segunda-feira, 23 de março de 2015

A INDÚSTRIA BRITÂNICA

Uma litografia de 1846 representa a locomotiva Acheron soltando fumaça ao emergir em triunfo das sombras de um túnel. A máquina ferroviária - aperfeiçoada inicialmente em 1829 - era apenas uma das manifestações da tecnologia movida a vapor que durante a primeira metade do século XIX ajudaram a fazer da Grã-Bretanha a primeira nação industrial do mundo. Numa época em que nada parecia impossível, a locomotiva, ou "grande cavalo a vapor", como era conhecida, tornou-se um símbolo da força propulsora da iniciativa britânica.


     No dia 8 de julho de 1808, o Times de Londres informava: "Temos informações críveis de que há uma máquina a vapor preparando-se agora para correr contra qualquer égua, cavalo ou capão que possa aparecer no próximo encontro de outubro em Newmarket; no momento, as apostas estão fixadas em 10 mil libras; a máquina é a favorita". "A mais assombrosa máquina jamais inventada", exclamava o Observer na semana seguinte, "ela galopa de quinze a vinte milhas por hora em qualquer circuito". Nas semanas subsequentes, os excursionistas podiam satisfazer a curiosidade observando a miraculosa máquina, inventada pelo engenheiro da Cornualha e entusiasta do vapor Richard Trevithick, que fazia viagens experimentais sobre um trilho adiante da Rua Gower, no norte de Londres; se fossem suficientemente intrépidos, poderiam até embarcar para um passeio. O cartão de entrada para a linha férrea de Trevithick exibia o lema da máquina — "Alcance-me quem puder" — e jactava-se de "potência mecânica subjugando a velocidade animal".
     A prometida corrida de Newmarket jamais aconteceu: os trilhos saíram do lugar no solo lamacento da Rua Gower, a máquina descarrilou e bateu. Mas àquela altura, testemunhas oculares como John Isaac Hawkins já tinham percebido as qualidades do engenho. "Andei, com o relógio na mão, à velocidade de doze milhas por hora (...) Mr. Trevithick deu-me então sua opinião de que andaria a vinte milhas por hora, ou mais, numa via reta". O inventor conseguira o que queria: o público estava impressionado. A máquina era, com efeito, a "favorita".

     Os jogadores que apostaram tanto na locomotiva de Trevithick e as multidões que acorreram para ver suas exibições em Londres já tinham larga experiência da capacidade da "potência mecânica": no início do século XIX, a Inglaterra vivia um período de mudanças drásticas — às vezes, dilacerantes — à medida que os avanços tecnológicos dos cem anos anteriores eram incorporados à economia da nação, com resultados explosivos.
     A Grã-Bretanha industrial estava em marcha, com sua quietude rural rompida pelo barulho das novas fábricas, sua noite iluminada pelo fulgor estranho das fornalhas, sua paisagem cruzada por canais, túneis e imensas pontes. As chaminés lançavam fumaça aos céus; em torno delas, amontoavam-se novas vilas e cidades, formigantes de membros de uma nova classe trabalhadora industrial. Em poucas décadas, os sucessores de Trevithick criariam uma rede ferroviária que cobriria a nação e aproximaria metrópole e províncias. Na metade do século, o domínio comercial britânico estaria estabelecido, com seus bens manufaturados presentes em toda a Europa, nas Américas e em seu novo e crescente império.
     Junto com os triunfos, porém, viriam as atribulações. A mais próspera sociedade que o mundo jamais vira seria construída sobre o sofrimento de homens, mulheres e crianças que trabalhavam um número estarrecedor de horas em condições indescritíveis, viviam amontoados em porões e cortiços imundos e insalubres e passavam fome durante periódicas recessões. Apesar disso, as realizações da Grã-Bretanha provocavam a inveja do mundo e, à medida que o século avançava, outras nações lutariam para imitar a "Revolução Industrial" dela — e, se possível, superá-la.
     Empoleirada na costa noroeste da Europa continental, a Grã-Bretanha poderia parecer um cenário improvável para tais mudanças. Londres, sua capital, era um agitado centro de comércio com o continente e as colônias britânicas da América do Norte e do Caribe. Mas para além dos limites da cidade, estendiam-se os condados agrícolas do sul da Inglaterra e East Anglia, pontilhados por pequenas e sonolentas vilas e aldeias onde, em 1700, a vasta maioria dos cinco milhões de habitantes da Inglaterra trabalhava o solo, como vinha fazendo havia séculos. Mais adiante, o interior ficava mais selvagem, mais esparsamente habitado, com vastas regiões de terras incultas e pântanos, tanto na direção do País de Gales como para o norte, onde os montes Peninos dividiam o país entre leste e oeste, até a fronteira escocesa.

A Revolução Industrial da primeira metade do século XIX modificou a face da Grã-Bretanha. Novos empreendimentos surgiram em torno das minas de carvão e dos rios de montanha que propiciavam fontes de energia. A força de trabalho começou a se deslocar do campo para os novos centros manufatureiros que surgiram em todo o país. Ao mesmo tempo em que os negócios cresciam vertiginosamente, a população aumentava: entre 1800 e 1850, o número de bretões mais que dobrou, chegando a 21 milhões. Cerca de sessenta por cento deles eram habitantes urbanos, uma porcentagem mais alta do que em qualquer país do mundo.

     Embora selvagens, essas regiões tinham seus recursos. Durante séculos, o ferro fora extraído e fundido por pequenos grupos de carvoeiros que labutavam nos vales do sul do País de Gales, no oeste das Midlands e nas encostas do sul dos Peninos. As charnecas encharcadas do norte e boa parte de West Country, regiões áridas demais para sustentar gado ou trigo, mostraram-se ideais para a criação de ovinos. Ali, os camponeses montaram suas próprias indústrias de pequena escala, fiando e tecendo lã em suas casas. E os habitantes do condado de Lancashire, no lado ocidental dos Peninos, descobriram que seu clima úmido era favorável à fiação e tecelagem dos fios de algodão quebradiços importados do Mediterrâneo.
     No início do século XVIII, essa atividade industrial ainda engatinhava e pouco contribuía para diminuir a importância da agricultura na economia britânica. Mas mesmo nas regiões mais prósperas do sudeste, o campo dava pouco mais que a subsistência para a população existente. Padrões totalmente idiossincráticos de uso da terra, desenvolvidos desde os tempos medievais, tinham feito da paróquia típica uma colcha de retalhos anárquica de pequenos lotes, sem cercas e marcados apenas por pedras de limite. As posses maiores quase sempre não eram contínuas, mas espalhadas em torno do distrito. Os camponeses e pequenos agricultores que cultivavam essas terras também tinham geralmente o direito de pastorear os poucos animais que tivessem e colher combustível nas extensas áreas de terras comunais, existentes em todo o país. As famílias mais pobres não tinham posse alguma, mas arrancavam a subsistência das terras comunais, onde construíam suas choupanas. Pouco se sabia sobre o uso de fertilizantes ou criação científica. E uma vez que a maioria dos animais era abatida a cada outono por falta de alimento no inverno, não se constituíam grandes rebanhos; bois e porcos dificilmente atingiam tamanho melhor.
     Qualquer região que conseguisse produzir um excedente defrontava-se então com o problema de transportar seus produtos para possíveis compradores: as estradas estavam em pior condição do que sob a ocupação romana, 1 500 anos antes. Na maior parte do ano, eram rios de lama impraticáveis para veículos sobre rodas. Em 1731, um certo John Metcalf apostou corrida com o coronel Liddell, de Londres a Harrogate, no condado nortista de Yorkshire. Apesar de ser cego e andar a pé, Metcalf fez o percurso em seis dias, chegando dois dias antes do coronel, que viajava de coche. Havia gente que se afogava nos buracos de East Anglia e as estradas em torno da cidade de Lincoln acabaram-se de tal forma que se construiu um farol para orientar os viajantes noturnos. Era muito difícil obter dinheiro para melhoramentos na agricultura ou nas comunicações numa época que não reconhecia outra forma de moeda senão o dinheiro vivo. Era um sistema que condenava a economia a uma inatividade indolente.
      No decorrer do século XVIII, porém, muito mudou quando donos de terras "melhoradores" abandonaram as práticas agrícolas tradicionais. A criação seletiva produziu novas variedades de animais que cresciam mais e mais rápido. Em 1710, a ovelha vendida no mercado Smithfield de Londres pesava, em média, 17 quilos; em 1795, esse peso havia mais que duplicado. Desenvolveram-se outras raças de ovinos para fornecer uma lã mais longa e grossa e as novas vacas davam mais leite e carne.
     Novas variedades de pasto, junto com tubérculos recentemente introduzidos, como o nabo, forneciam forragem que permitia a sobrevivência dos animais durante o inverno. A agricultura melhorou com a popularização do "sistema de Norfolk", desenvolvido ao longo de gerações pelos fazendeiros daquele condado, que conseguiam tirar o melhor do solo através do uso intenso de esterco e outros fertilizantes e da eficiente rotação de culturas, alternando as safras de cada campo e dando à terra descansos periódicos. "As grandes fazendas são a alma da cultura de Norfolk", observou o panfletista Arthur Young, principal defensor das novas técnicas. Os melhoradores partilhavam dessa opinião e a aristocracia e pequena nobreza fundiária que dominavam o Parlamento começaram a aprovar leis de cercamento (enclosure) que reorganizavam as paróquias para formar posses maiores, ao mesmo tempo em que cercavam as terras comunais como propriedade do terratenente local. Uma legislação como essa tinha sido defendida a intervalos durante séculos, mas na segunda metade do século XVIII sua frequência aumentou muito: a década de 1740 trouxe 64 leis de cercamento; a de 1800, 574.
     A nova ordem agrícola apresentava possibilidades excitantes para aqueles em posição de tirar vantagem dela, mas não tinha lugar para o pequeno agricultor. Era preciso um investimento pesado em fertilizantes e maquinaria e grandes extensões de terra para um cultivo eficiente. Embora os que tivessem perdido terras e direitos comunais ganhassem alguma compensação com as novas leis, havia poucos que podiam pagar pelos aluguéis mais altos que os novos terrenos requeriam. Muitos foram forçados a se tornarem assalariados onde antes tinham sua própria terra; outros ficaram desempregados. Com frequência, comunidades rurais inteiras foram destruídas pelos cercamentos. A vida no campo, que jamais fora idílica, tornava-se insuportável. Em 1800, até mesmo Arthur Young já estava perdendo um pouco de seu entusiasmo pelos cercamentos. Naquele ano, uma visita à choupana de um sem-terra fez muito para enfraquecer seu ardor. "Numa cama em que mal caberia um porco", relembrou ele, "estava a mulher muito doente e gemendo; ela caíra recentemente de cama e seu filho jazia morto no berço; meu coração desfaleceu diante de tanta miséria e de um quarto tão escuro, frio e desgraçado".
     Apesar dessa desgraça, a população da Grã-Bretanha estava aumentando, nutrida pelo fornecimento de alimentos melhores e mais confiáveis. Em 1801, Inglaterra e País de Gales já tinham mais de nove milhões de habitantes. A agricultura florescia e a prosperidade resultante espalhava-se por diferentes setores da sociedade; os grandes terratenentes estavam mais ricos do que nunca e a abastança deles ajudava a enriquecer médicos, advogados, corretores de terras e lojistas das cidades.

Um oásis de ordem no superlotado rio Tâmisa, as docas de Londres em Wapping aparecem semi-construídas nesta aquarela de 1803. Até o século XIX, todo o comércio marítimo de Londres chegava a ancoradouros ribeirinhos. Com o crescimento da produção industrial, o Tâmisa ficou atravancado por navios que, em sua maioria, faziam a ligação da metrópole com o império ultramarino, e os furtos tornaram-se comuns. A partir de 1802, construíram-se caís fechados, protegidos por altos muros. O primeiro, aas docas das Índias Ocidentais, era também o maior, com mais de seis vezes os 18 hectares da doca de Londres.

     Em todo o país surgiu uma rede de bancos e companhias financeiras atrás da nova riqueza agrícola. O Banco da Inglaterra, fundado em 1694 a fim de levantar fundos para reduzir a dívida nacional, tornara-se aos poucos o agente regulador da economia britânica. Ele agora coordenava o que estava se tornando, apesar das diferenças locais e ineficiências, um sistema bancário nacional. Só na Inglaterra, havia mais de cem bancos, em 1784. Dez anos depois, esse número triplicara.
     Crescia também a popularidade de novos instrumentos financeiros; havia menos suspeitas quanto ao crédito, e ações e participações de vários tipos começavam a proliferar, dando mais flexibilidade aos negócios. A bolsa de valores, fundada num café de Londres em 1762 como um clube comercial informal para negociantes de ações, crescera a passo acelerado. Em 1800, já era uma instituição nacional respeitada. Para os mais espertos, havia enormes fortunas a fazer no mundo das finanças e a especulação na bolsa de valores tornou-se uma espécie de esporte nacional, praticado por todos os cidadãos, exceto os mais humildes. Alguns ficaram ricos da noite para o dia; muitos perderam tudo o que tinham. Entrementes, acumulava-se capital para reinvestimentos.
     Empréstimos bancários e individuais ajudaram a melhorar as estradas no final do século XVIII, quando engenheiros como Thomas Telford e John MacAdam descobriram maneiras de fazer leitos firmes e duráveis que ficavam estáveis sob mau tempo. Empresas construíram estradas privadas, usando o pedágio para fazer uma manutenção constante. Os tempos de viagem diminuíram impressionantemente: a jornada de diligência de Londres a Carlisle, que demorava quatro dias e meio em 1750, passou a levar apenas três dias em 1773. Muito do dinheiro economizado pelos mais ricos alimentava a construção de um sistema fluvial. O uso de canais, introduzido em 1761, disseminou-se rapidamente. Os motivos econômicos a favor deles eram simples: enquanto oito cavalos eram necessários para puxar uma carroça de 6 toneladas em terra, um único animal podia rebocar uma barcaça de 25 toneladas. Nos primeiros anos do século XIX, milhares de quilômetros de canais já atravessavam o país, ligando todos os rios e cidades principais.
     O capital disponível podia também financiar a nascente indústria nacional. Na segunda metade do século XVIII, quando as antigas colônias americanas amadureceram e guerras ultramarinas trouxeram a Índia e a América do Norte para o aprisco imperial, os empresários britânicos descobriram um vasto mercado para seus bens manufaturados. Esse fato, junto com a demanda doméstica dos fazendeiros ricos e de uma população rural em expansão, deflagrou uma febre de atividade comercial. Ao mesmo tempo, a produtividade aumentou graças a uma série de avanços tecnológicos. O tear mecânico de Edmund Cartwright, introduzido em 1785, foi apenas um de uma série de inventos que contribuíram para aumentar a produção de algodão. E o forno de revérbero desenvolvido por Henry Cort permitiu, a partir de 1784, o processo conhecido como "pudlagem" — revolvimento do metal fundido em altas temperaturas para eliminar as impurezas — tornando assim possível pela primeira vez a produção em massa de ferro batido de alta qualidade.

A engenharia pesada foi revolucionada em 1839, com a introdução do martelo à vapor, pintado aqui por seu inventor, James Nasmyth. Após receber um pedido de Isambard Kingdom Brunel, um dos maiores engenheiros civis britânicos, Nasmyth esboçou os princípios do martelo em apenas meia hora. O conceito era simples, utilizando a pressão do vapor para impulsionar o movimento descendente de um enorme bloco de ferro. Obtinha-se assim uma força muito maior que a do martelo de ferreiro tradicional, mas era possível ajustar a máquina para dar golpes tão leves que poderiam quebrar uma casca de ovo colocada dentro de um copo.

     Demanda em alta; financiamento disponível; transporte de carga, barato; uma reserva crescente de mão-de-obra; avanço tecnológico. Foram estes os sustentáculos do crescimento industrial britânico. Mas acima de tudo, a prosperidade da nação veio da bem-sucedida utilização da energia do vapor. Desde o século XVII que se realizavam experiências com máquinas a vapor; já então, os cavalheiros com inclinação científica reconheciam a força propulsiva do vapor confinado em espaço pequeno. A colaboração de um desses amadores, o capitão Thomas Savery, de Londres, com o ferreiro de West County, Thomas Newcomen, conseguira levar a máquina do laboratório para o lugar de trabalho já em 1712. Mas foi o engenheiro escocês James Watt que, em 1773, praticamente reinventou a energia do vapor numa série de máquinas cada vez melhores. Quase cinco vezes mais potente que a máquina primitiva de Newcomen, e muito mais maleável, a máquina de Watt deixou as vantagens do vapor óbvias demais para serem ignoradas. Desenvolvidos na fundição de Matthew Boulton, patrocinador de Watt, esses engenhos faziam funcionar teares mecânicos, laminadores, martelos mecânicos e bombas, de forma barata e continuamente. Pela primeira vez, a manufatura era possível numa escala de fato industrial.
     Entre os primeiros que se beneficiaram das vantagens da máquina a vapor estavam os barões têxteis do norte. Os avanços técnicos já tinham tornado possível a construção de manufactories, ou factories ("fábricas"), como ficaram conhecidas, onde multidões de operários labutavam em um único prédio com várias máquinas movidas pela mesma fonte de energia central. Mas a indústria até então dependia da energia hidráulica e, portanto, estava severamente limitada em escala e escolha de lugar. Agora, as máquinas de Boulton e Watt davam aos industriais a flexibilidade de explorar até o limite seus sistemas mecânicos.
     Eles não estavam sozinhos no aproveitamento das chances. Inovadores de todos os campos logo perceberam as possibilidades excitantes apresentadas pela nova tecnologia e apressaram-se em usá-la. O manufator de ferro John Wilkinson demonstrou as vantagens do ferro barato de alta qualidade ao construir, em 1779, a primeira ponte de ferro do mundo; mais tarde, ele fez barcaças, uma capela e — por fim — seu próprio caixão com esse material. E fortunas colossais foram acumuladas por homens como Samuel Whitbread, o magnata da cerveja, e Josiah Wedgwood, de Staffordshire, que introduziu a energia a vapor na produção de artefatos de cerâmica.
     Em 1801, a Grã-Bretanha já exportava mercadorias de uma qualidade sem precedentes. Naquele ano, cerca de dois milhões de toneladas de produtos partiram dos portos ingleses — mais do que o triplo do volume de quarenta anos antes. Mas a essa altura, o país também estava em guerra contra Napoleão Bonaparte, que conquistava a Europa com suas tropas.
     Nos catorze anos seguintes, a nação suportou um conflito quase constante. Mas enquanto a guerra pode ter sido árdua para os que estavam no front, para os industriais britânicos foi uma dádiva. Apesar do domínio em terra de Napoleão, a Real Marinha britânica controlava os mares, não só protegendo o reino insular de uma invasão, como também mantendo as vias marítimas abertas para as exportações. Foi também a marinha que fez cumprir os decretos reais declarando a França e seus aliados em estado de bloqueio e permitindo que os neutros negociassem com o inimigo apenas quando levavam bens britânicos e pagassem tributos sobre suas cargas. Além de defender o país, as forças armadas britânicas davam às jovens indústrias um ambiente seguro para crescer.

Esta pintura a óleo captura convidados ilustres jantando em um túnel semipronto destinado a ligar os distritos londrinos ribeirinhos de Rotherhithe e Wapping. O túnel, iniciado em 1825 sob a direção de sir Marc Brunel e seu filho Isambard (no primeiro plano à esquerda), foi o primeiro a ser construído sob o Tâmisa e foi financiado por investidores públicos. Realizado em 1827 para tranquilizar os acionistas depois de uma série de desastres como desmoronamentos, inundações e explosões de gás, o banquete não interrompeu o trabalho, que continuou acelerado atrás de um grande espelho. Apesar do otimismo expresso pelo banquete, o projeto sofreu contratempos e só ficou pronto em 1840.

     Por outro lado, as vitórias militares expandiam o império britânico. As possessões francesas no Caribe e no Mediterrâneo logo entraram para o mercado cativo imperial. E quando a França ficou com a Holanda, os territórios desta última na África meridional e na Ásia foram prontamente tomados pelos ingleses. O crescimento da demanda das colônias ajudou a compensar o declínio do comércio com a Europa continental, apertada por sanções econômicas francesas. Mesmo assim, quando as tropas de Napoleão chegaram a Moscou, em 1812, foram sobretudo ingleses que as protegeram do inverno russo.
     Armas, distintivos e botões, botas e uniformes, martelos, pregos, potes, panelas e machados partiam num fluxo aparentemente inexaurível dos portos britânicos. A estonteante combinação de guerra e boom manufatureiro inflamou todos os aspectos da vida econômica da nação. A produção agrícola engordou, animada por preços altos; mineiros cavaram mais fundo em busca do carvão que movia um número sempre crescente de máquinas a vapor; e fundições de ferro gigantescas surgiram no sul do País de Gales, Yorkshire e na "Região Negra" das Midlands, onde quer que carvão e ferro fossem encontrados juntos, iluminando a noite com seu clarão lúgubre. Havia anos, é verdade, em que as colheitas fracassavam, ou a demanda diminuía inexplicavelmente, mas no conjunto a economia ficava mais forte e a riqueza começava a filtrar-se para baixo na escala social.
     Poucos prosperaram tanto quanto os "lordes do algodão" do norte. O algodão cru, importado das plantações escravagistas do sul dos Estados Unidos através do porto de Liverpool, transformava-se rapidamente em tecido. Em 1800, cerca de 56 milhões de libras esterlinas de algodão chegaram aos cotonifícios britânicos; dez anos depois, essa cifra alcançava 123 milhões. Tecido leve, fácil de lavar e bom para tingir e imprimir padrões, o algodão encontrou o mercado doméstico aberto e, o que é mais importante, alta aceitação nas terras quentes do império oriental britânico.
     O processo de produzir tecido a partir do algodão cru nunca fora simples. Sua cápsula ou casulo tinha de ser aberta e espalhada, depois as fibras tinham de ser limpas e separadas das sementes e penteadas antes de serem enroladas, primeiro em fio grosseiro, depois em linha fina. Apesar da complexidade, em todos esses processos a mão-de-obra humana podia agora ser substituída por máquinas. Como escreveu um observador mais tarde: "É com dedos, dentes e rodas de ferro, movendo-se com energia inexaurível e velocidade devoradora, que o algodão é aberto, limpo, espalhado, cardado, esticado, torcido, fiado, enrolado, urdido, alisado e tecido".

Uma gravura retirada de um relatório parlamentar sobre o trabalho infantil nas minas mostra um trapper abrindo uma porta subterrânea para um hurrier que empurra um vagão cheio de carvão. A ventilação nas minas dependia de essas portas ficarem quase sempre fechadas e os trappers, geralmente de 5 a 10 anos de idade, passavam doze horas por dia sentados sozinhos no escuro, abrindo e fechando portas. Os hurriers, muitos deles meninas, empurravam os carrinhos, que pesavam cerca de 400 quilos quando cheios, até 6 quilômetros por dia, entre o veio do carvão e o elevador da mina - com frequência, através de túneis de 50 centímetros de altura. Em consequência do relatório, a Lei das Minas de 1842 proibiu o emprego em minas de crianças de menos de 10 anos e de mulheres.

     Essa era a força do sistema fabril, que substituía a mão-de-obra habilidosa de uma ampla força de trabalho pela supervisão de umas poucas mãos operando diversas máquinas movidas por uma única fonte de energia. Ainda eram precisos homens e mulheres para ver se as máquinas estavam funcionando direito e seus filhos pequenos eram necessários para entrar embaixo do maquinário a fim de remover bloqueios e limpar as partes mais inacessíveis. Mas como fiandeiros e tecelões, os humanos estavam ficando obsoletos e, com a morte dos velhos ofícios, uma nova classe "operária", ou proletariado industrial, começou a tomar forma, engrossada pelo fluxo de gente que fugia das agruras da terra. As atitudes e valores dessa classe viriam a diferir muito daquelas dos antigos camponeses pobres.
     Horas longas e trabalho duro não eram novidade para os pobres, mas os que trabalhavam na terra tinham pelo menos períodos mais folgados. No inverno, a falta de luz diminuía o número de horas em que era possível trabalhar. E os que teciam em casa podiam até certo ponto estabelecer seus próprios horários.


As duas gravuras representam a fábrica de linho construída por William Marshall de Leeds, a qual, quando terminada em 1841, estava na vanguarda do design fabril. O piso principal (ilustração superior) cobria uma área de quase 8 mil metros quadrados; claraboias cônicas maximizavam a iluminação natural. O subsolo abrigava as máquinas a vapor que acionavam maquinário, depósitos e banhos quentes para os empregados. No teto (ilustração inferior), uma camada de 20 centímetros de relva servia não apenas para isolar o prédio e manter uma temperatura ideal para a fiação de linho, como também proporcionava pasto para um rebanho de ovelhas. A água da chuva escoava em calhas para as colunas de ferro internas que sustentavam o teto.

     Agora, o ritmo de trabalho era invariável e inflexível, com os proprietários querendo maximizar a produção de suas novas e caras máquinas. Os operários — homens, mulheres e crianças — labutavam até quinze horas por dia, com poucas pausas rigorosamente controladas. Os horários rígidos eram impostos com multas e, no caso das crianças, espancamentos, por qualquer atraso ou erro no trabalho. Com muita frequência, esse regime resultava em brutalidade desnecessária. O jovem aprendiz Robert Blincoe, cujas memórias foram publicadas mais tarde, contou como seu couro cabeludo ficou infectado de tanto receber golpes na cabeça. Ele foi então "curado": derramaram piche quente sobre o couro cabeludo que quando esfriou, formando uma camada sólida, foi arrancado, levando junto todos os cabelos.

Neste cartum da época, os ingleses reagem com espanto e ceticismo à introdução da iluminação a gás no Pall Mall de Londres, em 1807. O pioneiro dessa novidade foi o empresário nascido na Alemanha, Frederick Albert Winsor, que antes fez seu próprio suprimento de gás numa casa próxima. Mas ele antevira gasômetros públicos com tubulações subterrâneas servindo cidades inteiras. Em 1812, criou a Gas Light and Coke Company, para suprir o centro de Londres, que em três anos exibia quase 200 quilômetros de condutos. Inicialmente, a operação era primitiva: o gás passava por tubos subterrâneos feitos de troncos de olmos perfurados e, depois, para as casas, via canos de mosquetes modificados, sobras baratas das guerras napoleônicas.

     A iluminação a gás, instalada nas fábricas pela primeira vez em 1805, significava que a duração do dia de trabalho era agora ditada pelo homem, não pela natureza. A iluminação artificial permitia que as horas de trabalho fossem esticadas até o limite e, amiúde, para além dele. As figuras deformadas daqueles que labutavam na indústria têxtil davam um testemunho horroroso dos longos dias passados em movimentos repetitivos e incessantes que envolviam o uso de todos os membros. Um menino de 15 anos de Bradford, deformado permanentemente por mais de dez anos de lanifício, tinha apenas 1,14 metro de altura. Ele trabalhara em turnos de catorze e quinze horas e ficara "com meus joelhos dobrados de ficar tanto tempo em pé", como explicou a uma comissão de inquérito. Sir James Kay-Shuttleworth, inspecionando as condições em Manchester, observaria mais tarde: "Enquanto as máquinas funcionam, as pessoas devem trabalhar — homens, mulheres e crianças estão jungidos ao ferro e vapor. A máquina animal (...) está acorrentada à máquina de ferro, que desconhece sofrimento ou cansaço".
     Sob essas condições desenvolvia-se amiúde um espírito coletivo de disciplina e militância e um senso de injustiça muito forte. Nem todos sofriam as agruras da vida em um cotonifício. Nos ramos da metalurgia, cerâmica e couro, por exemplo, prevaleciam tradições diferentes e as condições eram geralmente melhores. Mas em todas as novas indústrias, os empregados podiam perceber claramente que eram explorados, enquanto os patrões enriqueciam a olhos vistos. Em consequência, desde a metade do século XVIII, os operários especializados vinham formando combinações — antepassados dos sindicatos modernos — para negociar, com greves se necessário, melhores salários e condições de trabalho. E em 1793, fora concedido o reconhecimento legal para as sociedades de amigos dos trabalhadores que, em troca de uma subscrição paga semanalmente, sustentavam o membro em tempos de doença e desemprego, ou pagavam o funeral.
     Enquanto as sociedades de amigos floresciam, as combinações logo se defrontaram com dificuldades. Os patrões se indignavam por ter de pagar salários mais altos e o Parlamento via as associações com suspeita, considerando-as uma possível fonte de agitação política. A Revolução Francesa de 1789, que resultara na derrubada da monarquia e na posterior execução de milhares de aristocratas, ainda estava presente nas mentes dos governantes britânicos. Dessa forma, o governo baixou as Leis da Combinação de 1799 e 1800, proibindo esses agrupamentos. A legislação era devastadora e ocorreram processos frequentes. Apesar disso, os operários continuaram a se unir e lutar por condições melhores. Muitas combinações sobreviveram com o expediente de se disfarçarem de sociedades de amigos. Uma delas, a Associação dos Fiandeiros de Algodão, pôde até organizar uma greve em Manchester, em 1810, desembolsando 1 500 libras por semana para sustentar o movimento.
     Para muitos trabalhadores, no entanto, condições melhores dentro das fábricas não representavam refrigério. Os milhares de tecelões manuais de Lancashire e Yorkshire sempre se ressentiram da chegada das máquinas, sabedores de que elas reduziriam a importância deles e levariam ao desemprego e salários baixos. Já no século XVII, as tentativas de avanço tecnológico tinham encontrado resistência, quando tecelões de Londres quebraram teares holandeses que prometiam aumentar a eficiência. E explosões periódicas de destruição de máquinas continuaram a ocorrer, com intensidade crescente, ao longo do século XVIII.
     Na revolta luddita de 1812, a hostilidade à nova tecnologia atingiu seu ápice. Batizados, ao que consta, com o nome do aprendiz das Midlands, Ned Ludd, que atacara com martelo um tear — não em ato consciente de resistência, mas com raiva por ter sido espancado pelo patrão —, os "ludditas" levantaram-se contra os patrões e o sistema fabril. Grupos organizados destruíram o equipamento têxtil fabril e atacaram as casas dos patrões. Um industrial, que expressara o desejo de andar com seu cavalo com sangue luddita até a barrigueira, foi morto. Mobilizaram-se tropas e deram-se poderes totais a magistrados numa lufada legiferante que colocou boa parte do norte da Inglaterra sob virtual lei marcial. A revolta repercutiu em todo o país antes que fosse finalmente sufocada em janeiro de 1813 e dezessete de seus cabeças, enforcados.
     Até mesmo para aqueles que encontravam um lugar no sistema fabril não havia garantia de que o trabalho duraria; às temporadas de crescimento da nova economia seguiam-se períodos de recessão e desemprego. Em 1815, quando britânicos e prussianos derrotaram Napoleão na vila belga de Waterloo, a batalha pôs fim não apenas à guerra contra a França, como também ao boom econômico que ela alimentava. O aperto foi geral, afetando indústria e agricultura. Com a importação de alimentos — interrompida pela guerra — retomada e a queda na demanda das forças armadas, o preço dos produtos agrícolas despencou. Em resposta às queixas dos grandes terratenentes, foram aprovadas leis draconianas para manter alto o preço dos grãos. Pelas Leis dos Cereais de 1815, as importações foram proibidas até que o preço dos grãos domésticos atingisse a elevada quantia de dez xelins por alqueire — cerca de quatro xelins acima da tarifa normal. Na verdade, os interesses agrários que dominavam o Parlamento tinham se concedido um monopólio.
     As Leis dos Cereais podem ter protegido os terratenentes, mas só pioraram a sorte dos pobres e provocaram amplo descontentamento. Uma série de comícios radicais nos anos do pós-guerra atraíram plateias cada vez maiores, para a preocupação de industriais e terratenentes. Numa tarde de agosto de 1819, cerca de 60 mil homens e mulheres reuniram-se em St. Peter's Fields, Manchester, para ouvir um radical popular, Henry "Orador" Hunt. Alarmados, magistrados dá localidade mandaram a milícia prender o orador. Quando a multidão impediu isso, a cavalaria da burguesia rural atacou, 'brandindo sabres e atropelando indiscriminadamente. No total, onze espectadores foram mortos e mais de quatrocentos, feridos.
     O massacre de "Peterloo", como foi chamado o episódio, numa referência irônica à grande vitória britânica, serviu apenas para fortalecer o movimento da classe operária. As combinações, apesar de estarem supostamente abolidas, floresceram tão vigorosamente na clandestinidade que em 1824, o governo decidiu legalizá-las, na vã esperança de diminuir sua atração. A lei, no entanto, não era clara quanto ao direito de greve — uma batalha que se travaria nos anos seguintes.

     Não era apenas a classe trabalhadora que mobilizava suas forças. Outros também queriam uma participação maior na nova ordem. Ao longo do tempo, crescera uma classe média cada vez mais rica, cujas fileiras abrangiam desde os industriais mais abastados até o mais humilde lojista. Mais ainda que a classe trabalhadora, a nova burguesia era o produto da façanha industrial da nação. Eram os membros dessa classe que, em ambos os lados do balcão, enchiam as lojas que faziam a ponte entre fábrica e casa; eram eles que compravam os bens manufaturados agora divulgados em anúncios e tornados acessíveis por hostes de vendedores; e eram eles que ao mesmo tempo usavam e forneciam os serviços de advocacia, corretagem de imóveis e bancos. Agora, com os industriais à frente, eles queriam que suas vozes fossem ouvidas na política da Grã-Bretanha industrial.
     Como principais defensores do novo sistema que, em 1821, o economista político James Mill batizara de "capitalismo", os industriais viram-se cada vez mais às turras com os aristocratas que dirigiam o país no Parlamento. Os capitalistas defendiam a doutrina do laissez-faire, de minimizar a interferência do estado, maximizando a competição e permitindo às forças do mercado a liberdade de cuidar de si mesmos. Economistas como Adam Smith e David Ricardo forneciam a munição intelectual para a luta contra o que era considerado como um interesse fundiário reacionário. As Leis dos Cereais, em particular, só podiam beneficiar os grandes latifundiários. O aumento do preço do pão só trazia mais dificuldades para os pobres e aumentava a conta dos salários para os industriais.

Em 1856, William Powell Frith retratou no quadro Muitas Colheitas Felizes da Vida uma família vitoriana reunida para a celebração de um aniversário. Pregando - e frequentemente também praticando - as virtudes da diligência e da economia, as classes médias foram as principais beneficiárias da expansão econômica britânica. Boa parte da nova riqueza era gasta na casa que, mantida com a ajuda de vários criados, abrigava geralmente uma família extensa. O ambiente confortável não só exibia status como também servia de abrigo contra a imundície e a degradação humana existentes do lado de fora da porta.

     Numa visão mais geral, porém, qualquer forma de restrição protetora estava sendo colocada em questão, à medida que a indústria via as matérias-primas importadas subindo de preço e outras nações impossibilitadas de comprar seus produtos em consequência da aplicação de tais sanções. Com sua liderança na industrialização firmemente estabelecida, argumentava-se que a Grã-Bretanha estaria melhor servida com a remoção de todas as possíveis restrições ao comércio. "Livre comércio" tornar-se-ia um lema e foi o uso cínico feito pela aristocracia rural de seu domínio parlamentar para sustentar as Leis dos Cereais que, mais do que qualquer outra coisa, estimulou a classe média — até então não reconhecida pelo sistema político herdado de tempos completamente agrícolas — a exigir representação eleitoral própria.
     Na distribuição dos assentos políticos, o sistema existente não refletia as grandes mudanças que vinham ocorrendo no país ao longo dos últimos cem anos. Os postos parlamentares ainda estavam nos bolsos dos proprietários rurais e seus eleitores eram fazendeiros bem de vida que não tinham porque entornar o caldo. E muitos burgos, apesar de terem um eleitorado negligenciável, estavam representados no Parlamento em pé de igualdade com áreas muito mais populosas. O representante de um "burgo podre", como eram conhecidos esses distritos eleitorais, anunciou após a eleição de 1802: "Ontem de manhã, entre 11h00 e 12h00, fui eleito unanimemente por um Eleitor para representar este Burgo Antigo no Parlamento. (...) Não havia outro candidato, nem oposição, nem votação exigida. Assim, não tive senão que agradecer ao dito Eleitor pela voz unânime pela qual fui escolhido. (...) Na sexta-feira de manhã deverei deixar este cenário triunfante com grande sucesso e uma nobre determinação de não o ver novamente antes de sete anos".
     Quando havia dois ou mais candidatos, o suborno era comum e contratavam-se desordeiros para bater na oposição — e até no eleitorado, que, sem a proteção do voto secreto, era forçado a votar em voz alta em reuniões públicas. Nas ocasiões em que não era corrupto, o sistema era simplesmente antiquado e complicado. As qualificações para votar variavam enormemente de uma cidade para outra, embora sempre envolvessem a exigência de algum tipo de propriedade. Grandes cidades como Manchester, Birmingham e Sheffield, que tinham crescido com rapidez em consequência da industrialização, passavam pelo absurdo de não ter representantes no Parlamento na década de 1820, apesar de suas imensas populações.
     Como self-made men que vinham de origens relativamente modestas, os novos industriais tinham pouca influência no governo do país. Com frequência, eram dissidentes crescidos dentro de rígidas igrejas protestantes não conformistas, que inculcavam neles, desde tenra idade, as virtudes da parcimônia, abstinência e laboriosidade, mas que também serviam para colocá-los à margem da maioria anglicana de seus compatriotas. Todas as energias deles eram dirigidas para seus empreendimentos — assim como a maior parte dos lucros. Nos primeiros anos de seus negócios, esses homens amiúde pagavam a si mesmos salários magros, investindo o resto no desenvolvimento da companhia, para financiar melhoramentos ou expansão.
     Mais tarde, talvez, eles ou seus descendentes poderiam desfrutar os benefícios materiais de seus sucessos. O filho do magnata da cerveja Samuel Whitbread dissiparia a maior parte da fortuna que o pai conseguira amealhar numa malsucedida carreira política e acabaria se suicidando. Com exceção desses exemplos extremos, no entanto, as grandes famílias manufatureiras tornaram-se logo quase indistintas da aristocracia tradicional na escala e extravagância de suas casas, bens, criados e carruagens, na escola dos filhos — em tudo, exceto pedigree e poder. Pois, por mais ricos que ficassem, os capitalistas continuavam politicamente ignorados.

Uma gravura da época mostra uma petição cartista, com mais de três milhões de assinaturas, sendo levada em passeata ao Parlamento, em 1832, quando a Lei da Reforma estendeu o direito de voto às classes médias, os cartistas tinham o apoio dos trabalhadores, que consideravam a reforma insuficiente. Foram apresentadas três petições que pediam o sufrágio universal masculino e parlamentos anuais. Todas ignoradas. O movimento acabou se desintegrando em 1848, quando um comício de massa fracassou, com mais policiais presentes do que manifestantes.

     Mas a pressão por reformas estava crescendo. O Parlamento não estava mais em posição de ignorar a riqueza e o poder da classe média. Em 1830, um golpe incruento derrubou o rei Carlos X da França, revivendo entre a nobreza fundiária da Grã-Bretanha as tristes lembranças da Revolução Francesa. No mesmo ano, a morte do rei George IV tornou inevitável uma eleição geral: era a chance que os reformistas esperavam. "Nunca se estabeleceu uma democracia em qualquer parte do mundo que (...) não tenha declarado imediatamente guerra contra a propriedade", declarou o primeiro-ministro que saía, duque de Wellington. Seu sucessor, lorde Gray, no entanto, assumiu o posto com o compromisso de mudar a situação. Em 1832 foi aprovada a Lei da Reforma, que dava o direito de voto a um número significativamente maior de eleitores e estabelecia um sistema mais racional de distritos eleitorais. As cidades fabris ganharam representação no Parlamento e os industriais e profissionais de classe média, o direito de votar.
     Tendo conquistado influência política, as classes médias não tardaram a usá-la lançando o que seria uma longa e árdua campanha para promover o livre comércio. A partir de 1839, o ataque foi liderado pela Liga contra as Leis dos Cereais, cujos oradores, em especial John Bright e Richard Cobden, viajaram por todo o país defendendo a causa do fim do monopólio dos proprietários rurais. Nas pequenas vilas, enfrentaram multidões iradas de trabalhadores rurais e agricultores, incitados pelos terratenentes que haviam conseguido convencê-los de que todos se beneficiavam de uma lei que, na verdade, constituía um mero subsídio para os mais ricos. A campanha da Liga e a resistência dos terratenentes, no entanto, significavam uma batalha pela supremacia entre as duas maiores bases de poder do país. A vitória final da Liga em 1846 foi importante não só para acabar com as Leis dos Cereais e introduzir o livre comércio: ela demonstrou também ao país como um todo a preeminência do capitalismo.
     Enquanto isso, a classe operária continuava excluída do eleitorado pela exigência de ocupação exclusiva de uma construção no valor de pelo menos dez libras esterlinas. Os capitalistas tinham ideias muito estritas sobre os limites da reforma. Apesar disso, alguns trabalhadores ficaram animados com a vitória de seus empregadores e encorajaram-se novamente a entrar na batalha política. Em 1834, surgiram tentativas de criar um "Grande Sindicato Nacional Consolidado" — federação de sindicatos para reunir todos os trabalhadores, industriais e agrícolas.

Encimado pela pomba da paz, este tlabeau industrioso adorna o certificado do associado da Sociedade Amalgamada de Engenheiros, o primeiro sindicato duradouro da Grã-Bretanha. Embora a admissão fosse estritamente limitada aos artífices especializados - uma proporção muito pequena da força de trabalho-, a ASE tornou-se o modelo de todas as organizações trabalhistas posteriores. Elaborado em 1851, ano da fundação do sindicato, o certificado reflete o orgulho dos trabalhadores por utilizar as novas forças de produção.

     A tentativa defrontou-se com uma feroz oposição das classes altas, que pareciam compartilhar da visão do ativista Bronterre O'Brien de que esse sindicato, se tivesse êxito, provocaria "uma mudança equivalente à subversão completa da ordem existente no mundo". Na vila de Tolpuddle, Dorset, seis trabalhadores rurais que tentavam filiar novos membros ao sindicato foram presos e depois condenados pelo crime de administrar juramentos secretos. Em 1834, o degredo para a Austrália dos "Mártires de Tolpuddle" — como os infelizes ficaram conhecidos — destruiu o Grande Sindicato, cujos organizadores não estavam preparados para esse tipo de ataque. Mas o ultraje sentido pelo povo diante do destino dos seis seria uma fonte de força para o movimento sindical por muitas décadas.
     Havia outros trabalhadores que procuravam melhorar suas posições pela imitação direta dos industriais. Entre as velhas profissões especializadas — aquelas cujas formas tradicionais ainda não tinham sido invadidas pelo sistema fabril — muitos começaram a sentir que só a representação no Parlamento ofereceria a perspectiva de uma vida melhor. Em 1838, o marceneiro William Lovett e o alfaiate Francis Place redigiram uma Carta do Povo que pedia o sufrágio universal masculino, sem qualquer exigência de propriedade, e a introdução do voto secreto para acabar com a intimidação do eleitorado. O movimento "cartista" ganhou apoio generalizado entre a classe operária e uma petição passada em seus comícios já tinha cerca de 1,25 milhões de assinaturas em 1839. Quando o Parlamento reformado descartou a petição sem cerimônia, a resposta foi irada e imediata. Tumultos e greves pipocaram em todo o país, mas acabaram se extinguindo diante da inflexibilidade do governo. Os cartistas mais decididos mantiveram a luta durante a década de 1840, mas em 1848, quando ocorreu a última manifestação cartista — um fracasso melancólico — o movimento operário parecia ter perdido muito de sua militância.

     Conquanto o ritmo da reforma política fosse lento, o progresso industrial continuou a passo acelerado nas décadas de 1830 e 1840. Cada operário do cotonifício estava "realizando, ou antes, supervisionando, o trabalho que poderia ter sido feito por duas ou três centenas de homens sessenta anos atrás", alardeou um admirador do sistema fabril em 1835. Em 1830, o engenheiro James Nasmyth olhava encantado para os altos-fornos do oeste das Midlands sendo postos a funcionar: "Eu vi o ferro incandescente sair da fornalha; eu o vi como que se tecer em barras e fitas, com uma velocidade e facilidade que pareciam maravilhosas". Mas ao mesmo tempo, Nasmyth estava chocado com o impacto da fundição de ferro na paisagem rural: "A terra parece ter-se virado de dentro para fora. Suas entranhas estão espalhadas; quase toda a superfície do solo está coberta com montes de escória. (...) Quando escureceu (...) o horizonte era um cinturão fulgurante de fogo, fazendo até mesmo as estrelas parecerem pálidas e débeis".


                                                              A chegada da ferrovia

     Máquinas a vapor já tinham sido colocadas sobre trilhos em 1808, mas o uso desse meio de transporte em larga escala veio com a Rocket, de George Stephenson, aqui mostrada em uma réplica, acima. Com seus êmbolos e cilindros, a Rocket encarnava os princípios de todas as locomotivas a vapor construídas posteriormente.
     Obcecado pela visão de um transporte sobre trilhos movido a vapor, Stephenson construiu sua primeira máquina em 1814. Em 1825, sua Locomotion Nº 1 fez a viagem inaugural da primeira ferrovia de passageiros da Grã-Bretanha, entre Stockton e Darlington. Mas a linha, de uma companhia de diligências, continuou com seus vagões puxados a cavalo e foi só em 1829 que os esforços de Stephenson foram recompensados, quando a Rocket foi escolhida como locomotiva da ferrovia Liverpool-Manchester, aberta no ano seguinte.

     Esse sucesso deflagrou um boom da construção ferroviária: em 1850, a Grã-Bretanha já tinha mais de 10 mil quilômetros de trilhos (mapa mais abaixo). O fracasso das experiências com outros modos de propulsão, como a ''Ferrovia Atmosférica" de Brunel, movida a energia pneumática, só reforçou o fato de que locomotivas como a Rocket eram o transporte do futuro.

     Mudanças maiores eram anunciadas no mesmo ano pela inauguração da estrada de ferro Liverpool-Manchester. Em pedreiras, minas de carvão e fundições, os vagões carregados de pedras, carvão e minério vinham, há alguns anos, sendo puxados ao longo de trilhos de madeira ou ferro, às vezes por motores a vapor fixos ou por máquinas simples como a de Trevithick. Mas foi a Rocket de George Stephenson, fácil vencedora das provas realizadas em 1829 para escolher a locomotiva da nova estrada de ferro, que anunciou uma nova época de construções ferroviárias que transformariam o país e a vida de seus habitantes. A atriz Fanny Kemble, que passeou no veículo de Stephenson um mês antes da abertura oficial da ferrovia, descreveu "como parecia estranho viajar naquilo, sem nenhuma causa visível do avanço a não ser a máquina mágica, com sua flutuante exalação branca e marcha ritmada, invariável, entre aquelas paredes rochosas. (...) Senti como se nenhum conto de fadas fosse tão maravilhoso quanto a metade do que via".
     Evidentemente, não havia nada de sobrenatural no corte de Edge Hill pelo qual ela passou na época. Como muitas outras grandes realizações da engenharia civil de então, foi obra de um exército de navvies — assim chamados por causa das "navegações", ou canais, em cuja construção esses grupos foram empregados pela primeira vez. Bandos de trabalhadores turbulentos e maltrapilhos, amiúde da Irlanda — que desde 1801 estava unida à Grã-Bretanha —, os navvies levavam vida nômade, indo de um projeto de construção a outro. Aonde iam, eram temidos pela população residente, que os considerava como quase animais. O trabalho deles era duro e realizado em condições atrozes, sua segurança, negligenciada cinicamente por empreiteiros decididos a economizar tempo e dinheiro. A construção do túnel de Woodhead, em Cheshire, por exemplo, custou dezenas de vidas. Com efeito, um observador calculou que a taxa de baixas entre os homens empregados no projeto — mais de três por cento mortos e catorze por cento feridos — foi maior que a sofrida pelo exército britânico em Waterloo.
     Por mais desprezados e antipáticos que fossem, os navvies explodiram e cavaram seu caminho através do país, realizando os sonhos mais ousados dos engenheiros, entre os quais se destacou o construtor da ferrovia Great Western, lsambard Kingdom Brunel. Em 1838, cerca de 800 quilômetros de trilhos já tinham sido colocados na Grã-Bretanha. Cinco anos depois, mais de 3 mil quilômetros serpenteavam de cidade a cidade, atravessando montanhas, rochedos, pântanos e rios, com trens andando a mais de 50 quilômetros por hora. Todos os homens de negócios queriam participar dos lucros e uma pletora de pequenas linhas foi feita com dinheiro local, servindo às necessidades regionais e segundo os padrões de cada engenheiro. Foi só em 1846, quando já havia cerca de duzentas redes ferroviárias separadas no país, que foi adotada uma bitola padrão nacional de 4 pés e 8,5 polegadas (1,44 metro), para o dissabor daqueles de West Country, que tinham optado pela bitola de 7 pés (2,13 metros) preferida por Brunel. Em 1851, as fusões já tinham reduzido o número de linhas para 22 principais, mas mesmo então a construção não parou. Quatro anos depois, a nação podia exibir mais de 13 mil quilômetros de trilhos.


     As indústrias de ferro e carvão trabalhavam a todo vapor para atender à demanda por seus produtos. Para outros negócios, o preço do transporte caía gradualmente à medida que o monopólio dos canais era contestado. O preço dos alimentos caiu também quando distritos agrícolas recentemente acessíveis começaram a competir com as fazendas em torno das cidades. As viagens transformaram-se totalmente. Onde quer que chegasse, a ferrovia galvanizava a vida social e comercial. Em 1848, o escritor Charles Dickens descreveu as mudanças processadas no que fora um bairro miserável: "Multidões de gente e montanhas de mercadorias partindo e chegando incontáveis vezes a cada 24 horas produziam uma fermentação no lugar que estava sempre em atividade. As próprias casas pareciam dispostas a arrumar as malas e fazer viagens". Se o comércio era o sangue da Grã-Bretanha industrial, as ferrovias eram suas veias e artérias.

     A nova energia que pulsava em toda a nação não distribuiu seus benefícios com equidade. Ao levar a rede ferroviária ao coração de cada cidade, os engenheiros tomaram a via da resistência menor, abrindo caminho através de moradias de aluguel degradadas e deixando sem lar milhares de trabalhadores. Enquanto os proprietários eram indenizados, os desalojados ganhavam apenas mais uma cruz para carregar. Pois por pior que fossem as condições nas fábricas, os empregados, com frequência, talvez se sentissem com mais conforto nelas do que em casa. Amontoados nas cidades industriais, eles viam as dificuldades do campo serem substituídas pela esqualidez inimaginável da vida urbana. A expectativa de vida média das classes baixas urbanas era chocantemente baixa: 17 anos para o trabalhador de Manchester e 15 para os nascidos em Liverpool, em comparação com os 38 para os peões do condado rural de Rutland. As taxas de mortalidade infantil eram amplamente responsáveis por essas estatísticas: mais de 52 por cento das crianças nascidas em Liverpool morriam antes dos 5 anos, segundo registros da década de 1840 — e muitas mortes não eram notificadas.

Nesta gravura de 1859 do Illustrated Times, fileiras de camas semelhantes a caixões aglomeram-se em torno do fogão central num refúgio noturno para os sem-lar de Londres. À direita, os recém-chegados são registrados, enquanto outros esperam a vez de usar as pias. Com a expansão da população da Grã-Bretanha, a falta de moradia tornou-se um problema grave na capital. Centros como o retratado aqui ofereciam um pouco de alívio, mas as condições estavam longe de serem confortáveis: a moral convencional da época ensinava que a pobreza era a "vontade de Deus" e que os pobres deviam aprender a ajudar a si mesmos.

     O jovem escritor americano Herman Melville, ao desembarcar em Liverpool em 1839, após sua primeira viagem como marinheiro mercante, ficou horrorizado. "Pobreza, pobreza, pobreza, em perspectivas quase infindáveis: e carência e desgraça cambaleando de braços dados por essas ruas miseráveis", escreveu ele mais tarde. Melville lembrava-se de estar caminhando por um beco, passar por um gradil aberto, ouvir um gemido "de doer na alma" e espiar para dentro na escuridão: "ali, cerca de quinze pés abaixo da calçada, agachada numa imundície indescritível, com a cabeça inclinada, estava a figura do que fora uma mulher. Seus braços azuis cingiam no colo lívido duas coisas mirradas como crianças, que se inclinavam em direção a ela, uma de cada lado. A princípio eu não sabia se estavam vivas ou mortas".
     Cenas como esta eram comuns demais nas cidades britânicas. Favelas de ruelas estreitas e pátios sem ventilação, amontoavam-se lado a lado, com os piores materiais, usados por construtores gananciosos. Com freqüência, não tinham alicerces, as paredes eram da espessura de um tijolo e os andares superiores eram feitos com madeira tão frágil que seus moradores costumavam cair através do assoalho. A superpopulação era a regra: o reformador Joseph Adshead encontrou milhares de pessoas vivendo em porões úmidos e sem ventilação em Manchester; uma casa de quatro cômodos de Londres, alugada para inquilinos irlandeses em 1847, acomodava não menos que cinquenta pessoas de oito famílias — sem contar os onze que alugavam camas no porão. A promiscuidade, imundície e embriaguez produzidas por tais condições estarreciam observadores como Adshead, numa época em que as classes médias estavam adquirindo uma visão mais rígida sobre limpeza, sobriedade e respeitabilidade. Alguns se perguntavam se a natureza repelente das classes baixas não se deveria a uma falta de educação inata. Outros culpavam os industriais por criarem condições sob as quais era impossível manter sobriedade e respeitabilidade. Para muitos trabalhadores, o "templo do gin" era uma fonte periódica de alívio da labuta diária — e um hiato de conforto em tempos de desemprego. E o álcool não era o único vício. Os bebês deixados em casa com crianças ou vizinhos idosos eram rotineiramente sedados com "quietude", um potente preparado de ópio que os deixava bem quietinhos.

Esta litografia de 1855 mostra as casas aglomeradas e as altas chaminés das fábricas de Sheffield. A introdução das máquinas a vapor nessa cidade do norte, conhecida havia muito tempo pela qualidade de sua cutelaria, assegurou sua proeminência como centro da indústria do aço. Ao longo da primeira metade do século XIX, os novos centros industriais da Grã-Bretanha cresceram de forma impressionante; a população de Sheffield aumentou quinhentos por cento, para atingir a cifra de 135 mil habitantes. Com exceção do lado situado contra o vento em relação às fábricas, onde os ricos construíram suas casas, as condições de vida eram miseráveis, com os operários amontoados em construções baratas feitas às pressas. Apesar disso, adiante das favelas, o campo ainda era acessível.

     A limpeza e a higiene também estavam fora do alcance dos pobres. "Onde há sujeira, há dinheiro", dizia um ditado de Yorkshire e, com efeito, a imundície parecia ser uma faceta inevitável do crescimento econômico. Os equipamentos sanitários urbanos eram inadequados, mesmo para os bem de vida. Os sistemas de esgoto, planejados apenas para drenar a água das chuvas, não davam conta da demanda do maciço crescimento das populações e dos water closets que surgiam agora nas residências abastadas. Para os pobres, espremidos em seus porões, becos e cortiços — amiúde construídos sobre cloacas assoalhadas —, era muito pior. Contavam apenas com latrinas, comumente poucas e distantes. Descobriu-se que certas ruas de Manchester estavam privadas delas; nas ruas Oldham e St. George, mais de 7 mil moradores compartilhavam 33 latrinas. Com muita frequência, os excrementos humanos eram simplesmente jogados na rua, para serem recolhidos como esterco, um adubo tão nocivo que envenenava os campos onde era usado.

Um fantasioso e sinistro cartum de uma edição de 1850 da revista de humor Punch representa uma gota da água de Londres vista ao microscópio. O desenho chamava a atenção para a espantosa poluição do abastecimento de água da cidade que, no ano anterior, provocara um surto de cólera, cujo índice de mortalidade fora, no auge, de quatrocentas pessoas por dia. Devido à rápida expansão da cidade, só os muito ricos possuíam suprimento de água em casa; a maioria tinha de usar bicas de rua. A água que saia delas vinha geralmente do Tâmisa, rio poluído pelo despejo dos esgotos. Somente em 1852 o governo obrigou as companhias hidráulicas privadas de Londres a limpar seu lucrativo, mas venenoso monopólio.

     A água era artigo raro para a maioria. Enquanto os ricos podiam bombeá-la para casa, os pobres dependiam de bicas em ruas próximas, ou de carregadores de água que vendiam o produto em grandes caçambas. Em ambos os casos, o suprimento era no mínimo duvidoso, quando não uma ameaça séria. Os londrinos de todas as classes dependiam do rio Tâmisa tanto para despejar o esgoto quanto para beber. Os esgotos vazavam rotineiramente, tanto dentro das casas quanto nos poços e ribeirões que forneciam água. O tifo era uma ameaça sempre presente; a maioria da família real foi atacada por ele em algum momento. A rainha Vitória, que subiu ao trono em 1837, perderia mais tarde o marido, o príncipe Albert, para a doença. E o cólera epidêmico era responsável por milhares de mortes.

     Confrontada com tanta sordidez, muita gente começou a pensar se o sucesso do capitalismo valia a pena. Thomas Carlyle, crítico implacável do industrialismo e seus valores materiais, deu voz ao pensamento de muitos: "Temos mais riquezas do que qualquer nação teve antes, e temos menos bem-estar do que qualquer nação teve antes. (...) Em meio à abundância pletórica, o povo perece."
     O fado dos pobres estava recebendo atenção crescente de fora de suas fileiras, à medida que uma onda de evangelismo religioso varria a nação. A compaixão cristã tornava-se uma força rival do laissez-faire. As classes média e alta liam os dados horripilantes de pobreza contidos nos Blue Books — publicações governamentais muito populares que traziam estatísticas sobre todas as áreas da sociedade britânica —, ou em escritos com muito mais vida, como os romances de Charles Dickens.
     Em 1830, a escravidão fora abolida no império, mas o debate que levara a ela iluminara as condições de quase servidão das fábricas e minas do país. Nas duas décadas seguintes, foram feitas investigações sobre saúde pública, higiene, moradia, lei criminal, educação e outros aspectos da vida, resultando em reformas. Em 1843, as condições nas fábricas já tinham melhorado um pouco através de uma série de leis fabris. Dentro de uma década, o horário de trabalho seria limitado a dez horas por dia e providências para a educação das crianças seriam obrigatórias.


A aquarela mostra uma aula de dança infantil na escola do instituto aberto em 1816 em New Lanark por Robert Owen (detalhe). Sustentando que o caráter se formava nos primeiros anos de vida, Owen insistia em estimular os pupilos com bondade, não com ameaças, método muito avançado para a época.

                                                                                                         Apóstolo da reforma

     A miséria humana provocada pelo sistema fabril e pelo crescimento explosivo das cidades britânicas atraiu a atenção de muitos filantropos ricos. Poucos, porém, alcançaram a fama internacional de Robert Owen.
     Nascido em 1771, em Newtown, País de Gales, ele galgou rapidamente os degraus da indústria para se tornar sócio de um grande cotonifício de Manchester. Mas não foi a agudeza para os negócios e sim a visão de uma nova sociedade industrial que distinguiu Owen. Profundamente sensível à sorte dos que estavam em desvantagem, ele acreditava que só o ambiente social favorável resultaria num bom caráter.
     Em consequência, Owen comprou em 1800 uma cidade fabril de 2 mil habitantes chamada New Lanark, perto de Glasgow. Ali, com gastos consideráveis, partiu para criar uma utopia industrial de boas moradias, ordem social e educação. A fábrica prosperou e logo New Lanark se tornou um lugar de peregrinação para reformistas sociais, homens do estado e até para a realeza.
     Baseado nesse sucesso, Owen começou a pregar a criação em escala mundial de vilas semelhantes de "unidade e cooperação" como cura para os males da pobreza e do desemprego. Ao mesmo tempo, tentou organizar os operários britânicos em base nacional, com a criação, em 1834, do Grande Sindicato Nacional Consolidado.
     Nenhuma das iniciativas prosperou, mas Owen continuou a pregar suas ideias. Muito tempo depois de sua morte, em 1858, seus ideais visionários ainda influenciavam os reformadores sociais.

Uma nota sacada contra uma bolsa de Birmingham oferece ao portador itens no valor de cinco horas de trabalho. Owen acreditava que o trabalho era a única medida verdadeira de valor e, em 1832, introduziu "Bolsas de Trabalho", onde os bens valorizados de acordo com o tempo que levavam para serem feitos eram comprados ou vendidos, O projeto fracassou logo.


     Enquanto muitos capitalistas resistiam às reformas, outros tomavam a dianteira, propondo-as e sustentando-as. Desde o início do século, um desses magnatas benevolentes, Robert Owen, vinha tentando construir uma ordem mais justa de cooperação entre capital e trabalho em sua fábrica de New Lanark, na Escócia. Em outras áreas, trabalhadores e artífices batalhavam para criar suas comunidades cooperativas autossuficientes. Embora tais medidas fossem radicais demais para a maioria, em 1850 os bretões abastados tinham uma posição mais bondosa em relação aos pobres.

     Os inimigos das reformas queixavam-se de que o controle maior estava asfixiando o comércio e as empresas, mas a produção industrial não dava sinais disso. Na metade do século, a Grã-Bretanha ostentava 1 800 cotonifícios, empregando 328 mil operários e usando máquinas a vapor com a potência total de quase 53 mil quilowatts para produzir mais de 1 600 milhões de metros de algodão por ano — oito vezes mais do que ao final das guerras napoleônicas. A produção anual de carvão mineral tinha mais que quadruplicado ao longo do século para atingir 56 milhões de toneladas, enquanto a de ferro-gusa tinha crescido vinte vezes e seus dois milhões de toneladas equivaliam à metade da produção mundial. A Grã-Bretanha tornara-se, de fato, a oficina do mundo. Mas sua exportação mais importante era a própria industrialização. Os financistas britânicos encontraram ricas oportunidades de investimento na Bélgica — onde carvão e ferro abundantes e uma tradição de manufatura têxtil davam condições muito semelhantes às da própria Inglaterra — e, mais tarde, na Alemanha e nos départements do norte da França. O know-how também atravessou o mar, com engenheiros e técnicos levando seus conhecimentos de construção de ferrovias e fábricas e de mecanização de indústrias.


A litografia de Joseph Nash mostra o salão de máquinas da parte britânica de Grande Exposição de 1851. A mostra foi instalada numa construção gigantesca de ferro fundido e vidro, conhecida como Palácio de Cristal (imagem superior) - edifício que constituiu uma maravilha de seu tempo - situado no Hyde Park de Londres. O objetivo declarado do evento era exibir as realizações da indústria e comércio de todas as nações. Na verdade, o domínio do comércio marítimo mundial pela Grã-Bretanha e sua superioridade tecnológica significavam que a exposição era principalmente um hino de louvor a sua própria supremacia industrial.


     O mesmo aconteceu nos Estados Unidos. Em 1840, o navio a vapor Britannia atravessou o Atlântico em assombrosos catorze dias e, em 1846, já havia um serviço regular de transporte de passageiros. Fábricas surgiram na costa leste e as ferrovias se espalharam com rapidez impressionante, penetrando no interior e levando para oeste os benefícios — e males — da indústria. Em 1860, já haveria mais de 45 mil quilômetros de trilhos. Em breve, a distância entre a Grã-Bretanha e seus competidores estrangeiros diminuiria.
     Mas na metade do século, ela era ainda a vitrine da industrialização. Suas conquistas no curso do século XIX tinham sido extraordinárias, as mudanças, imensas e de tirar o fôlego. As reformas sociais e políticas concomitantes pareciam suficientes para permitir que os bretões aceitassem a nova ordem. Em 1848, quando a Europa continental foi varrida por uma onda revolucionária, em parte como reação contra a industrialização, nada de equivalente ocorreu na Grã-Bretanha.
     Ao contrário, 1850 encontrou a nação mais autoconfiante do que nunca. No ano seguinte, o triunfo de seu progresso foi mostrado para todos na feira comercial do Palácio da Indústria de Londres. De 19 de maio a 15 de outubro, na chamada "Grande Exposição", 13 mil exibidores atraíram seis milhões de visitantes de todo o mundo para ver as maravilhas do livre comércio e da iniciativa britânica. Uma ilustre visitante ficou tão impressionada que foi à exposição trinta vezes e, em seus registros, resumiu o entusiasmo do povo britânico: "Somos capazes de fazer qualquer coisa", escreveu a rainha Vitória em seu diário, no dia 29 de abril de 1851.





A INDÚSTRIA BRITÂNICA é um capítulo do livro

A FORÇA DA INICIATIVA (1800-1850) - da coleção HISTÓRIA EM REVISTA, publicada pelos

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Editor europeu: Ellen Phillips
Diretor de arte: Ed Skyner
Diretor de recursos editoriais: Gillian Moore
Subeditor chefe: Ilse Gray
Assistente do diretor de arte: Mary Staples

em parceria com a

ABRIL LIVROS - RIO DE JANEIRO
Diretores: Roberto Civita, Ike Zarmati e Koos Siewers
Tradução e adaptação para a língua portuguesa: Pedro Paulo Poppovic Consultores
                                                                             Editoriais S/C Ltda - São Paulo
Tradução: Pedro Maia Soares
Consultor: RICHARD OVERY, professor de História Moderna, Faculdade King's,
                  Universidade de Londres.

Authorized Portuguese Edition: Copyright 1992 - Abril Livros Ltda

Original edition: Copyright 1990 - Time-Life Books B.V. 

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