dramáticos da Europa não lhes deram tempo para chegar a uma conclusão. Em 1808, Napoleão invadiu a península Ibérica. Decidido a fechar os portos europeus ao comércio inglês, o imperador impacientara-se com a ineficácia de sua aliada Espanha. Aproveitando-se da invasão de Napoleão, o povo espanhol forçou o corrupto rei Carlos IV a abdicar em favor de seu filho Fernando. Napoleão não queria nenhum dos dois: depôs ambos os monarcas e, no lugar deles, para ultraje dos espanhóis, instalou seu próprio irmão José.
     Com esse nepotismo desastrado, Napoleão ajudou os republicanos da América do Sul. De repente, a sociedade criolla uniu-se em oposição a José. “Viva o rei Fernando!” - foi o grito que ressoou nas capitais do continente. Os emissários franceses foram expulsos. E os funcionários espanhóis, parecendo cada vez mais títeres de um usurpador francês, lutavam para conservar a autoridade. Por mais de um ano, mantiveram-se no poder, mas em 1810, a população criolla de todo o continente, agindo com unanimidade notável, depôs seus governantes, com exceção do Peru.
     Em Caracas, o governador saiu quase agradecido a 19 de abril de 1810, substituído por uma junta de criollos proeminentes. Mas Bolívar não estava entre os novos líderes. Sua posição era intransigentemente republicana, enquanto os membros moderados da junta contavam com alguma relação com o rei Fernando. Mesmo assim, porque era um dos rebeldes mais articulados - e porque se ofereceu para pagar sua própria passagem - foi nomeado delegado-chefe de uma missão a Londres.
     Apesar de sua eloquência, Bolívar não conseguiu auxílio oficial, militar ou econômico, para a Venezuela. Para a Grã-Bretanha, lutando agora ao lado da Espanha contra Napoleão, era complicado apoiar as colônias rebeldes de sua aliada. Mas se a recepção pública foi fria, Bolívar encontrou uma cálida acolhida na casa de Francisco de Miranda. Aos 60 anos de idade, ele ainda era a alma dos expatriados. Afetado pelo charme e paixão patriótica do “famoso general”, como Londres o chamava, Bolívar pediu para Miranda liderar a revolução na Venezuela. Embora o governo britânico tentasse evitar sua saída do reino, Miranda conseguiu voltar para a terra natal, e para o último e trágico capítulo de sua vida.

Nesta litografia de Johann Rugendas, de 1835, escravos africanos recém-chegados ao Brasil descansam em torno do fogo em seu caminho para as fazendas onde vão servir. Os escravos negros foram comumente usados para o trabalho no campo em toda a América Latina desde o século XVI, quando os indígenas foram dizimados por doenças europeias como a varíola e a gripe; os africanos também eram considerados mais robustos que os índios. A monocultura extensiva do Brasil e seu fácil acesso às possessões africanas de Portugal proporcionaram condições perfeitas para o florescimento da escravidão. A maioria dos países latino-americanos aboliu a escravidão na década de 1850, mas no Brasil ela perdurou até 1888.

     A expedição teve um início promissor. A 5 de julho de 1811, o Congresso Nacional de Caracas - uma assembleia eleita de criollos abastados que fora criada no início daquele ano - votou, com uma dissensão, pela independência, tanto da Espanha como da Nova Granada. Mas o país continuou dividido. Nem todas as províncias da Venezuela reconheciam a liderança de Caracas e havia muita gente temerosa de que um rompimento completo com Madri apenas levasse à tirania dos criollos mais privilegiados. Com efeito, os próprios republicanos logo se dividiram, com Miranda e Bolívar detestando-se cada vez mais.
     Assediada por inimigos dentro e fora, enfraquecida por disputas políticas e com a economia marchando para o caos, a jovem república lutava para sobreviver quando a natureza acertou-lhe um golpe fatal. A 26 de março de 1812, uma quinta-feira santa, fazia uma tarde escaldante em Caracas; algumas testemunhas falaram de um silêncio opressivo. De repente, o solo tremeu e a bela cidade - a terceira do continente - foi reduzida a escombros. Dez mil pessoas - quase um quarto da população - morreram no terremoto.
     Os mais supersticiosos, estimulados pelo clero, viram no desastre uma reprimenda divina pelo afastamento da Espanha. “Misericórdia, rei Fernando!” – gritavam entre as ruínas. E de fato, o castigo espanhol não estava muito longe. Do forte realista de Coro, a 320 quilômetros de Caracas, partiu um exército comandado pelo capitão Domingo Monteverde em direção à capital. Ao mesmo tempo, uma enxurrada de revoltas escravas persuadiu os criollos indecisos de que a Espanha oferecia mais segurança do que qualquer regime republicano.
     A Primeira República da Venezuela afundava rapidamente. A 25 de julho de 1812, Miranda fez um armistício com Monteverde, uma trégua que era quase uma rendição. Ao mesmo tempo, tomou providências para fugir, pegando dinheiro suficiente para sua aposentadoria. Mas, na última noite, foi preso por Bolívar e outros oficiais e, sob a acusação de traição, entregue às autoridades espanholas. Morreu quatro anos depois numa prisão de Cádiz. Bolívar escapou para a ilha holandesa de Curaçao. A Primeira República chegava a um fim inglório.
     Bolívar não descansou no exílio, indo logo para Cartagena, o principal porto de Nova Granada no Caribe que, tal como outras cidades do vice-reinado, se declarara independente. Mas o país estava desunido e sob ameaça constante das forças realistas. O venezuelano foi calorosamente acolhido e logo lhe deram um comando.
     Antes de iniciar nova campanha, Bolívar redigiu o Manifesto de Cartagena, uma análise da Primeira República da Venezuela. Nesse documento, emergiu um tema que seria o credo de Bolívar pelo resto de sua vida. "Não foram os espanhóis, mas nossa própria desunião que nos levou de volta à escravidão", escreveu ele. “Um governo central forte poderia ter mudado tudo". A própria estrutura da sociedade sul-americana militava contra a democracia, sustentava ele. Um povo que desconhecia o governo representativo só poderia alcançar liberdade e felicidade sob um “poder terríveI" que varresse os espanhóis do país. Tratava-se de uma concepção de ditadura cheia de consequências.
     Bolívar lançou-se então contra os espanhóis com uma energia que surpreendeu tanto os inimigos quanto seus aliados, avançando até os Andes, na direção de Caracas. A conquista dessa cidade, argumentava, era essencial para a segurança de Nova Granada. O alto comando de Cartagena autorizou o ataque.
     O conflito feroz que se seguiu levou Bolívar dos Andes até Caracas em três meses. À medida que avançou, seu exército aumentou de setecentos para 2 500 homens, pois os pobres da Venezuela rural tinham aprendido que a crueldade da contra-revolução espanhola era maior que a da Primeira República.
     Ambos os lados usaram de extremo barbarismo, competindo em atrocidades e terrorismo. Dizia-se que um general espanhol estimulava seus soldados a decorar seus chapéus com orelhas de simpatizantes republicanos (mantendo um baú cheio desses souvenirs). De sua parte, Bolívar declarou guerra de morte contra qualquer espanhol que não aderisse à causa republicana. “Nossa vingança deve ser igual à crueldade dos espanhóis”, anunciou ele. Essa política de destruição mútua transformaria a Venezuela num deserto.

O afresco no teto do Capitólio, em Caracas, representa a batalha de Boyacá, confronto decisivo para a libertação de Nova Granada - atual Colômbia - do domínio espanhol, em 1819. Os patriotas de pés descalços que atacam as forças realistas refletem o estado esfarrapado do exército de Bolívar, que acabara de cruzar os Andes com terríveis privações e perdas de vida. A batalha, travada em torno de uma ponte sobre o pequeno rio Boyacá, durou apenas duas horas e provocou baixas em ambos os lados, mas a maioria dos soldados foi aprisionada - inclusive seu general. Cinco dias depois, a 10 de agosto, os patriotas entraram em Bogotá sem enfrentar resistência.

     No momento, porém, o triunfo era de Bolívar. A 7 de agosto de 1813, ele entrou em Caracas. Meninas vestidas de branco levaram seu cavalo pelas ruas. “Viva nosso libertador!” - gritava a multidão. Dois meses depois, Bolívar escolheu oficialmente esse título. Ficaria conhecido para sempre como o Libertador.
     Decidido a evitar que a Segunda República tivesse o mesmo destino da primeira, Bolívar aceitou também o papel de ditador. “Nossa administração deve reduzir-se ao denominador mais simples”, explicou. Mas desde o início o país defrontou-se com problemas graves. A economia estava em pedaços, as grandes propriedades, despovoadas, e as cidades, arruinadas. Além disso, as facções republicanas logo estariam lutando entre si.
     Nas províncias orientais da Venezuela, um movimento nacionalista independente tinha expulsado por fim Monteverde do país. Santiago Mariño, o jovem líder rebelde, não era homem de dividir o poder. Proclamando-se ditador do Oriente, colocou-se em oposição a Bolívar. Sua recusa em colaborar com Caracas contribuiu para a tragédia que se seguiu.
     Ocorre que surgira um novo e terrível inimigo mais ao sul. José Tomás Boves era um aventureiro espanhol que passara alguns anos exilado nos llanos do centro da Venezuela, planícies onde o capim crescia da altura de um homem e o gado era selvagem. Ali só viviam os llaneros, vaqueiros mestiços e semi-selvagens que não se interessavam por política, mas que aproveitaram a oportunidade de saquear oferecida pela causa realista. Armada apenas com facas, lanças e laços, a cavalaria de Boves abriu uma trilha de saques, incêndios e estupros pelas vilas e cidades republicanas. O próprio Boves deliciava-se com a crueldade, mandando desmembrar crianças e fazendo homens e mulheres de pés esfolados caminharem sobre vidro picado.
     Uma brutalidade insana tomou conta do país, afetando monarquistas e republicanos. Na primavera de 1814, Bolívar mandou executar oitocentos prisioneiros, por medo de rebelião. Tal crueldade pouco ajudou sua causa. Sem armamentos e totalmente desmoralizados, os republicanos evacuaram Caracas no julho seguinte, menos de um ano depois da entrada triunfal de Bolívar. Vinte mil civis arrastaram-se para leste, com muitos morrendo no caminho. Bolívar fugiu para Cartagena, onde uma vez mais ofereceu seus serviços à rebelião em Nova Granada.
     Mas a situação política mudara. Napoleão fora para o exílio e, na Espanha, o restaurado rei Fernando estava decidido a disciplinar suas teimosas colônias. Uma força espanhola de quase 11 mil soldados chegou à Venezuela na primavera de 1815, ocupando Caracas e depois partindo para Cartagena. A cidade caiu após um sítio terrível que matou de fome a maioria de seus habitantes.
     A queda de Cartagena marcou o nadir da revolução. Bolívar, que fugiu para a Jamaica, tomou da pena e purgou seu sentimento de fracasso com outro manifesto político. Na Carta da Jamaica, de 1815, defendeu novamente um governo central forte. “As instituições plenamente representativas não se adequam a nosso caráter", afirmou ele, propondo um presidente vitalício como cura para os divisionismos da jovem república. Ao mesmo tempo, exprimia o desejo de ver toda a América do Sul unida sob um “congresso de representantes das repúblicas, reinos e impérios que discutiriam a paz e a guerra com o resto do mundo”. Era uma ambição que ele perseguiria pelo resto da vida.
     Reencontrando-se com seus companheiros revolucionários no Haiti, tentou uma nova invasão da Venezuela na primavera de 1816. Foi um fracasso dispendioso; mas irrefreável, Bolívar partiu para uma nova tática no final do ano.
     Estava ficando cada vez mais claro que seria difícil invadir a populosa e bem-defendida faixa litorânea da Venezuela. Bolívar decidiu então entrar pelo vale do Orenoco, um rio imenso que serpenteava por florestas e llanos até o oceano Atlântico. Mal defendido pelos espanhóis, o terreno impenetrável oferecia aos republicanos um lugar para consolidar suas forças e formar uma ordem estável de comando que faltara em campanhas anteriores. Em Angostura, cidade ribeirinha de 6 mil habitantes, situada a 320 quilômetros da costa, os patriotas fizeram seu quartel-general e conquistaram uma base permanente em sua terra natal.
     A primeira tarefa de Bolívar foi a de se consolidar como comandante supremo. Mariño recusava-se novamente a cooperar. Mais perigoso ainda era Manuel Piar, um general mulato que planejava abertamente uma rebelião. Bolívar mandou prendê-lo. Submetido à corte marcial, Piar foi executado. Mais tarde, Bolívar sustentou que esse ato salvara o país: “Nunca houve uma morte mais útil, mais política e, ao mesmo tempo, mais merecida". Por sua vez, Mariño dobrou-se diante dessa exibição de força, jurando fidelidade às autoridades republicanas de Angostura.
     Piar representava o perigo de divisão racial do movimento republicano. Ressentido diante dos privilegiados criollos e humilhado pelo estigma de seu sangue misto, ele tentara atrair a grande massa de pardos e escravos para um exército separado. Isso teria sido fatal para a estratégia de Bolívar, bem como um golpe em seu idealismo.

     Ao contrário de grande parte dos criollos, Bolívar era um libertário sincero. Um povo que estava lutando para se libertar, argumentava, não podia em sã consciência conviver com o “manto negro da escravidão bárbara e profana". Ao mesmo tempo, compartilhava do medo dos brancos privilegiados de um levante das raças oprimidas. Acreditava que a única maneira de desarmar a bomba relógio da injustiça racial era a reforma política. As iniciativas liberais, sustentava, já tinham transformado a sociedade nas áreas republicanas da Venezuela. “A odiosa distinção de classes e cores já não foi quebrada para sempre?" - perguntou a suas tropas após a execução de Piar. ”Não dei ordens para que a propriedade nacional fosse distribuída entre vocês? Não são vocês iguais, livres, independentes, felizes e respeitados? Piar podia dar-lhes mais? Não. Não. Não."

Esta pintura alegórica de 1825, apresentando um escudo remanescente da heráldica colonial, homenageia Simón Bolívar como libertador do Peru. Em vez dos animais heráldicos da Espanha, os símbolos da luta pela liberdade - um barrete frígio, uma coroa de louros e as mãos dadas da fraternidade - refletem o orgulho peruano de sua independência. Entre os heróis revolucionários retratados no escudo estão o próprio libertador (no centro), seu general favorito Antonio Sucre (no alto, à direita) e o general William Miller (embaixo, à direita), um dos muitos ingleses que se apresentaram como voluntários para lutar ao lado de Bolívar.

     Sob essa retórica altissonante - Bolívar sabia - jazia a realidade da exploração racial. O próprio Libertador não Iibertara seus escravos (embora fosse fazê-lo mais tarde, em 1821). Muitos de seus companheiros republicanos jamais pensariam seriamente nisso e só com muita relutância estenderiam os privilégios legais aos pardos. Contudo, as massas de cor da Venezuela eram necessárias para o exército republicano. Para satisfazer ao mesmo tempo as necessidades militares e suas genuínas simpatias libertárias, Bolívar prometeu liberdade aos escravos negros que se alistassem com os patriotas. Poucos juntaram-se às fileiras, mas ao oferecer-lhes liberdade ainda que condicional, Bolívar ajudou a desarmar um inimigo potencialmente perigoso. Os pardos, no entanto, deram resposta mais positiva às promessas de oportunidades iguais de promoção, em especial porque o corpo de oficiais das forças espanholas não oferecia tal incentivo.
     Surgiu então um novo e valioso aliado dos republicanos nos llanos a oeste de Angostura. Tomás Boves morrera em batalha, mas os llaneros tinham encontrado outro líder em José Antonio Páez, um enorme e analfabeto criollo que fora para os llanos fugido da justiça aos 15 anos de idade. Um gênio da guerra de guerrilhas, “Tio Antonio” regozijava-se com a violência e afirmava ter matado setenta homens com suas próprias mãos. Sujeito a ataques epiléticos em batalha, era escoltado por um negro gigantesco conhecido como El Primo Negro, que carregava seu senhor para longe quando sofria um ataque. Páez entendeu-se imediatamente com Bolívar quando os dois se encontraram, em 1818.
     Se os llaneros representavam um dos extremos do exército republicano, os redcoats britânicos compunham o outro. Ardente anglófilo que havia muito tentava atrair o apoio econômico e militar da Grã-Bretanha para as guerras de independência, Bolívar procurou recrutar um exército privado nas ilhas britânicas. O momento era certo. Entediados e empobrecidos pela vida civil após anos de guerra na Europa, milhares de veteranos britânicos responderam ao chamado de Bolívar. Vestidos de modo absurdo e mal-informados sobre a natureza da guerra, muitos desses mercenários desertaram ou morreram de doenças tropicais. Alguns, porém, ficaram com Bolívar ao longo da campanha, criando uma ligação pessoal ao homem e a sua causa. Da Inglaterra vieram também suprimentos, armas e equipamentos, comprados a crédito por agentes de Bolívar em Londres.
     A 15 de fevereiro de 1819, um congresso de representantes eleitos ouviu Bolívar fazer um discurso tipicamente agitador em Angostura. Aos 35 anos, estava no auge de suas forças. Tinha o rosto magro e pálido, as maçãs saltadas e nariz aquilino. De constituição franzina, media 1,67 metro, mas parecia crescer quando se dirigia à multidão. Segundo seu rival Mariño, a eloquência dele era de tal ordem que “poderia convencer as pedras da necessidade de sua vitória”.
     No Congresso de Angostura, Bolívar propôs uma constituição para a Venezuela. Coerente com seu crescente ceticismo em relação às assembleias populares e seu medo da desunião, sugeriu um senado hereditário, ao estilo da Câmara dos Lordes da Grã-Bretanha. Pedia a união de Venezuela e Nova Granada em um único estado a se chamar Colômbia, que mais tarde seria batizado de Grã-Colômbia. Com mais da metade da Venezuela ainda em mãos realistas, sua proposta deve ter parecido extravagante, mas Bolívar era irresistível. No dia seguinte, o Congresso elegeu-o presidente da Terceira República venezuelana.
     Bolívar deu início então a uma das mais notáveis campanhas da guerra. Ele e Páez não estavam fazendo progressos contra o poderoso exército espanhol ao norte. Por que não mudar o cenário da ação completamente? A 23 de maio de 1819, Bolívar convocou seus generais para um conselho de guerra. Sentados sobre crânios de gado numa cabana em ruínas, eles concordaram em invadir Nova Granada através dos Andes.
     Estavam na estação das chuvas, pior ocasião para viajar pelos afluentes transbordantes do Orenoco. Para chegar até o pé da montanha, o exército já teve de enfrentar dificuldades extraordinárias. “Durante sete dias, marchamos com água pela cintura”, escreveu Daniel Florencio O'Leary, ajudante irlandês de Bolívar. Canoas de couro transportavam armamentos e os soldados que não conseguiam atravessar a nado os trechos mais fundos. Então chegaram às montanhas. Para os homens da planície tropical do Orenoco, atravessar os Andes foi uma experiência aterrorizante. Caminhando penosamente sobre rochas pontiagudas, com as botas em tiras, ou montados em cavalos cambaleantes até a morte, eles penetraram em nuvens geladas. A fim de aumentar o elemento surpresa, Bolívar escolhera a pior rota para a travessia: o páramo de Pisba, um platô árido de até 4 mil metros de altitude, considerado intransponível na estação chuvosa. Foi quase o que aconteceu. Todos os cavalos e bois morreram. Então os homens começaram a cair, alguns de frio, outros de mal das alturas, alguns de puro cansaço. Dos 3 mil soldados que começaram a jornada, menos da metade chegou ao outro lado.
     No início de julho, o exército de Bolívar desceu das montanhas, surpreendendo completamente os espanhóis de Nova Granada. Os camponeses saudaram com entusiasmo os republicanos, deram-lhes alimentos e roupas, cavalos e mulas. Muitos se apresentaram voluntariamente para servir a Bolívar, outros foram recrutados na ponta da arma. Assim revitalizado, o exército venezuelano atacou os espanhóis com um ânimo avassalador. Até os mercenários europeus foram afetados pela febre do patriotismo. “Viva la pátria!” - gritou o coronel Rooke, da Legião Britânica, em seu leito de morte, erguendo o braço amputado.
     A 7 de agosto de 1819, no vale do Boyacá, uma força de 2 mil republicanos confrontou-se com 3 mil realistas numa batalha que decidiu o destino do continente. Cerca de 1600 realistas foram feitos prisioneiros, junto com o general comandante e seu estado-maior. Os ventos da revolução tinham mudado. Bogotá, principal cidade da Nova Granada, recebeu Bolívar com arcos do triunfo e procissões floridas. O Libertador voltou então para Angostura com a notícia de sua campanha vitoriosa. Antes de partir designou o general Francisco de Paula Santander para vice-presidente da Nova Granada, uma decisão que se revelaria fatal.
     Naquele mesmo ano, em Angostura, Bolívar conseguiu o que descrevera como a ambição de sua vida. A 17 de dezembro de 1819, o parlamento venezuelano estabeleceu oficialmente a República da Colômbia, estado composto por Venezuela, Nova Granada e Equador. É verdade que nenhum dos três países estava completamente livre de tropas espanholas, mas os republicanos estavam confiantes e, além disso, a Europa vinha agora em auxílio de Bolívar.
     Após uma revolução liberal na Espanha, o general Morillo, comandante-em-chefe das forças realistas na Venezuela, recebeu instruções de negociar com Bolívar. Morillo espantou-se com a aparência modesta de seu oponente. “Aquele homem pequeno de casaco azul e chapéu de campanha sentado na mula!” - exclamou. “Aquele é Bolívar?” Mas a eloquência do líder republicano conquistou-o. Naquela noite, os dois dormiram no mesmo aposento e separaram-se como irmãos. Após esse encontro - uma das vitórias mais notáveis de Bolívar sobre a Espanha -, Morillo pediu para deixar o comando e voltou para a Europa. O armistício de seis meses durou apenas cinco, pois os republicanos aproveitaram sua força crescente para retomar as hostilidades. A 24 de junho de 1821, ganharam finalmente a batalha pela Venezuela na planície de Carabobo, perto de Valência, e uma vez mais Bolívar entrou vitorioso em Caracas.
     Embora a Venezuela ainda não estivesse em paz, o Libertador estava ansioso para completar seu sonho de uma Colômbia unida com a liberação do Equador, território ao sul de Nova Granada. Já tinha enviado seu melhor general, Antonio José Sucre, para iniciar a campanha. Agora corria a ajudá-lo. No outono de 1821, quase de passagem, aceitou a presidência da Colômbia do recém-reunido Congresso de Cúcuta, na Nova Granada. De novo, fez de Santander seu vice-presidente.

Vestido com o branco dos mártires, o patriota José Olaya é retratado aqui numa pintura a óleo de 1823, ano de sua morte. Olaya, um índio peruano, servia de correio entre as forças republicanas nos Andes e seus colaboradores em Lima, ainda em mãos espanholas. Capturado pelos realistas, Olaya, mesmo sob tortura, não revelou os destinatários das cartas e foi executado. Mas nem todos os indígenas compartilhavam do fervor patriótico de Olaya: a maioria achava que essa luta pela independência não lhes dizia respeito.

     Guayaquil, principal porto do Equador, já tinha declarado sua independência. A capital montanhosa de Quito resistiu ferozmente ao ataque republicano, mas caiu para Sucre em maio de 1822. Enquanto isso, o exército de Bolívar forçara seu caminho para o sul após lutas sangrentas nas passagens dos Andes. Em julho de 1822, o Libertador entrou em Guayaquil e voltou novamente seus olhos para o sul: o Peru.
     A pressa de Bolívar em libertar o Equador era apenas parcialmente motivada pelo amor à liberdade. Ele estava convencido de que a revolução no norte só estaria consolidada quando os espanhóis fossem derrotados no sul. Queria também que Guayaquil, com seus estaleiros e porto natural, ficasse como estado colombiano, sem ser absorvido pelo Peru. E estava com ciúmes do único homem do continente cuja fama ombreava-se com a sua: José de San Martín.

     San Martín era argentino e passara sua juventude na Europa, servindo com distinção ao exército espanhol. Inspirado pelas notícias de rebelião em sua terra, retornara para Buenos Aires em 1812 e oferecera seus serviços aos patriotas do Prata.
     Naquele momento, o país estava em desordem. O vice-rei fora expulso e instalara-se um governo criollo dois anos antes. Com uma sucessão de ditadores de vida curta tentando ganhar apoio de facções regionais, as províncias do Prata estavam difíceis de governar e impossíveis de unir. O Alto Peru continuava realista; o Paraguai repudiara a autoridade externa para se tornar um estado soberano em 1811; e do outro lado do rio da Prata, a província da Banda Oriental - atual Uruguai – lutava pela independência tanto contra Buenos Aires como contra os portugueses do Brasil.
     Para essa terra anárquica San Martín trouxe uma devoção desprendida pela liberdade e um gênio para a organização militar. Seu valor foi logo reconhecido pelo governo, que lhe confiou a missão de proteger o país contra uma invasão espanhola. Tal como Bolívar, San Martín reconhecia que a independência de seu país - declarada oficialmente em 1816 - estaria sempre ameaçada enquanto Chile e Peru continuassem em mãos espanholas. Em consequência, San Martín devotou mais de dois anos equipando e treinando o que descreveu como “um pequeno exército disciplinado", em Mendoza, junto aos Andes. Seu objetivo era impressionantemente simples: atravessar os Andes, libertar o vizinho Chile e depois navegar para o norte a fim de conquistar o Peru.

A arquitetura herdada da Espanha domina a praça da Independência, em Santiago, capital da república chilena, tal como foi representada numa ilustração do Atlas do Chile de Claudio Gay.

     Nessa empreitada audaciosa, San Martín foi ajudado por patriotas chilenos, que tinham fugido para o leste quando as tropas espanholas esmagaram seu desunido exército de independência. Entre eles, destacava-se Bernardo O'Higgins, cujo pai irlandês fora promovido, contra as probabilidades, de comerciante aventureiro a vice-rei do Peru. Em tenra idade, Bernardo encontrara Miranda em Londres e entrara para o campo revolucionário. Como comandante-em-chefe do exército patriota chileno, O'Higgins perdeu decisivamente para os espanhóis em 1814, derrota precipitada pelo ressentimento de outros líderes nacionalistas. Agora, unia-se a San Martín em Mendoza e preparava-se com entusiasmo para libertar sua terra natal.
     Em janeiro de 1817, San Martín e O'Higgins começaram a escalada dos Andes. Do inicio ao fim, toda a operação foi meticulosamente planejada e levada a cabo. Uma força de cerca de 5 mil homens - junto com artilharia, comboios de suprimentos e rebanhos de gado - cruzou essa tremenda barreira natural por quatro desfiladeiros separados, em apenas vinte dias, suportando altitudes de mais de 3 500 metros e depois se reunindo exatamente como planejado no lado chileno das montanhas. Os espanhóis, que tinham recebido informações falsas sobre a tática de San Martín, foram surpreendidos quando esse exército bem-equipado desceu da muralha de rochas e neve que parecia oferecer tanta segurança. A 12 de fevereiro, os patriotas dizimaram um exército realista na planície de Chacabuco e, três dias depois, entraram triunfalmente na capital, Santiago.

Mesmo depois da independência, a mão da Espanha pesava sobre as ex-colônias. Os criollos - como os que aparecem em um baile no Palácio do Governo de Santiago - assumiram o papel da classe dominante espanhola, imitando as roupas, costumes e arquitetura dos europeus.

     Levou mais um ano para que os patriotas liquidassem a resistência espanhola. Então, com O'Higgins de supremo ditador do Chile, San Martín voltou-se para a segunda fase de seu esquema de libertação. Em 1820, sua frota de sete vasos de guerra - comprada, junto com tripulações mercenárias, da Inglaterra e dos Estados Unidos - partiu para o Peru. Menos de um ano depois, San Martín instalava-se em Lima.
     Mas embora tivessem perdido a capital, os espanhóis ainda controlavam as ricas regiões montanhosas do interior. San Martín não tinha ilusões de que poderia submeter o resto do Peru com a mesma facilidade da conquista do Chile. Apesar da insistência de lorde Cochrane, seu almirante britânico, San Martín escolheu evitar o confronto militar. “Quero que todos os homens pensem como eu”, escreveu ele, enfatizando seu desejo de persuadir em vez de coagir a população.
     Não conseguiu nem uma coisa nem outra. Embora muitos peruanos aderissem à causa nacionalista, eles não se uniram sob seu "Protetor", como San Martín chamava a si mesmo. Alguns tinham inveja do poder que aquele estrangeiro assumira; outros, republicanos dedicados, ficaram irados com sua intenção confessa de estabelecer uma monarquia constitucional no Peru. Além disso, sua posição militar estava ficando precária: rompera com a liderança caótica de Buenos Aires, que se opusera a sua campanha no Peru e estava perdendo o apoio de muitos de seus oficiais, que lhe atribuíam ambições ditatoriais. Enquanto isso, o exército espanhol se reagrupara nos Andes. Mas havia uma esperança ao norte: Simon Bolívar estava lutando no Equador. Com a ajuda do exército colombiano, San Martín esperava esmagar os espanhóis e impor a ordem política no Peru. Tal como Bolívar, também estava tentado pelo próspero porto de Guayaquil. “Vou me encontrar com o Libertador da Colômbia”, anunciou ele, e partiu para o norte.
     Os dois homens encontraram-se em Guayaquil a 26 de julho de 1822. Bolívar, que já se declarara ditador da cidade, não estava para fazer concessões ao rival. Na noite seguinte, após outro dia de discussões infrutíferas, San Martín escapuliu de um baile comemorativo e partiu para Lima. Dois meses depois, resignou ao comando supremo e deixou o país. Taciturno e orgulhoso, deu poucas explicações para sua retirada. “Estou cansado de ser chamado de tirano”, disse ele. Morreu em Boulogne, na França, em 1850.
     O caminho estava aberto para Bolívar libertar o Peru. Seria um empreendimento solitário. As forças de San Martín tinham se dissolvido e o almirante Cochrane levara sua frota para o sul, a fim de atacar navios espanhóis por conta própria. Além disso, no Chile, os últimos seis anos tinham mostrado um O'Higgins muito simpático, mas político incapaz. Ele era um igualitarista fervoroso, ansioso para aplicar seus princípios através de um governo forte. “Se não ficarem felizes com seus próprios esforços”, disse ele de seu povo, “devem ficar felizes à força; por Deus, eles têm de ser felizes”. Para tanto, aboliu todos os títulos espanhóis, confiscou terras dos realistas e reformou o sistema tributário para financiar melhoras na educação e nos transportes. Mas seu tipo de despotismo esclarecido não era apreciado por todos. No sul subdesenvolvido, o ressentimento diante dos altos impostos resultou em continuada guerra debilitadora. Além disso, suas reformas enfureceram tanto os terratenentes criollos quanto o clero. Em outubro de 1822, a proposta de O'Higgins de uma constituição que lhe daria poderes virtualmente ditatoriais para a década seguinte foi a gota d'água. No ano seguinte, seus oponentes forçaram-no a renunciar e fugir para o Peru. Nos anos de caos que se seguiram, enquanto uma série de presidentes de curta duração tentava controlar o país desunido, o Chile teve pouco tempo para se preocupar com os eventos do Peru.
     Impávido, Bolívar foi para Lima em agosto de 1823, encontrando o Peru em um estado de desorientação política e colapso militar. ”O país sofre de uma pestilência moral", escreveu ele. Sofria também com os espanhóis: em fevereiro de 1824, quando Bolívar foi nomeado oficialmente ditador do Peru por um governo desesperado, a república só mantinha o controle de uma única província costeira.
     Com a ajuda do general Sucre, Bolívar conseguiu treinar e equipar uma força de quase 10 mil homens e, em junho de 1824, os dois generais partiram para os Andes. Dois meses depois, derrotavam os realistas numa escaramuça na planície de Junín. A vitória parecia próxima, mas em outubro, Bolívar recebeu uma súbita ordem do parlamento colombiano para abandonar o comando. (O vice-presidente Santander, supôs ele, estava por trás desse ato.) Sucre assumiu todo o controle e a 18 de dezembro forçou um confronto decisivo com os realistas em um lugar que levava o nome indígena de Ayacucho - Beco da Morte.
     Essa batalha quebrou a resistência espanhola no Peru. Sucre avançou rapidamente até o Alto Peru, onde derrotou os realistas em abril de 1825. Foi a última batalha que a Espanha travou no continente sul-americano. Em agosto, o Alto Peru declarou sua independência, adotando o nome de Bolívar (mais tarde Bolívia), tendo Sucre como primeiro presidente. Bolívar, que não participara pessoalmente da luta final, chegou em triunfo e subiu o monte Potosí com Sucre para celebrar o final da guerra contra a Espanha. Ela ainda conservava suas possessões no Caribe, mas a libertação da América do Sul estava completa.

     Com o fim da luta pela independência, começava a batalha pela estabilidade do futuro do continente. Desta vez, o Libertador não conseguiria vencer.
     Bolívar assumiu o papel de conselheiro da nova república boliviana, assessorando numa ampla variedade de assuntos, de agricultura e comércio até higiene e criação de lhamas. Para auxiliar no programa educacional, chamou seu velho tutor Simón Rodríguez (logo banido do país devido a seu comportamento sexual desinibido). Mas a principal e mais controvertida contribuição de Bolívar foi a própria constituição, um documento altamente pessoal que refletia sua crescente desilusão com a democracia. Embora garantisse os direitos humanos e abolisse a escravidão, seu texto previa também a criação de um presidente vitalício que teria o poder de designar seu próprio sucessor.
     As eleições, explicou Bolívar, “só produzem anarquia". Sentia-se imensamente orgulhoso da constituição boliviana. Sob sua influência, o Peru adotou-a em 1826 e Bolívar exortou a Colômbia a fazer o mesmo. “Todos vão considerar essa constituição como a arca da aliança", afirmou irrefletidamente. Na opinião de seus oponentes, ela se parecia mais com o bezerro de ouro.
     Chegou então o momento de Bolívar realizar sua ambição maior: uma confederação de todos os estados das Américas do Sul e Central. Todo o continente meridional estava livre do domínio europeu. México e Guatemala - que então abrangia, além do país atual de mesmo nome, El Salvador, Costa Rica, Honduras e Nicarágua - tinham conquistado a independência em 1821. E o Brasil tinha se declarado uma monarquia constitucional, independente de Portugal, no ano seguinte. Bolívar propunha então a formação de uma liga de nações que arbitraria as disputas que ocorressem entre os países, aboliria a discriminação racial e providenciaria a defesa mútua. Para lançar o projeto, convidou delegados de todas as novas nações (e de Inglaterra e Estados Unidos) para uma reunião no Panamá, que acabava de se declarar independente.

  BRASIL: A REVOLUÇÃO PACÍFICA                                                                                                                                                            Foi a circunstância, mais do que o conflito, que deu a independência ao Brasil. Em 1807, quando as forças francesas invadiram Portugal, o príncipe regente dom João e cerca de 2 mil membros da corte fugiram para o Brasil. Recebidos com enlevo, os emigrados logo começaram a transformar a colônia. Um Rio de Janeiro rapidamente reformado tornou-se a capital do império português e os portos brasileiros foram abertos ao comércio mundial.                                         Após a morte de sua mãe em 1815, dom João declarou-se rei de Portugal e Brasil; quatro anos depois, retornou para a Europa, deixando seu filho Pedro como regente. Mas logo ficou claro que o governo de Lisboa estava decidido a fazer o Brasil voltar à condição de colônia. Em 1822, quase sem derramar sangue, o Brasil declarou sua independência e Pedro, retratado acima em trajes de coroação, tornou-se imperador. Seu filho Pedro II, que subiu ao trono em 1831, continuou a dinastia até 1889, quando foi proclamada a república. 

     O congresso resultante de 1826 foi um fracasso que chegou às raias da farsa. Agora que eram independentes, as nações americanas estavam mais preocupadas em resolver seus problemas domésticos do que em iniciar qualquer ação conjunta. Alguns países nem mandaram delegados, outros chegaram tarde demais. O representante dos Estados Unidos morreu em viagem ao Panamá, enquanto o próprio Bolívar ficava no Peru. No fim, apenas quatro países - México, Colômbia, Peru e Guatemala - participaram. Suas resoluções tiveram pouca consequência e, de qualquer forma, foram logo esquecidas diante do tumulto que tomou conta da Colômbia.
     Na longa ausência de Bolívar, pioraram as relações entre Santander e o llanero Páez, agora comandante geral da Venezuela. Com efeito, os venezuelanos estavam em pé de guerra quando Bolívar retornou a Bogotá, no final de 1826. O Libertador apressou-se em resolver as diferenças entre os dois homens, mas mal dera as costas para Lima, e os soldados de Nova Granada que tinham ficado para manter a ordem rebelaram-se contra seus oficiais venezuelanos e voltaram para casa. Os políticos peruanos imediatamente jogaram fora a constituição de Bolívar e devolveram o país ao estado de caos no qual aparentemente eles prosperavam. Os sonhos de unidade do Libertador pareciam cada vez mais distantes.
     Em seus esforços para restaurar a ordem na Colômbia, Bolívar começou a defender soluções ainda mais autoritárias. “Sem força não há virtude", anunciou ele. “Que tenhamos leis inexoráveis". Suas ideias, no entanto, só serviam para distanciá-lo ainda mais dos liberais. Em 1828, o governo constitucional rompeu-se e Bolívar assumiu poderes ditatoriais. No mesmo ano, seu desapontado rival Santander, tendo maquinado um atentado fracassado contra Bolívar, exilou-se.
     Mas a posição do Libertador tornava-se precária. Aferrou-se ao poder por mais um ano e meio, período em que sua popularidade declinou e sua saúde deteriorou-se. O Peru, que já havia expulsado Sucre da Bolívia, invadia agora o Equador. O ataque foi rechaçado, mas a Venezuela de Páez rebelou-se e separou-se da Colômbia. A união de Bolívar esfacelava-se. Enquanto os venezuelanos o repudiavam, políticos e generais de Nova Granada consideravam-no um risco. Os liberais difamavam-no, temerosos ainda de que acabaria assumindo poderes tirânicos.
     Bolívar renunciou à presidência e, a 8 de maio de 1830, deixou Bogotá, decidido a emigrar a fim de fugir do divisionismo debilitador da América do Sul. Mais golpes o esperavam. Antes de chegar à costa, recebeu a notícia de que o Equador declarara sua independência, destruindo assim o último vestígio do sonho colombiano. Depois ficou sabendo que Sucre, o mais leal e capaz de seus generais, fora assassinado numa estrada montanhosa do sul da Colômbia.
     Devastado fisicamente pela tuberculose e mentalmente pelo colapso da obra de sua vida, Bolívar perdeu toda a esperança no continente. Seu último pronunciamento um mês antes de morrer, revelou sua desilusão: “A América é ingovernável. Os que servem à revolução aram o mar. A única coisa a fazer na América é emigrar”.
     Bolívar morreu a 17 de dezembro de 1830, numa quinta perto de Santa Marta, no litoral caribenho de Nova Granada. Doze anos depois, quando finalmente amainou o ódio que o Libertador inspirara na Venezuela, seu corpo foi levado de volta para Caracas e enterrado em sua terra natal.

     Os anos imediatamente posteriores à morte de Bolívar confirmaram sua mensagem final. Os sonhos de cooperação internacional e unidade continental afundaram numa onda de violência e cobiça. Venezuela, Nova Granada - mais tarde rebatizada de Colômbia - e Equador foram convulsionados por guerras civis sangrentas. A Bolívia invadiu o Peru, o Chile entrou em guerra com os dois países. Em vez de constituições, a política da América Latina teve caudilhos. A convicção de Bolívar de que os presidentes deveriam ser vitalícios gerou uma progênie maligna de ditadores.
     A longa e dura estrada da independência não levara à liberdade. Os criollos tomaram o lugar dos peninsulares como classe política dominante, sem abandonar nenhum dos privilégios. As prometidas reformas agrárias deram em nada. Enormes haciendas continuaram a dominar a economia rural, com um pequeno grupo de criollos novos-ricos tomando as propriedades dos peninsulares. Poucos sofreram tanto quanto os índios, cujas terras comunais foram cinicamente absorvidas pela nova elite, sob o pretexto de integrar seus donos tradicionais à república.
     O vácuo econômico criado pela saída da Espanha foi preenchido pela Inglaterra e outras potências europeias, cujos interesses eram igualmente egoístas. Em 1823, os Estados Unidos tinham lançado a doutrina Monroe, uma declaração unilateral que afirmava que qualquer tentativa da Europa de oprimir ou controlar governos independentes do hemisfério ocidental seria considerada um ato de inimizade. A América do Sul, porém, continuava à mercê dos tentáculos mercantis do Velho Mundo. Com efeito, o próprio Bolívar chegara a sugerir ao governo peruano a venda “na Inglaterra de todas suas minas, terras, propriedades e outros bens do governo para cobrir a dívida nacional”. Agora, uma torrente de produtos manufaturados baratos da Europa caía sobre o continente em troca de matérias-primas. Mas enquanto os criollos abastados podiam se dar ao luxo de adquirir bens de consumo dos centros industriais da Grã-Bretanha, os trabalhadores das minas e plantações continuavam a viver na miséria.
     Em toda a América Latina, a sociedade continuou profundamente dividida por distinções de raça e cor. As belas palavras dos abolicionistas foram logo esquecidas. Em países como Argentina, Colômbia, Venezuela e Peru, cujas economias ainda comportavam o trabalho forçado, a escravidão só seria abolida na década de 1850. Outros trabalhadores continuaram a viver em condições de quase escravidão, presos à terra por dívidas ou desesperança.
     Mas as guerras de libertação não foram travadas inteiramente em vão. Os nomes de Boyacá e Ayacucho, Sucre, O'Higgins e San Martín seriam lembrados com admiração reverente, enquanto Simón Bolívar se tornaria um semideus, uma geração após sua morte. Os feitos e ideais do Libertador e seus companheiros revolucionários permaneceram como inspiração para os espíritos rebeldes que viriam no futuro, para quem a visão de um povo latino-americano livre jamais feneceria.




LIBERTAÇÃO DA AMÉRICA LATINA é um capítulo do livro A FORÇA DA INCIATIVA, da coleção HISTÓRIA EM REVISTA,  que trata temas ocorridos entre os anos de 1800/1850.
Os demais capítulos são O IMPÉRIO DE BONAPARTE, A INDÚSTRIA NA GRÃ-BRETANHA, A ABERTURA DA CHINA e O SUL DA ÁFRICA EM DISPUTA.

Editores de TIME-LIFE LIVROS
                  ABRIL LIVROS - Rio de Janeiro

Editor da série: TONY ALLAN
Consultor para este capítulo: JOHN LYNCH,
                                            Professor emérito de História Latino-americana
                                            Universidade de Londres








domingo, 24 de agosto de 2014

RUMO ÀS ALTURAS


Em agosto de 1941 um caça britânico foi abatido em território francês ocupado. O piloto foi transportado para o hospital militar de Saint-Omer.
Um médico alemão o examinou e verificou com grande espanto que ele tinha as duas pernas amputadas!
Para os homens da Luftwaffe este piloto não era um desconhecido: sabiam que se tratava de um dos grandes ases britânicos da aviação, talvez o mais famoso dos comandantes da Real Força Aérea.



Quando Douglas Bader, com 19 anos, era cadete em Cranwell, a academia da Real Força Aérea, seu instrutor de pilotagem disse: "Este jovem ou ficará famoso ou se matará". Parecia que era apenas uma questão de saber qual das duas coisas aconteceria primeiro.
Desde o começo Douglas Bader revelara possuir as qualidades de um soberbo aviador. Tinha a coordenação do atleta nato (brilhava em todos os esportes, do futebol ao boxe) e voava com exuberância e com absoluto destemor. Mas era dado a aceitar logo qualquer desafio e jovialmente transgredia todos os regulamentos menos importantes. No esquadrão de caça onde foi classificado depois de concluir o curso ficou conhecido por suas acrobacias aéreas de arrepiar os cabelos, que ele se deliciava em executar a altitudes perigosamente baixas.
Os pilotos treinados para a guerra não são recrutados por sua cautela, e às vezes a sua temeridade prevalece sobre a competência. No dia 14 de dezembro de 1931, Bader, que tinha acabado de completar 21 anos, voou para um aeródromo próximo a fim de visitar uns amigos. Conhecendo a fama que granjeara por suas acrobacias aéreas, alguém lhe pediu que, a título de demonstração, "batesse" o campo — uma manobra de voo rasante sobremodo arriscada e rigorosamente proibida aos pilotos da RAF. Bader hesitou um instante, pois o seu novo caça Bulldog, embora mais rápido, era também mais pesado e menos maneável que o avião em que vinha voando anteriormente. Em seguida decolou, inclinou o avião de lado e virou para trás a fim de dar uma passada rasante sobre o campo. Cruzou como um raio a cerca divisória, com o motor rugindo, empurrou o mancho e puxou o manete para manter o motor funcionando, enquanto o Bulldog virava de dorso. Sentiu que o aparelho começava a afundar, e procurou a todo custo fechar a curva. Tinha quase completado a volta quando a ponta da asa esquerda tocou no solo e lançou o nariz para baixo. Quando a hélice e o motor explodiram de encontro ao solo, o Bulldog virou uma cambalhota lateral e se amarrotou numa massa confusa que parecia uma bola de papel.
Preso nas correias, Bader nada sentiu, e ouviu apenas um ruído terrível. Quando sua mente clareou, sentiu, no repentino silêncio que se seguiu, uma sensação estranha nos joelhos e notou que suas pernas estavam em posições esquisitas. A perna esquerda tinha ficado presa debaixo do assento quebrado, de modo que ele estava sentado nela. O pé direito estava enfiado lá no outro canto da carlinga, e a perna do macacão branco e limpo estava manchada de sangue. Havia algo atravessado no joelho. Lembrava um pouco a barra de direção. Muito estranho. Olhou aquilo abstratamente, e por algum tempo não sentiu nenhum impacto, até que se cristalizou um pensamento desagradável: "Maldição! Não vou poder jogar rugby sábado".

No hospital civil para onde o levaram a toda pressa, o médico amputou-lhe a perna direita (que já estava quase solta) acima do joelho esmagado. E dois dias depois, quando a perna esquerda ferida gangrenou, também esta foi amputada 15 centímetros abaixo do joelho.
Não se sabe como, Bader conseguiu resistir ao choque do desastre e da primeira operação, agarrando-se à vida por um fio. Depois da segunda operação levou umas 24 horas para ficar de fato consciente. Despertou presa de uma dor aguda e incessante.
— Minha perna esquerda está doendo — queixou-se.
Deram-lhe morfina para aliviá-lo, mas a dor continuou implacável.
Seus olhos ficaram inquietos e mergulhados em negras olheiras, o rosto cinzento e ceráceo, brilhando sob uma camada de suor. Durante dois dias ele alternou entre períodos de inconsciência e momentos de vigília, e então a dor constante lhe atormentava o corpo e seu espírito vagava num indefinido meio-mundo.
Depois o moço despertou e a dor tinha desaparecido. Não sentia absolutamente o corpo, embora sua mente estivesse perfeitamente clara. Ficou imóvel, olhando através da janela para um trecho de céu azul, e um pensamento cheio de paz se insinuou na sua mente: "Isto é agradável. Basta fechar os olhos agora e inclinar-me para trás, e está tudo bem". Uma paz morna ia-se apoderando dele, seus olhos iam-se fechando e sua cabeça parecia mergulhar no travesseiro, quando começou a penetrar numa doce névoa de sonhos.
Pela porta do quarto entreaberta uma voz incorpórea de mulher chegou até ele: "Psiu! Não faça tanto barulho. Há um rapaz morrendo ali".
As palavras vibraram dentro dele como um choque elétrico, disparando este rápido pensamento: "Então a coisa é essa! Sim, eu vou morrer!" O desafio o mobilizou e ele parou de entregar-se. Quando a sua mente começou a clarear, de novo tomou contato com a realidade e a dor voltou-lhe à perna. Daquela vez, por uma razão qualquer, não se incomodou; foi quase agradável, porque sentiu que voltara à normalidade. "Não devo deixar que isto aconteça outra vez", pensou. (Mas desde aquele momento nunca teve medo de morrer. Mais tarde isso viria a ter um profundo efeito sobre a sua vida).
Nos dias que se seguiram, Bader passou, inesperadamente, a se agarrar à vida. Embora tivesse pouco depois entrado em coma e assim permanecesse 48 horas, sobreviveu a essa recaída e aos poucos se restabeleceu. Entrementes, o hospital inteiro sabia, com uma espécie de fascinante terror, que ele não tardaria a ter conhecimento da extensão do que lhe acontecera.
Durante um período de lucidez em seguida à primeira operação, Bader tinha percebido que a perna direita fora amputada, tendo examinado sub-repticiamente, debaixo da roupa de cama, o coto envolto em ataduras. Mas não sabia ainda que tinha perdido a perna esquerda também. Uma das enfermeiras, temendo, que ele por acaso descobrisse e o choque o pusesse de novo em perigo, tentou contar-lhe com tanto jeito e um ar tão despreocupado quanto possível, mas seu cérebro, entorpecido pelas drogas, não registrou as palavras da enfermeira.
Ele o soube no dia seguinte, quando o comandante do seu esquadrão foi visitá-lo. Com a mente tornada lúcida pelo tormento, Bader queixou-se de que a perna esquerda lhe doía tanto que desejaria que a tivessem cortado como fizeram com a direita.
— Essa não dói nada!
— Você talvez não quisesse que lha cortassem se não doesse — disse o oficial, nervosamente consciente do drama.
— Não sei o que eu quereria se ela não doesse. Só sei que estou saturado disto tudo e, por Deus, agora eu queria que tivesse sido amputada.
— A verdade, Douglas — disse lentamente o comandante do esquadrão — é que ela foi amputada.
Dessa vez ele entendeu bem.

Bader lançou-se com feroz resolução à tarefa de conseguir locomover-se. Seis semanas depois do acidente foi-lhe colocada uma perna de pau no coto esquerdo (onde havia ainda o joelho), a fim de que pudesse tentar andar de muletas. Quando se apoiou na perna de pau, o joelho dobrou; não tinha força nenhuma. Embora o tentasse repetidamente, levou três dias para poder dar dois passos claudicantes, sem ajuda. Mas dali a pouco estava andando sozinho e passava horas caminhando com seus cotos de perna pelo jardim do hospital.
Mas antes de poder usar membros artificiais adequados Bader teve de ser operado outra vez. Os cotos tinham murchado tanto que havia perigo de o osso furar a pele, e por isso era preciso aparar um pouco o osso de cada perna. Bader submeteu-se à operação quase com alegria.
Enquanto ficou de cama esperando que os cotos sarassem de novo, estudou os encorajantes folhetos que lhe haviam sido enviados pelos fabricantes de membros artificiais. Esses folhetos lhe deram a sensação de que quando tivesse as novas pernas poderia levar uma vida razoavelmente normal; talvez não pudesse jogar rugby, mas com certeza poderia andar e dançar (coxeando um pouquinho, talvez), guiar automóvel, é claro, e voar também. Não via por que não. Voar era, sobretudo, olhos e mãos e coordenação, e não pés.
"Eles não podem desligar-me da RAF", dizia. Afinal de contas, conhecia um piloto militar que tinha perdido uma perna na Primeira Guerra Mundial e ainda voava. Alguém lhe falou num amigo que perdera uma perna e ainda jogava tênis. A rigor, todo o mundo vivia a falar-lhe de pessoas de uma perna só que haviam vencido, embora ele notasse que ninguém parecia conhecer alguém que tivesse perdido ambas as pernas e sobrepujado isso.
Às vezes, o bem intencionado encorajamento dos amigos o deprimia. "É claro que vão deixar você continuar na Aviação", diziam com veemência um tanto excessiva. (Vão deixar-me ficar... Caridade!) "Mesmo que você não possa voar, podem dar-lhe uma função em terra". Mas a ideia de uma função em terra enquanto os camaradas voavam o revoltava.
— De qualquer modo, o senhor ainda poderia fazer nova carreira num gabinete — disse-lhe a enfermeira para animá-lo.
— Gabinete — replicou ele com desprezo. — Fechado num gabinete o dia inteiro! Amarrado a uma mesa! Não haverá vida para mim se tiver de deixar a Aviação.

Uma preocupação desapareceu quando oficiais superiores da Aeronáutica o visitaram para apurar o acidente. Suas conclusões contornaram habilmente a questão da culpa, considerando que, fosse o que fosse que tivesse havido, Bader já tinha sofrido mais do que o suficiente.
Em meados de abril ele foi transferido para o hospital da Aeronáutica em Uxbridge. Ali a atmosfera era toda militar. Os enfermeiros eram quase todos soldados, respeitosos mas distantes, e as costumeiras restrições militares foram a princípio incômodas. Mas Bader encontrou na enfermaria alguns dos seus antigos companheiros e naturalmente se sentiu à vontade entre eles. Na realidade, a RAF era a sua casa.
Chegou, então, o momento que ele vinha esperando. Os médicos da Aeronáutica enviaram-no a Londres a fim de tirar as medidas para os membros artificiais. Ali encontrou Robert Desoutter, que fez moldes de gesso dos seus cotos e lhe disse que enviasse um par de sapatos velhos a fim de poderem arranjar-lhe pés do tamanho certo.
— Prepare-os o mais depressa possível, sim? — pediu Bader. — Eu quero levar uma pequena a um baile.
— Vamos fazer tudo que estiver ao nosso alcance — respondeu Desoutter, pensando, erradamente, que ele estivesse brincando.
Duas semanas depois, quando voltou para uma prova, suas pernas novas de metal estavam prontas.
— Bonitas, não? — disse Desoutter. — Veja só como são musculosas!
Bader sorriu.
— O senhor vai ficar uns três centímetros mais baixo do que era — continuou Desoutter.
O sorriso apagou-se.
— Por quê? — perguntou Bader, indignado.
— Para lhe dar melhor equilíbrio. Se as quiser maiores, sempre será possível aumentá-las.
Na sala de provas, Desoutter apresentou-lhe dois assistentes de avental branco, que o fizeram tirar a roupa toda, menos a camiseta e a cueca. Calçaram-lhe uma "meia" curta de lã no coto esquerdo e o introduziram numa cavidade revestida de couro na barriga da sua nova perna esquerda. Acima da barriga da perna havia umas barras de metal com dobradiças que se prendiam de cada lado do joelho e terminavam numa faixa de couro que era amarrada em volta da coxa. A sensação era muito boa e depois de alguns passos de ensaio atravessou facilmente a sala com o auxílio de muletas.
— Muito bem — disse ele com satisfação. — Vamos ver agora a perna direita.
Trouxeram-na. A coxa era um cilindro de metal que subia até a virilha e tinha umas correias que iam dar num grosso cinto e outras que davam volta por cima dos ombros. Enquanto encaixavam o coto direito na funda cavidade e afivelavam as inúmeras correias, Bader sentiu-se como se estivesse sendo metido numa camisa-de-força. Ajudaram-no a pôr-se de pé, e dessa vez não lhe deram muletas.
Quando seu peso descansou sobre ambas as pernas, sentiu-se desesperadamente desequilibrado, o coto direito doeu-lhe, ficou inteiramente sem ação e as próprias correias pareciam tolhê-lo. Além disso, quando tentou balançar para frente à perna direita, ela não se moveu. Sem músculos dos dedos do pé ou do tornozelo que o impulsionassem para frente, aquela perna direita formava uma firme barreira e êle só conseguiu pôr-se em cima dela e transpô-la quando os assistentes de Desoutter o empurraram para frente.
— Meu Deus, isto é completamente impossível — exclamou ele com pungente desespero.
— Isso é o que todos dizem na primeira vez — disse Desoutter. - O senhor se acostuma. Não se esqueça de que o seu coto direito não faz movimento algum há quase seis meses.
Bader disse com amargura:
— Pensei que ia poder sair daqui andando e começar logo a praticar esportes e fazer outras coisas.
— Escute — disse Desoutter com muito jeito — acho que o melhor é o senhor ficar sabendo que nunca poderá andar sem bengala.
Bader olhou para ele com intenso desânimo e, em seguida, quando o desafio o animou, êle replicou combativamente:
— Uma ova! Eu nunca andarei de bengala!
Em sua obstinada raiva, ele de fato estava falando sério. E com furiosa resolução passou os braços sobre os ombros dos assistentes de Desoutter e começou a aprender a técnica de usar as novas pernas. Seguindo as instruções deles, aprendeu que tinha de dar um chute para frente com o coto direito a fim de mover a perna, dar-lhe um arranco seco para baixo outra vez para pôr o joelho reto e depois — o mais difícil de tudo — fazer peso para frente até ficar precariamente equilibrado no enfraquecido coto direito. Como tinha ainda o joelho esquerdo, conseguia com facilidade mover para frente à perna esquerda; em seguida recomeçava a luta para mover a perna direita.
Finalmente, após duas horas de esforço  exaustivo, com o rosto brilhando de suor, deu três ou quatro tropeções sincopados antes de ter de agarrar-se às barras paralelas.
— Pronto - disse ele rindo. — Agora o senhor pode ficar com as suas malditas bengalas.
Desoutter ficou surpreendido e satisfeitíssimo.
— Eu nunca tinha visto ninguém com uma perna fazer isso na primeira vez — disse ele.
Na visita seguinte foi um pouco mais fácil e não tardou que Bader conseguisse atravessar a sala sozinho, cambaleando. Nesse dia aprendeu também a virar-se, movendo-se instavelmente num apertado semicírculo. Já queria levar as pernas, mas Desoutter ainda precisava fazer mais uns ajustamentos. Na terceira visita, porém, depois de haver dominado a arte de se levantar de uma cadeira (com o joelho esquerdo bom fazendo o esforço e erguendo-o) e de subir escadas (subindo cada degrau com a perna esquerda primeiro e depois puxando a perna direita para junto dela), Desoutter disse:
— Agora pode levá-las. Quer que embrulhe?
— Nada disso! — replicou Bader com um sorriso. — Vou sair daqui andando com elas. Tome! — acrescentou, jogando-lhe a perna de pau e quase caindo ao jogá-la. — Pode fazer dela o que quiser.
Em seguida, com certo esforço vestiu pela primeira vez o resto da roupa por cima das pernas novas e olhou-se ao espelho. Estava em pé, vestido como um camarada qualquer. Parecia ser perfeitamente normal. Foi um momento impressionante.
— Agora, que tal uma bengala? — sugeriu Desoutter em tom persuasivo.
— Nunca! — respondeu Bader secamente. — Vou começar logo do modo que pretendo andar.
 — Francamente, acho que o senhor é incrível — disse Desoutter.

Os dias que se seguiram foram o pior período desde o acidente. Outra vez no hospital, dependendo inteiramente das suas estranhas pernas novas para mover-se, ele não parava de enfrentar problemas até então desconhecidos: organizar a sua rotina de ir para cama antes de tirar as pernas; aprender a técnica de equilíbrio para andar na grama, inteiramente diferente da necessária para andar em chão liso; combater o cansaço causado pelo tremendo esforço físico que cada movimento exigia.
Ia tropeçando, caindo com frequência, recusando secamente qualquer ajuda e erguendo-se para cambalear e cair outra vez. Hora após hora continuava teimosamente naquilo, com o rosto escorrendo suor que lhe brotava de todo o corpo, ensopando-lhe as roupas de baixo e, infelizmente, as meias dos cotos também, o que as fazia perder a maciez de lã e esfolar a pele dos rígidos e doloridos cotos. As bem humoradas brincadeiras com que os companheiros saudaram os seus esforços iniciais foram cessando à proporção que eles percebiam que estavam vendo um homem lutar para fazer algo que nunca fora feito com êxito até então.
Voltou várias vezes a Desoutter para reajustamentos. Aprendeu a evitar as esfoladuras usando talco e colocando esparadrapo nos pontos sensíveis, e os flácidos músculos do enfraquecido cato direito começaram a endurecer. Mas andar com as pernas novas ainda parecia uma dificuldade quase insuperável.
E então, uns dez dias depois de tê-las recebido, descobriu o primeiro indício de controle automático. Era como um homem aprendendo uma estranha língua que soa como um amontoado de sons confusos, até que um dia consegue pegar uma frase e entendê-la. Bader verificou que estava andando sem ter de se concentrar no movimento ou no equilíbrio; algum instinto automático parecia ter-se encarregado de parte do trabalho. Depois disso, embora a coisa estivesse longe de ser fácil, o progresso foi rápido. Conseguiu afinal passar um dia inteiro sem cair e, como clímax dessa vitória, aprendeu a virar-se girando sobre o calcanhar direito.
Mas Bader não se contentou em vencer a sua deficiência; estava resolvido a não transigir com ela de maneira alguma. Com um orgulho à flor da pele se dispôs a fazer tudo quanto fazem as demais pessoas. Mandou mudar os pedais do seu carro MG de maneira a poder acionar tanto a embreagem quanto o acelerador com a perna esquerda e, após um período de treino, não teve dificuldade em obter carteira de "motorista parcialmente inválido".
Numa importante visita que fez num fim-de-semana a um velho amigo verificou que ainda podia nadar... E, enquanto descobria isso, o sol lhe queimou tanto o ombro que ele ficou sem poder colocar as alças. Com imensa satisfação constatou que se arranjava bem com o cinto apenas, e nunca mais voltou a usar as incômodas alças do ombro.
Durante algum tempo pareceu que Bader ia realizar a sua ambição e que não tardaria a estar de novo no seu esquadrão, voando outra vez. Como primeiro passo para tornar a voar teve de passar num exame feito por uma junta médica. Em seguida, no fim do verão, recebeu ordens designando-o para a Escola Central de Voo a fim de ser experimentada a sua capacidade para voar.
Verificou que voar lhe era mais fácil do que dirigir automóvel e imediatamente demonstrou a sua competência para manejar qualquer avião. Por fim o Chefe da Instrução de Voo lhe disse:
— Você está perdendo tempo aqui em cima. Não há mais nada que lhe possamos ensinar.
E alguns dias depois Bader estava seguindo para Londres no seu carro para a aprovação final pela junta médica, necessária para a sua volta definitiva à Aviação.
Nem foi preciso que o médico o examinasse, mas encaminharam-no logo ao gabinete do comandante do regimento, onde se sentou tranquilamente à espera das boas-novas.
Pigarreando, o tenente-coronel disse:
— A Escola Central de Voo informa que o senhor consegue voar satisfatoriamente.
Bader esperou cortesmente.
— Infelizmente — prosseguiu o comandante — não podemos dá-lo como em condições de voar porque não há nada nas Disposições Reais que se aplique ao seu caso.
Por um instante Bader ficou sentado em silêncio, estupefato, com uma sensação de frio invadindo-o lentamente. Por fim conseguiu falar:
— Mas foi para isso que me mandaram para a Escola Central de Voo. Para ver se eu podia voar. Só a Escola pode resolver a esse respeito. Não basta o que a Escola decidiu?
Embaraçado, o tenente-coronel se desculpou:
— Sinto muito, mas nada podemos fazer.
Bader soube então que, provavelmente, tudo tinha sido decidido antes de ele ir para a escola de voo. Esperavam que fracassasse. Agora estavam atrapalhados; mas a decisão oficial permanecia de pé. Ele estivera na RAF tempo suficiente para saber que recorrer de uma decisão oficial era malhar em ferro frio.
Cheio de decepção e de raiva, Bader foi transferido para uma função em terra: direção do transporte motorizado na base de caças de Duxford. Aferrava-se à esperança de conseguir de alguma maneira voltar a servir no ar. Mas o golpe final veio em abril de 1933 quando chegou uma carta oficial do Ministério da Aeronáutica determinando que a RAF reformasse Bader por incapacidade física.
Condenado à vida civil, Bader arranjou um emprego de escritório na seção de aviação que uma companhia de petróleo acabava de criar, mantendo assim uma ligação tênue com a aviação, uma vez que o seu trabalho tinha relação mais com preços e com a entrega de combustível e óleos de aviação à Austrália.
Casou-se com uma moça que conhecera depois do acidente, uma moça que havia começado a cortejar desde que conseguira andar de muletas, uma moça que ele tinha, afinal, desajeitada, mas triunfantemente, levado a um baile. Thelma foi o único raio de luz nas trevas dos seus anos pós-RAF. Serena, desprendida, sabendo instintivamente lidar com as rebeldias do temperamento dele, ajudou-o a enfrentar com relutante resignação as frustrações de ter voltado para terra. E o encorajava quando ele buscava no golfe, no tênis e no squash os desafios exigidos pela sua vitalidade. Porque, por um esforço quase sobre-humano, ele dominou todos esses esportes e até conseguiu, surpreendentemente, reduzir a nove o seu handicap no golfe.
Mas Bader nunca conseguia evitar uma dolorosa sensação de perda toda vez que pensava na RAF. Quando veio Munique e ele percebeu que ia haver guerra, escreveu ao Ministério da Aeronáutica oferecendo os seus serviços. Escreveu de novo e tornou a escrever, e, afinal, poucas semanas depois de declarada a guerra, foi chamado a comparecer perante a junta de alistamento.
Seguiu-se a rotina familiar de exames médicos e testes de voo. Mas dessa vez as Disposições Reais foram esquecidas e em fins de novembro chegou um envelope do Ministério da Aeronáutica. Ali, em impessoal estilo oficial, vinha a comunicação: ele seria readmitido, como oficial de carreira, no seu antigo posto e com os seus antigos direitos. Sua pensão de reformado já tinha deixado de ser paga, mas continuaria fazendo jus a toda a pensão de invalidez. (Esta foi uma nota engraçada: era considerado ao mesmo tempo 100% capaz e 100% incapaz.) Telefonou para o alfaiate, mandou fazer um uniforme novo e deixou pela última vez a sua escrivaninha, tão feliz como Thelma nunca o vira.

(Imperial War Museum)


Em fevereiro de 1940, Bader apresentou-se em Duxford, onde tinha servido na Força Aérea pela última vez. Geoffrey Stephenson, um dos seus antigos companheiros da RAF, comandava o 19º Esquadrão e, sem se atemorizar com a ideia de ter um piloto sem pernas, pedira Bader para a sua unidade. Mas quase todas as caras ali eram novas; parecia que andavam todos por volta dos 21 anos. E Bader, vivamente consciente de que já estava perto dos 30, sentiu-se compelido a mostrar-se à altura dos jovens pilotos que usavam o uniforme com tão alegre confiança.
Naquele período inicial da guerra o esquadrão passava o tempo quase todo exercitando-se nos três métodos oficialmente aprovados de atacar bombardeiros, e aí Bader logo se viu às turras com a autoridade. No "Ataque nº 1", por exemplo, os aviões de caça seguiam o guia numa linha regular até ao bombardeiro, davam um tiro rápido quando chegava a vez de cada um e afastavam-se graciosamente, oferecendo o ventre da fuselagem ao metralhador do inimigo. Os teóricos do Comando de Caça tinham concluído que os caças eram rápidos demais para a tática de entreveros da Primeira Guerra Mundial. Bader achava isso um absurdo.
— Só há um modo de fazer isso — rosnava para Geoffrey Stephenson. — Esse é formar todo o mundo um bolo. Por que usar oito metralhadoras de uma vez se podemos usar 16 ou 24 de diferentes ângulos?
Stephenson e os outros retrucavam:
— Mas você não sabe, não é verdade? Ninguém sabe.
— Os rapazes da última guerra sabiam — dizia Bader — e a ideia básica é a mesma agora. Nenhum bombardeiro alemão vai voar direitinho e deixar uma fila de sujeitos se alinhar atrás e despejar tiro nele um após outro. Depois, não será um, mas muitos bombardeiros, permanecendo juntos em formação cerrada, para concentrarem o seu fogo.
Provavelmente, depois de uma investida, ou de duas, seria possível separar os bombardeiros uns dos outros, pensava ele, e então haveria combates aéreos por todo o céu.
— Quem vai controlar o combate ainda será quem tiver a altura e o sol a seu favor — dizia ele.
Alguns dos outros pilotos procuravam arreliá-lo fazendo piadas sabre a geração de antes da guerra e sobre passadismo, mas Bader continuava a condenar os ataques oficiais do Comando de Caça em todas as oportunidades.
Certa noite, Tubby Mermagen, outro amigo dos velhos tempos, que estava então comandando o 222° Esquadrão, em Duxford, imprensou-o no refeitório. Algumas das suas tripulações estavam sendo enviadas para outros pontos, disse Mermagen, e ele precisava de um novo comandante de voo.
— Não quero fazer uma ursada com Geoffrey, mas se ele concordar você quer vir?
Exultante, Bader respondeu que iria com todo o prazer.
Depois da sua promoção a capitão, Bader libertou-se da incômoda sensação de rapaz mais velho que volta à escola para fazer exame outra vez. Sempre tivera uma personalidade dominadora, e agora dirigia o seu esquadrão com entusiasmo e capacidade, encantado com a oportunidade de pôr em prática as suas teorias. Por alguns dias guiou os seus pilotos para o ar a fim de efetuarem os ataques do Comando de Caça. Fazia cada piloto subir para servir de alvo, determinando-lhe que observasse cada caça na procissão regulamentar, atirar um por um e escaparem todos na mesma direção, apresentando a barriga do avião para um tiro fatal. Quando pousavam dizia:
— Agora você está vendo o que lhe pode acontecer.
Em seguida ensinou-lhes o seu próprio estilo de combate, levando dois ou três de cada vez, afastando-se do sol, de um lado ou outro do avião destinado a servir de alvo e escapando abruptamente para frente e por debaixo dele. Depois disso vinham horas de práticas de entreveros e acrobacias entremeadas de operações de rotina como patrulha de comboios.

Após oito meses de uma guerra em que não tinham sequer visto um avião alemão, os pilotos de Duxford estavam ficando impacientes. Quando Hitler marchou sobre a França e os Países Baixos, sentiram-se cheios de júbilo. "Agora podemos atacá-los", disseram. Bader não cabia em si de contente.
Nada, porém, parecia acontecer em Duxford. Os jornais e o rádio estavam cheios da confusa batalha da França e os pilotos liam com inveja as notícias dos embates dos Hurricanes com a Luftwaffe. Mas o esquadrão só foi chamado a entrar em ação quando os seus homens, a princípio perplexos com a missão (a grande evacuação ainda era segredo), foram enviados para fazer patrulha sobre Dunquerque.
Mesmo nessa concentrada área de combate, onde massas de tropas e uma incrível flotilha de socorro ofereciam constantes alvos ao ataque aéreo inimigo, a frustração continuou. Outros esquadrões informavam, excitados, que haviam dado com grandes grupos de Messerschmidts e Stukas sobre as praias coalhadas de soldados. Mas embora Bader levantasse voo diariamente, não encontrava aviões alemães. O inimigo parecia vir matar logo que o seu esquadrão voltava para a base.
Então, no sexto dia, avistaram sobre Dunquerque um bando de pontos que cresciam rapidamente, e Bader de repente viu um Messerschmidt 109 enchendo o seu para-brisa. Apertou o gatilho e o 109 flamejou como um maçarico, rodopiou como um bêbedo e depois caiu, deixando para trás uma fita de fumaça negra. A exultação invadiu-o rapidamente, com um brilho de vitória, ao reconquistar assim a vida em combate primitivo. Mas quando rolou na pista, ao aterrar, a alegria desapareceu: dois dos outros não tinham voltado.
Quando Dunquerque acabou, Bader, de súbito exausto, dormiu 24 horas, e ao despertar encontrou toda a Inglaterra num estado de espírito diferente, cheia de resolução. Podia-se ler no rosto dos pilotos o que estavam sentindo: se era luta que os inimigos queriam, iam tê-la. Contra toda a lógica, o país se recusava a reconhecer que estava derrotado. Para Bader, havia também um desafio pessoal, embora nunca se lhe impusesse conscientemente o pensamento de que, agora, ninguém podia pensar nele com piedade. Absorvido pelo voo e pela tática, ele vivia para a luta que se aproximava. Luta tanto da Inglaterra como sua.
Menos de duas semanas depois, Bader foi chamado ao Quartel-General do Grupo 12. Sem preâmbulos, o comandante Vice-Marechal-do-Ar Leigh-Mallory disse:
— Tenho ouvido referências à sua atuação como comandante. Vou dar-lhe um esquadrão, o 242 de Hurricanes.
Bader arregalou os olhos, depois engoliu em seco e disse:
— Sim, senhor...
O homem atarracado, de rosto quadrado, que estava atrás da mesa, prosseguiu rispidamente:
— O 242 é um esquadrão canadense, o único do Canadá na RAF, e a turma é difícil de manejar. Acabam de voltar da França, onde foram severamente atingidos. Para falar com franqueza, estão saturados e com o moral baixo. Precisam de um pouco de organização adequada e de alguém que saiba falar-lhes com dureza, e acho que o senhor é a pessoa indicada.
O esquadrão estava em Coltishall, disse Leigh-Mallory, e o Major-Aviador Bader devia assumir seu posto imediatamente.
Major-Aviador Bader! Oito semanas antes ele fôra um simples tenente-aviador! Agora tinha alcançado os seus contemporâneos e podia trabalhar com afinco no seu primeiro comando.
— Acho que vou já travar conhecimento com esses camaradas.
Encontrou-os em alerta, num abrigo na extremidade do campo. Abrindo a porta de par em par, entrou caminhando desajeitadamente, sem se fazer anunciar, e pelo seu andar cambaleante viram que se tratava do novo major-aviador. Uma dezena de pares de olhos o examinaram friamente das cadeiras e das camas de ferro onde os pilotos dormiam de noite para o alerta da madrugada. Ninguém se levantou; ninguém se moveu; até as mãos permaneceram nos bolsos; e o local ficou em silêncio.
— Quem é o responsável aqui?
Um jovem corpulento se ergueu devagar de uma cadeira e disse:
— Acho que sou eu.
— Não há um comandante? — Bader perguntou, notando o círculo único em volta da manga que indicava o seu posto de tenente.
— Há um em qualquer parte, mas não está aqui — disse o jovem.
— Como é o seu nome?
— Turner... — e em seguida, após uma pausa nítida: — Sr. Major.
Bader olhou para eles um pouco mais, com a raiva flamejando por dentro. Em seguida, voltou-se bruscamente e saiu. A uns dez metros da porta estava um Hurricane. Na carlinga já havia um paraquedas, capacete e óculos. Bader passou a perna por cima da beirada e se ergueu para dentro. Se pensavam que o novo comandante era um aleijado, havia um meio danado de bom para fazê-los mudar de opinião. Começou a subir e apontou o nariz do Hurricane para o outro lado do campo.
Durante meia hora rodopiou com o Hurricane pelo céu, fundindo uma acrobacia em outra, sem pausas para ganhar altura de novo. Concluiu com uma de suas especialidades, na qual subia num loop, fazia um tonneau rápido no alto, entrando em parafuso, saía deste e completava o loop. Quando pousou na relva e rolou o avião para dentro, todos os pilotos estavam de pé do lado de fora do abrigo, olhando. Desceu sem auxílio, tomou o carro e partiu sem olhar para eles.

Na manhã seguinte chamou todos os pilotos ao seu gabinete. Mirou-os friamente enquanto permaneciam amontoados e movendo-se arrastadamente em frente à sua mesa, notando os uniformes amarrotados, os suéteres de gola alta, o cabelo por cortar e a má aparência geral. Afinal falou: — Olhem aqui... um bom esquadrão tem boa aparência. Quero que este seja um bom esquadrão, mas vocês são um bando de maltrapilhos. De agora em diante não quero ver botas de voo nem suéteres no refeitório. Vocês vão andar de sapatos, camisa e gravata.
Foi um erro.
Turner disse sem emoção:
— Quase todos nós só temos as camisas e gravatas que estamos usando. Perdemos tudo quanto tínhamos na França.
Serenamente, mas com um traço de contida cólera, Turner prosseguiu explicando o caos da luta incessante, como tinham sido, ao que tudo indicava, abandonados pela autoridade, inclusive pelo próprio comandante, como se haviam livrado deles mandando-os de um lugar para outro, sem que fossem recebidos em parte alguma, até que cada homem teve de cuidar de si mesmo, mantendo o seu próprio avião, furtando o seu próprio alimento e dormindo debaixo da asa; depois procurando gasolina suficiente para decolar e lutar, enquanto os obrigavam a recuar de um campo de pouso para outro. Sete já tinham sido mortos e um sofrera desequilíbrio nervoso — cerca de 50% de baixas.
Quando ele concluiu, Bader disse:
— Sinto muito. Peço desculpas pelo que disse.
Em seguida, quando lhe disseram que os seus pedidos de pagamento pela perda dos enxovais não foram atendidos, disse-lhes que mandassem fazer uniformes novos nos alfaiates locais.
— Garanto que serão pagos. Até lá, para esta noite, vejam se alguém pode dar ou emprestar a vocês sapatos e camisas. Disponho de algumas camisas e vocês podem levá-las todas emprestadas. Está bem?
Resolvida essa parte, disse:
— Agora fiquem à vontade. Em que combates vocês já tomaram parte e como se saíram?
A meia hora seguinte transcorreu numa animada discussão sobre os vários aspectos da profissão. De repente os pilotos estavam interessados e com boa vontade e Bader viu que gostava muito deles. Depois do almoço começou a levá-los para o ar em grupos de dois para treinos de formação, e gostou de ver que sabiam manobrar os Hurricanes, embora a formação deles (pelos padrões de Bader) fosse um tanto imperfeita. Naquela noite, no refeitório, estavam todos razoavelmente arrumados, de sapatos, camisas e gravatas, e ele aplicou-lhes o seu irradiante encanto pessoal. Não tardou que se quebrasse o gelo, e os pilotos aglomeraram-se em volta dele rindo e conversando. A vivacidade de Bader logo os empolgou, e perto da hora de se retirarem um deles disse:
— Sabe, Sr. Major? Nós estávamos com medo de que o senhor não passasse de outro irresponsável sem autoridade.
Na segunda manhã já havia um senso de comando no esquadrão. Logo nas primeiras horas o novo comandante começou a aparecer por toda parte, nos alojamentos, no hangar de manutenção, na cabina de rádio, na seção de instrumentos, no parque de armamento. Por volta das dez horas, tornou a levar grupos de Hurricanes para o ar, e dessa vez sua voz explodia, seca, pelo rádio, quando algum avião se atrasava ou saía de Posição. Mais tarde, no alojamento de oficiais, fez-lhes a primeira preleção sobre as ideias de tática de caça que tinha exposto em Duxford. Dentro de poucos dias o esquadrão inteiro estava entrando em posição como um team.
Entrementes, Bader lutava com um novo problema: o oficial mecânico do 242, Bernard West, tinha comunicado que todas as ferramentas e os sobresselentes das equipes de terra se haviam perdido na França. Ele não podia manter em condições de voo os 18 Hurricanes do esquadrão a menos que as suas requisições de novos fornecimentos fossem atendidas. Segundo West, o oficial-almoxarife da base dissera que as requisições tinham de percorrer os canais competentes e estes, achava West, estavam muito entupidos.
As indagações diretas de Bader provocaram resposta idêntica do oficial-almoxarife: ele estava quase esmagado pelo papelório. Coltishall era uma base nova e havia um mundo de coisas a serem adquiridas: cobertores, sabão, botinas.
— Literalmente não tenho funcionários suficientes nem para datilografar os formulários — disse ele.
— Os seus formulários e os seus cobertores e o seu maldito papel sanitário que vão para o inferno — replicou Bader com cólera. — Quero os meus sobresselentes e ferramentas e quero-os logo.
Poucos dias depois, quando nenhum equipamento tinha ainda aparecido, Bader entregou a West um pedaço de papel.
— Talvez você gostasse de mostrar este aviso ao Grupo — disse ele.
West arregalou os olhos ao ler o breve radiograma: "ESQUADRÃO 242 OPERACIONAL TOCANTE PESSOAL, MAS NÃO OPERACIONAL REPITO NÃO OPERACIONAL TOCANTE MATERIAL".
West ponderou discretamente que não sabia se o comandante da base permitiria que se enviasse uma mensagem tão incisiva. Bader disse que o comandante tinha ficado um pouco perturbado, sobretudo quando soube que a mensagem já havia seguido.
West quebrou uns momentos de carregado silêncio:
— Muito bem, Sr. Major, nós ou vamos receber as nossas ferramentas ou outro comandante.
E de fato a reação foi imediata. Naquela noite, um major da seção de material do Quartel-General do Comando de Caça telefonou para observar, com severidade, que havia uma norma própria para obter equipamento novo.
— Observei a norma própria e nada consegui — retrucou Bader.
Mas o indignado oficial do material insistiu em que as coisas tinham de ser feitas pela norma própria, e dois dias depois Bader foi chamado a comparecer perante o próprio Marechal-Chefe-do-Ar, o austero Sir Hugh Dowding. A princípio a entrevista foi difícil, mas o resultado final foi duplo: o indignado oficial do material foi dispensado das suas funções, e na manhã seguinte, antes mesmo de êle ter acabado de esvaziar a mesa para passá-la ao sucessor, os caminhões estavam rodando para o hangar de manutenção do Esquadrão 242.
Com vivo bom humor, West superintendeu a descarga de rodas sobresselentes, velas, anéis de êmbolo e mais umas 400 peças e miudezas. À noite, quando o último caminhão tinha partido, Bader perguntou:
— Isso é bastante, Sr. West ?
— Bastante! — declarou West. — Tenho material aqui para dez esquadrões, Sr. Major. O que me falta agora é espaço para guardá-lo.
Leigh-Mallory tinha acertado ao mandar Bader para o comando do 242. Os canadenses levavam uma vida vigorosa e sem formalidades, respeitando apenas regras em que viam utilidade. Reconheciam em Bader as mesmas qualidades e compreendiam suas contradições quando a sua própria exuberância se chocava com o seu arraigado senso de disciplina. Ele, por seu turno, compreendia e respeitava o desejo deles de saberem exatamente o que tinham de fazer, porque e quando, e a unidade havia finalmente sublimado os últimos vestígios de suas frustrações.
Um esquadrão em guerra é um corpo sensível. Os homens que voam e encontram a glória morrem jovens. As equipes de terra precisam executar sem cessar trabalho meticuloso, e se alguma vez fazem algo mal feito um piloto pode morrer. É preciso haver respeito e confiança recíprocos, e é ao comandante que cabe inspirar esse delicado equilíbrio. Bader vivia para o seu esquadrão e esperava que os seus homens fizessem o mesmo. Sua figura um tanto arrogante, de andar cambaleante, podia aparecer em qualquer lugar a qualquer hora: um chefe de família dominador e absoluto cuidando de manter a casa em ordem.
E quando a Batalha da Inglaterra começou, o Esquadrão 242 estava preparado.

Hurricanes em voo. Monopostos e de um motor, esses caças eram armados com oito metralhadoras nas asas.


Hitler planejava desembarcar 25 divisões na Inglaterra em 21 de setembro de 1940, e Göring, de acordo com o esquema, tinha de inutilizar a RAF em meados daquele mês. Com 4.000 aviões prontos para a luta logo do outro lado do Canal (contra os 500 caças britânicos de primeira linha, e poucas reservas), Göring desfechou o ataque no princípio de agosto. Para experimentar a força da oposição aérea, lançou bombas sobre Dover, Portsmouth e outras cidades litorâneas. Em seguida começou a martelar os campos de aviões de caça do sudeste da Inglaterra, chegando a enviar 600 aviões num único dia. A ação defensiva dos caças britânicos se revelou mais forte do que Göring imaginara, e mais de 200 aparelhos germânicos foram abatidos na primeira semana. Mas Bader e o Esquadrão 242 não participaram dessa batalha. Somente os caças do Grupo 11, estacionado no sul, foram enviados para enfrentar as grandes formações; o Grupo 12 foi deixado para proteger o coração industrial da Inglaterra, no norte de Londres.
Bader ora se enchia de mau humor, ora irrompia pelo refeitório de oficiais de Coltishall, onde ele e os pilotos se sentavam, agitados, aguardando a chamada telefônica das Operações, que não chegava. Em certa ocasião, Thelma procurou atenuar essa sofreguidão ponderando que ainda haveria muitas batalhas e que ele não era imortal.
— Não diga bobagens, querida—replicou ele. — Tenho uma chapa blindada atrás de mim, pernas de lata embaixo e um motor na frente. Como é que poderiam atingir-me?
Foi só a 30 de agosto de 1940 que o Grupo 11 pediu auxílio. Naquela manhã as Operações ordenaram ao Esquadrão 242 que se transferisse para Duxford, ao sul, onde estaria à mão para qualquer eventualidade. No seu conhecido campo de Duxford os homens de Bader esperaram... e esperaram. Almoçavam sanduíches e café junto dos aviões enquanto a Luftwaffe atacava furiosamente o sul da Inglaterra com ondas de aviões, mas mesmo assim nenhum chamado vinha. Bader sentava-se à mesa do telefone no refeitório de oficiais, com o cachimbo apagado apertado entre os dentes, excitadíssimo. A um quarto para as cinco o telefone tocou.
Das Operações veio em tom seco e rápido: "Esquadrão dois-quatro-dois: vamos! Inimigo a cinco mil metros em North Weald".
Enquanto as rodas, ainda girando, se dobravam para dentro das asas, Bader ligou o rádio e ouviu a voz fria e medida do Tenente-Coronel Woodhall, Comandante da Base de Duxford: "Alô, guia vermelho. Vetor um-nove-zero. Mais de 70 inimigos se aproximando de North Weald".
Segurando um mapa sobre a coxa, ele viu que 190 graus iam dar sobre a base de caças de North Weald — mas também dentro do sol. Sabia o que faria se fosse o comandante alemão: entrar primeiro partindo do sol! Do sudeste.
Isso era o diabo. Ele é que queria estar de sol acima. Sem ligar às instruções de Woodhall, desviou-se 30 graus para oeste. Poderia deixar de alcançar o inimigo! Mas sentiu que estava no caminho certo.
Estava a sudoeste de North Weald e ainda ganhando altura quando viu a massa de pontinhos; numerosos demais para serem ingleses. Comprimiu o manete e disse concisamente: "Aviões inimigos ao nível de 10 horas".
Agora os pontos pareciam um enxame de abelhas zumbindo sem parar em direção a North Weald, a 3.600 metros de altura. Os bombardeiros – Dorniers - vinham em linhas regulares, de quatro em quatro e de seis em seis e ele os estava contando: 14 linhas e, acima deles, uns 30 caças. Acima destes outros ainda. Mais de 100 aviões contra os seus nove. Os Hurricanes estavam acima do enxame principal, descendo sobre eles de costas para o sol.
De repente, uma onda de raiva agitou Bader. No impulso do momento, uma força diabólica levou-o a mergulhar bem no meio daquela formação tão certa e desfazê-la. Apontou para baixo o nariz do avião.
Caiu-lhes em cima, e imediatamente as treinadas linhas se desmancharam em guinadas loucas para a esquerda e para a direita, fora do seu caminho. Ele voou para baixo e para cima, virando para a direita. Uma pequena onda estava correndo pelo grande rebanho, e depois este começou a se dividir e a se espalhar.
Três 110 estavam rodando na frente, o último lento demais. Logo atrás, Bader comprimiu o botão com o polegar e quase instantaneamente o fogo brotou na raiz da asa do avião inimigo e ele se precipitou. Abaixo e à direita outro 110 estava rodopiando para sair de uma curva em perda. Bader apontou o nariz para baixo em busca dele e disparou durante três segundos. O 110 se balançou para frente e para trás. Ele disparou de novo e o avião caiu em chamas.
A exultação se arrefeceu quando no espelho acima dos seus olhos um 110 meteu o nariz por cima do leme, inclinando-se para dentro. Ele voltou-se bruscamente o mais que pôde e viu o 110 colado atrás, com brancos raios de balas traçantes saindo-lhe do nariz. Em seguida, o Messerschmidt mergulhou de repente e desapareceu por baixo da asa dele; estava voltando disparado para a sua base.
Bader se surpreendeu ao verificar que tinha baixado para 1.800 metros e estava suando, com a boca seca e respirando fundo. Subiu abruptamente, para voltar à luta, mas a luta havia terminado. O céu estava milagrosamente limpo de aviões e penachos de fumaça se erguiam dos campos.
De novo em Duxford, ébrios de satisfação, os pilotos apuraram o escore: dois para Bader, três para McKnight, um para Turner. Crowley-Milling também tinha abatido um e vários outros haviam igualmente marcado pontos. Doze confirmados e diversos avariados. O resto dos alemães havia fugido de volta. Não havia um único buraco de bala em nenhum dos Hurricanes.
E nem uma só bomba atingira North Weald.

Mais tarde, Bader explicou a Woodhall por que tinha desobedecido às instruções, expondo com vigor os seus pontos de vista. Conseguia falar à vontade com Woodhall, um grisalho e atarracado veterano da Primeira Guerra Mundial.
—Temos de pegar os alemães antes que cheguem aos seus alvos — disse Bader. — Não depois, quando eles já os alcançaram e estão deixando cair as suas bombas. Se o senhor não disser em tempo onde estão — direção e altura — decidiremos no ar sobre a nossa tática, nos colocaremos acima do sol e os mandaremos para o inferno.
— Estou com o senhor — disse Woodhall. — Hoje sem dúvida deu certo. Mas pode ser que estejamos avançando o sinal um pouco — acrescentou com severidade.
O Vice-Marechal-do-Ar Leigh-Mallory chegou de avião naquela noite trazendo muitas congratulações e Bader aproveitou a oportunidade para ventilar uma ideia nova:
— Na realidade, senhor, se tivéssemos mais aviões poderíamos ter derrubado muitos mais. E óbvio que o objetivo do voo em formação consiste apenas em trazer para a luta ao mesmo tempo o maior número possível de aviões. Uma vez iniciado o combate, não há mais nada que o comandante possa fazer. Se eu tivesse tido três esquadrões esta tarde, teríamos sido três vezes mais poderosos. E acho que o número de vítimas também seria menor.
Leigh-Mallory disse que iria pensar no assunto. E na manhã seguinte telefonou para dizer:
— Amanhã quero que o senhor experimente esse plano da grande formação. Temos os Esquadrões 19 e 310 em Duxford. Veja como se sai liderando todos os três esquadrões.
Com muito entusiasmo pelo jeito decidido de Leigh-Mallory, Bader passou três dias praticando decolagens com os três esquadrões e guiando-os no ar. A 5 de setembro tinha reduzido o tempo entre o alerta e a decolagem para pouco mais de três minutos.
A 7 de setembro Göring atacou Londres com a Luftwaffe. Começando de madrugada, vieram ondas de bombardeiros o dia inteiro, mas foi só no fim da tarde que os três esquadrões de Bader entraram em ação. Tinham eles atingido a uma altura de 4.500 metros quando Bader divisou o inimigo, uns bons 1.500 metros acima deles. Pelo menos 70 Dorniers e 110 misturados, e uns pontos mais acima — Messerschmidts 109. Não havia tempo para tática. Não havia nada a fazer senão espalhá-los atacando-os de baixo para cima.
Na confusa batalha que se seguiu, uma batalha a alta velocidade, o próprio Bader derrubou dois 110 e levou uns tiros de canhão na asa esquerda, mas conseguiu levar o seu Hurricane até ao campo. O jovem Crowley-Milling foi atingido e cortou o rosto numa aterragem forçada; quatro outros Hurricanes foram danificados e um dos pilotos foi morto. Ao todo, o Esquadrão 242 abateu comprovadamente 11 aparelhos inimigos. Mas os outros dois esquadrões, com Spitfires lentos na ascensão, tinham ficado tanto para trás que a bem dizer não tomaram parte na luta.
No dia seguinte, quando Leigh-Mallory apareceu, Bader disse: — Ontem não deu certo, Sr. Vice Marechal. Estávamos baixo demais Se ao menos tivéssemos podido decolar antes poderíamos estar por cima e prontos para atacá-los. Temos meios de localizar a reunião desses bombardeiros sobre a França. Por que não levantamos voo antes?
Essa estratégia podia permitir os alemães atraírem os caças para o ar e aguardarem até que o seu combustível se esgotasse para então enviarem os bombardeiros, mas Leigh-Mallory concordou em que valia a pena fazer uma tentativa.
— Vamos experimentar fazer vocês levantarem voo com maior antecedência para poderem ganhar a altura de que precisam — disse ele. — Veremos o que acontece.
No dia seguinte, Bader já tinha feito os esquadrões se elevarem a 6.600 metros quando localizaram dois grandes enxames de pontos dirigindo-se para Londres mais ou menos à mesma altura. As cifras foram boas naquele dia: 20 aparelhos inimigos destruídos contra a perda de quatro Hurricanes e dois pilotos. Em setembro de 1940 só as cifras tinham valor.
Mas Bader ainda não estava satisfeito. Ele voou para o quartel-general do Grupo 12 e disse a Leigh-Mallory:
— Senhor, se ao menos tivéssemos mais caças, poderíamos ter derrubado alemães às dezenas.
 — Eu ia falar com você a esse respeito disse Leigh-Mallory. — Se eu lhe der mais dois esquadrões você pode manobrá-los?
Cinco esquadrões. Mais de 60 caças! Até Bader se sobressaltou. Mas entusiasmou-se.
Conversaram então durante mais de uma hora, e Leigh-Mallory disse que estava espalhando o evangelho de Bader de desfazer formações inimigas mergulhando no meio delas. Bader tinha feito isso a primeira vez por raiva — mas naquele momento nasceu um novo processo tático. O Vice-Marechal-do-Ar (Leigh-Mallory) chamava o 242 de "esquadrão de desintegração".
Mas o combate incessante representava um esforço terrível para os pilotos. A vida destes era um contraste brutal. Nas horas de folga podiam contar anedotas num bar e dormir entre lençóis; de manhã despertavam para um mundo novo de caçadores e caçados. Sob essa constante tensão, só Bader parecia insensível ao medo. Nunca teve, como os outros, o que era conhecido como "o tique". Exteriormente deixava transparecer uma confiança tão grande que chegava a ser contagiosa. Até para Thelma não parecia real que êle pudesse ser morto. Um chefe assim é preciso porque os pilotos são jovens e humanos e muitas vezes estão aterrorizados a despeito da aparência despreocupada.
Cada vez que os esquadrões de Bader decolavam, a voz dominadora começava a disparar comandos pelo rádio, os quais, intencional ou acidentalmente, faziam com que a missão que tinham pela frente deixasse de ser encarada com nervosismo. Houve, por exemplo, o caso de Cocky Dundas, de 19 anos de idade, que teve o seu avião seriamente atingido logo no primeiro combate. Um mês depois, ainda conturbado, estava ele voando com Bader na sua primeira missão. Aprestaram-se a toda pressa e êle estava com "o tique", a boca seca, tremores no estômago e marteladas no coração. Então lhe chegou aos ouvidos, enquanto subiam, a voz daquele estranho chefe sem pernas:
— Olá, Woodhall, tenho um jogo de squash com Peters marcado para daqui a uma hora. Quer fazer o favor de telefonar para ele e dizer que vou demorar um pouco?
(Meu Deus. Sem pernas! Jogando squash)
Voz de Woodhall:
— Esqueça isso agora, Douglas. Vetor um-nove-zero. Sete mil metros.
— Vamos, Woodhall, telefone para ele agora.
— Não tenho tempo, Douglas. Há uma coisa no quadro avançando para a costa.
— Ora, que diabo! Arranje tempo. Você está sentado em frente a uma fila de telefones. Apanhe um e telefone para o rapaz.
— Está bem, está bem — respondeu o filosófico Woodhall. — Em nome da paz e do sossego vou telefonar. Agora, que tal você continuar a guerra?
Dundas prosseguiu com o coração mais leve, como todos os outros.
A 15 de Setembro de 1940, o maior dia da Batalha da Inglaterra, o bando de 60 caças de Bader, conhecido oficialmente como Regimento do Grupo 12, entrou em ação como unidade pela segunda vez. De madrugada, ondas de aviões alemães começaram a transpor o Canal, e esquadrões da RAF, um após outro, fizeram-se ao ar para recebê-los. A formação de Bader foi chamada duas vezes, e à noite, quando fizeram o levantamento da batalha do dia, verificaram que o Regimento do Grupo tinha justificado plenamente a sua existência. Nas duas grandes batalhas daquele dia os pilotos dos cinco esquadrões do Regimento tiveram a seu crédito 52 aviões inimigos destruídos e mais oito prováveis.
Leigh-Mallory telefonou naquela noite:
— Douglas, que espetáculo maravilhoso hoje! Está absolutamente claro que as suas grandes formações estão compensando.
Bader respondeu:
— Muito obrigado, Sr. Vice Marechal, mas passamos um aperto na segunda viagem. Tornaram a chamar-nos muito tarde e os alemães estavam muito acima quando os avistamos. O que eu realmente gostaria de fazer, Sr. Vice Marechal, era abater um reide completo de modo que não regressasse um único alemão.
Leigh-Mallory riu.
— Sedento de sangue, hein? Se você continuar assim acaba tendo a oportunidade que deseja.
A oportunidade veio no dia 18.
Por volta de quatro e meia da tarde, os cinco esquadrões foram chamados. Estavam voando logo abaixo de uma fina camada de nuvens a uns 6.300 metros de altura, sentindo-se confortavelmente seguros — ninguém poderia atacá-los de surpresa através daquela cortina — quando Bader divisou dois pequenos enxames de aviões voando a 4.800 metros: uns 40 ao todo. Mais aviões ingleses que inimigos! Era inacreditável! Enquanto os caças circulavam para se reunirem atrás, ele viu com feroz alegria que os inimigos eram todos bombardeiros: JU 88 e Dorniers. Nenhum sinal de 109. Os bombardeiros estavam abaixo, bem onde ele queria que estivessem. Mergulhou, visando a fila da frente, e o ávido bando se precipitou atrás dele.
A ação que se seguiu "foi um tanto perigosa do ponto de vista de colisão", disse Bader posteriormente, "mas foi um estado de coisas plenamente satisfatório".
No alojamento de oficiais, uma multidão de joviais pilotos se amontoou em roda do oficial de informações, quase todos declarando que tinham feito vítimas. Nunca nenhum deles tinha visto tantos paraquedas. Bader laconicamente escreveu em seu diário: "O Regimento destruiu 30 aviões, mais seis prováveis, mais dois danificados. Meu escore: um JU 88, um Do 17. Não houve vitimas no esquadrão, nem no Regimento".
Desse dia em diante a batalha começou a perder intensidade. Pelo fim de setembro os bombardeiros só apareciam raramente; em seu lugar vinham bandos de 109, insinuando-se pelos colchoes de nuvens com pequenas bombas brancas pendentes de porta-bombas improvisados. Depois, até esses assaltantes sorrateiros começaram a escassear. Por fim, a nação pode rejubilar-se, compreendendo que aquela altura nem mesmo um louco iria invadi-la.
Bader foi talvez o único a ficar um pouco triste com o fim do barulho. O seu Regimento derrubou 152 aviões inimigos, contra a perda de 30 pilotos e um número um tanto major de aviões. Mas então o encontro deles de madrugada foi ficando raro e os dias se tornaram menos imprevisíveis: voltavam a prontidão normal de Coltishall.
Bader recebeu duas condecorações: a Ordem de Serviços Relevantes e a Cruz da Aviação. Suas teorias sobre tática de caça estavam merecendo respeitosa consideração por parte do Ministério da Aeronáutica; numa conferência ali verificou que era o único oficial de posto inferior a vice-marechal-do-ar. Além do mais, estava-se tornando famoso, apesar da orientação da RAF no sentido de dar relevo ao espirito de equipe, de não mencionar o nome dos ases nos seus comunicados à imprensa. Cada vez que ocorria uma nova façanha de um piloto de caça sem pernas, a imprensa e o rádio sabiam muito bem de quem se tratava. Mas o próprio Bader estava ocupado demais para tomar conhecimento da publicidade: continuava a viver no pequeno mundo do esquadrão, do combate e da tática.

Uma esquadrilha de Hurricanes em formação em grupos, voando acima de um mar de nuvens.


No começo de março de 1941, Leigh-Mallory mandou chamá-lo:
— Estamos elaborando umas ideias para realizar o ataque através da França no verão — disse ele. — Vagas de caças, mas coisa maior do que tudo quanto já experimentamos. Para isso estamos organizando o nosso sistema de "regimento" e você deverá ser um dos comandantes. Você provavelmente ira para Tangmere.
Há ocasiões em que as palavras soam como música. Em termos militares, isso significava uma promoção a tenente-coronel. Mas, após expressar seus agradecimentos, Bader perguntou:
— Poderei levar comigo o Esquadrão 242, Sr. Vice Marechal?
— Receio que não — respondeu Leigh-Mallory. — Você já tem lá três esquadrões. Tudo Spitfire.
Bader fez sentir, sem jeito, que nesse caso não estava muito certo se queria ser comandante do regimento de aviação.
Leigh-Mallory disse com firmeza:
— Você fara o que lhe for ordenado.
Em seguida, pois conhecia bem aquele homem, acrescentou:
— Se o senhor levar o 242, não poderá deixar de favorecê-los um pouco. Eu o conheço e sei como os considera.
Bader se apresentou em Tangmere em meados de março, e imediatamente começou a treinar com afinco os seus três esquadrões de Spitfires. Ao contrario do que ocorrera nos seus primeiros dias no 242, não foi preciso conquistar a confiança do pessoal. Era o primeiro comandante de regimento da RAF e os soldados e oficiais atendiam imediatamente os seus brados ríspidos. Woodhall, recentemente promovido a coronel-aviador, também chegou a Tangmere mais ou menos aquela época, para comandar a base. Leigh-Mallory queria reunir o seu team antigo.
Bader verificou que quase todos os pilotos tinham participado sem interrupção da Batalha da Inglaterra e vários deles, sobretudo os comandantes, apresentavam evidentes sinais de esgotamento. Pediu que Stan Turner fosse transferido para o comando de um dos esquadrões e também trouxe Crowley-Milling do 242 como comandante de voo. Bader se encarregou pessoalmente do esquadrão que tinha menos experiência de combate.
Como seu substituto, muitas vezes escolhia o desengonçado Cocky Dundas, que sua voz tanto animara durante a Batalha da Inglaterra. (A opinião e os ensinamentos de Bader pareciam ter sido bons. Poucos anos depois Crowley-Milling e Dundas eram tenentes-coronéis, condecorados com a Ordem de Serviços Relevantes e a Cruz da Aviação. Aos 25 anos Dundas se tornou um dos mais jovens coronéis da RAF).
Não tardou que Leigh-Mallory começasse a enviar uns poucos bombardeiros para além do Canal, rodeados de hordas de caças, porque a sua ideia era forçar os alemães a levantarem voo e lutarem. Durante algumas semanas essa estratégia não deu resultado. O regimento de Tangmere raramente via mais de três ou quatro Messerschmidts de uma vez, em geral bem fora da rota, a espera de algum aparelho extraviado.
Finalmente Leigh-Mallory concluiu que os Blenheims com uma tonelada de bombas eram leves demais para a provocação planejada, e então conseguiu, à força de persuasão, alguns quadrimotores Stirlings, que podiam transportar quase seis toneladas de bombas cada um. Amontoando uns 200 Spitfires em volta deles, começou a mandá-los para além da costa, contra alvos interiores: entroncamentos ferroviários e fabricas de aviões. Essa tática começou a dar resultados. Os caças germânicos puseram-se a levantar voo em grupos de 30 e 40. E a RAF os derrubava à razão de três aparelhos alemães para cada dos Spitfires perdidos. Raramente era abatido um bombardeiro, e assim mesmo sempre pela artilharia antiaérea.
Salvo quando o tempo estava ruim, Bader levava quase diariamente o seu regimento para uma batida, atraindo o inimigo para o combate. Todo o mundo sentia que ele era invencível e que essa força escudava aqueles que voavam com ele. Era parte do seu reconhecido gênio para o comando de caças. Thelma sabia que o inimigo nunca o derrotaria.
Mas perto do fim de julho os seus superiores começaram a preocupar-se com ele. Em sete dias realizou dez sortidas — o bastante para derrubar o homem mais forte, quanto mais um com pernas artificiais. Agora já fizera mais sortidas que qualquer outro no Comando de Caças, e era o último dos primitivos comandantes de regimento ainda em ação: o resto morrera ou fora mandado repousar. Um jornal londrino escreveu que Bader já fizera bastante, que era valioso demais para perdê-lo e que devia ser afastado das operações. Ele leu isso com indignação. Woodhall começou a dizer-lhe que ele devia tirar uma folga, mas Bader se recusava terminantemente.
Por fim, o Vice-Marechal-do-Ar Leigh-Mallory disse:
— É melhor você deixar de participar das operações por algum tempo, Douglas. Você não pode continuar assim indefinidamente.
— Ainda não, Sr. Vice Marechal — respondeu Bader. — Estou em plena forma e prefiro continuar.
Mostrou-se tão obstinado que Leigh-Mallory transigiu com relutância:
— Muito bem, vou deixá-lo ficar ate o fim de agosto. Depois terá de sair.
Não continuava lutando para aumentar o seu número de aviões inimigos abatidos, embora, com 20 1/2 comprovadamente destruídos, fosse o quinto na lista dos pilotos da RAF com escores mais altos. O regimento era tudo para ele e o combate um tóxico que respondia ao seu anseio de uma finalidade e de realização.

No dia 9 de agosto de 1941 saiu tudo errado desde o começo.
Primeiro, foi uma confusão na decolagem e o esquadrão de cobertura alta perdeu o rumo. Transpondo o Canal, os outros não conseguiram distinguir o menor sinal dele, e Bader não queria violar o silencio do radio para chamá-los. Depois, no meio da travessia, seu indicador de velocidade do ar enguiçou, o que iria perturbar os cálculos para chegar sobre Lille à hora marcada.
Exatamente quando cruzavam o litoral da França, viram uns 12 Messerschmidts bem na frente, a uns 600 metros abaixo, subindo na mesma direção. Nenhum deles parecia estar olhando para trás. Eram presas fácil.
Bader disse incisivamente: "Dá bem para todos. Derrubem-nos à proporção que forem chegando", e escolheu para ele um dos guias. Aproximando-se com demasiada velocidade, calculou muito mal e, para evitar uma colisão, teve de inclinar o Spitfire e jogá-lo bem para baixo.
Furioso, nivelou novamente a uns 7.200 metros de altura, observando com toda atenção a retaguarda e verificando que estava só. Então viu de súbito mais seis Messerschmidts na frente, espalhados em três pares paralelos, com os narizes apontando para a direção oposta. Nova presa fácil! Sabia que devia subir e deixá-los; estava cansado de repetir aos seus pilotos que nunca se aventurassem sozinhos. Mas a tentação foi irresistível. Olhou de novo para trás. Tudo limpo. A avidez afastou a prudência e ele foi sub-repticiamente colocar-se atrás do par do meio. Nenhum dos pilotos percebeu. De 100 metros ele abriu fogo contra o de trás. O avião inclinou-se abruptamente sobre uma asa e se abateu todo em chamas. Os alemães continuaram cegamente para diante.
Apontou para o guia, a uns 150 metros na frente, e deu-lhe uma rajada de três segundos. Voaram estilhaços e rolos de fumaça branca jorraram do avião. Os caças da esquerda estavam-se voltando para Bader e ele virou violentamente para a direita a fim de escapar. Os dois aviões da direita continuavam voando para frente e, por pura bravata, ele manteve seu rumo para passar entre eles.
Algo o atingiu. Sentiu o impacto, mas a sua mente estava curiosamente entorpecida. Alguma coisa segurava o seu aparelho pela cauda, fazendo-o girar e obrigando-o a dar um brusco mergulho em espiral. Olhou confusamente para trás para ver se alguma coisa o estava seguindo e teve um choque ao verificar que estava faltando ao Spitfire tudo quanto ficava para trás da carlinga: fuselagem, cauda, quilha—tudo tinha desaparecido. Com certeza, o segundo 109 se havia precipitado sobre ele cortando-lhe aquela parte com a hélice.
Arrancou o capacete e a máscara e deu um forte arranco na bolinha de borracha sobre a sua cabeça. A tampa se rasgou toda e um ruído penetrante lhe feriu os ouvidos. Agarrando a borda da carlinga para erguer-se, pensou que talvez não o conseguisse sem o impulso das pernas que em nada podiam ajudar. Lutou desesperadamente para levantar a cabeça acima do para-brisa e de repente, quando o vento dilacerante o alcançou, sentiu que estava sendo sugado para fora.
Estava fora! Não, algo o prendia. O rígido pé da perna direita tinha-se agarrado firmemente em alguma saliência da carlinga. O vento lhe açoitava o corpo exposto e lhe gritava nos ouvidos enquanto o caça quebrado, arrastando-o pela perna, mergulhava. Então, de repente, o aço e o couro rebentaram com um estalo.
O ruído e as pancadas cessaram. Num lampejo, seu cérebro se aclarou e ele puxou o anel do paraquedas, ouvindo o barulho que este fez ao abrir-se. Depois começou a flutuar, muito acima da terra verde e salpicada de manchas doutras cores. Algo lhe bateu no rosto e ele viu que era a perna direita da calça, aberta na costura. A perna havia desaparecido.
Que sorte, pensou, ter pernas que podiam soltar-se. Se não fosse isso, teria morrido segundos antes.
Era uma sorte, também, não ir aterrar sabre a rígida perna de metal. Descer de paraquedas equivale a saltar de um muro de quatro metros de altura, e cair ao solo sobre a sua perna direita artificial presa ao coto sem joelho teria sido como aterrar sabre um rígido poste de aço. Isso lhe abriria a bacia de maneira horrível.
A terra, que estava tão distante, de súbito se ergueu ferozmente. Então sentiu algumas costelas se partirem quando um joelho lhe bateu no peito, e a consciência lhe fugia.

Durante os seus três anos e meio como prisioneiro de guerra, Bader foi um constante problema para os alemães. No hospital da Franca para onde primeiro foi levado persuadiu seus captores a pedirem a RAF outra perna para ele, a qual posteriormente foi lançada de paraquedas. Em seguida, recompensou-os fugindo através de uma janela do terceiro andar, descendo 12 metros ate ao solo, por uma corda feita de lençóis, com nós. Recapturado um dia depois, foi embarcado para a Alemanha.
Ainda firmemente disposto a escapar, Bader experimentou um plano após outro, e os alemães, esforçando-se por enfrentar e dominar esse impossível prisioneiro, que deveria estar numa cadeira de rodas, iam-no transferindo de um campo para outro. Por fim, mandaram-no para Colditz, um sombrio castelo medieval, considerado a prova de fuga e reservado para prisioneiros incorrigíveis. Ali foi libertado em abril de 1945 pelo Primeiro Exercito Norte-Americano, em seu avanço.
Quando voltou para a Inglaterra, Bader verificou que era uma lenda viva, com gente em toda parte bradando que queria vê-lo. Durante algum tempo refugiou-se com Thelma num discreto hotel do interior. Em seguida, ansioso de novo por obrigações, subiu um dia num Spitfire e rodopiou com ele pelo céu. No primeiro minuto viu, com júbilo, que nada perdera de sua perícia. Dali a dois dias, para consternação de Thelma, estava fazendo planos para uma missão no Extremo Oriente contra os japoneses. Mas o pessoal do Ministério da Aeronáutica, embora atencioso, não mostrou boa vontade. Ele já tinha feito mais do que o suficiente, disseram. Continuava fazendo planos quando a bomba atômica foi atirada e a luta cessou.

Douglas Bader é considerado o melhor comandante e tático de caça da Segunda Guerra Mundial, e um dos melhores pilotos. Mas o seu maior triunfo não são os seus combates aéreos; estes foram apenas um episódio da vitória mais importante que ele conquistou na sua própria guerra pessoal, que prossegue sem cessar, para ser vencida de novo todo dia. Ele se vem dedicando cada vez mais a encorajar outras pessoas que tiveram membros amputados, e elas acham que a sua simples existência, sua resistência e o seu exemplo são um tônico. Ele as inspira de um modo que médico algum pode igualar.
Em princípio de 1946 aceitou um emprego na Shell Petroleum Co. Ltd., pilotando o seu próprio avião por uma grande parte do mundo, a serviço. Em todos os lugares onde esteve — Europa, África, Oriente Médio e Extremo Oriente — sempre achou tempo para visitar hospitais, conversar com as pessoas que haviam perdido membros e ajudá-las a aprender a andar outra vez.
Num hospital dos Estados Unidos, que visitou em 1947, encontrou um veterano sem pernas esforçando-se por andar com o auxílio de barras paralelas baixas. Bader caminhou para ele com seu andar desajeitado e perguntou-lhe:
— Por que o senhor não sai dessas barras e experimenta andar sem elas?
— Quem é o senhor? — rosnou o homem.
— Apenas um inglês de passagem por aqui, mas também perdi ambas as pernas e só tenho um joelho, não dois como o senhor.
O homem deu um arranco para fora e Bader ficou ao lado dele, ajudando-o a andar cambaleando para um lado e para outro pela sala. Passado algum tempo, o paciente conseguiu dar os seus dois primeiros passos sem auxílio, e a sua atitude mudou completamente.
— Diabo — disse ele. — Quase meti uma bala na cabeça quando acordei hoje de manhã, mas agora acho que está tudo bem outra vez.
Em Chicago, Bader leu uma notícia sobre um menino de dez anos que teve ambas as pernas amputadas abaixo do joelho. Douglas passou uma hora e meia à beira do leito dele, mostrando-lhe que as pernas não têm tanta importância assim. Depois o pai do menino disse, preocupado:
— Ele ainda não avalia a gravidade da situação.  
— E é uma coisa que ele nunca deve avaliar — replicou Bader com exaltação. - O senhor tem de fazer com que ele sinta que isto é outro jogo que ele precisa aprender, e não algo que o deixará aleijado. Se o amedrontar, ele estará desde logo derrotado.

Em resumo, é essa a filosofia de Douglas Bader. Ela diz respeito não apenas a pernas, mas também à própria vida.