segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Uma história comestível da humanidade - Os fundamentos comestíveis da civilização

PARTE I

1. A invenção da agricultura

“Vi textos de horticultura expressando grande surpresa diante da maravilhosa habilidade dos jardineiros em produzir tão esplêndidos resultados a partir de materiais tão deficientes; mas a arte foi simples e, no que diz respeito ao resultado final, foi seguida de maneira quase inconsciente. Ela consistiu em sempre cultivar a melhor variedade conhecida, semeando essas sementes, e, quando uma variedade ligeiramente melhor por acaso aparecia, selecioná-la, e assim por diante.”
CHARLES DARWIN, A origem das espécies

Alimentos como tecnologias

O que representa melhor a generosidade da natureza que uma espiga de milho? Com uma torção do punho ela é facilmente arrancada do caule, sem desperdício ou trabalho excessivo. É repleta de grãos saborosos e nutritivos, maiores e mais numerosos que os de outros cereais. E é envolvida por uma palha que a protege de pragas e da umidade. O milho parece um presente da natureza; já vem até embrulhado. Mas as aparências podem enganar. Um campo cultivado de milho, ou de qualquer outro produto agrícola, é tão manufaturado ou fabricado pelo homem quanto um microchip, uma revista ou um míssil. Por mais que gostemos de pensar na agricultura como uma atividade natural, há 10 mil anos ela era uma estranha inovação. Para caçadores-coletores da Idade da Pedra, campos cuidadosamente cultivados que se estendiam até o horizonte seriam uma visão inusitada. O cultivo de terras é um projeto tão tecnológico quanto biológico. E no grande plano da existência humana, as tecnologias em questão – as plantações agrícolas – são invenções muito recentes.
     Os ancestrais dos seres humanos modernos distanciaram-se dos macacos cerca de meio milhão de anos atrás, e seres humanos “anatomicamente modernos” surgiram há cerca de 150 mil anos. Os seres humanos primitivos eram caçadores-coletores que subsistiam com plantas coletadas e animais caçados na natureza. Foi somente nos últimos 11 mil anos, aproximadamente, que se começou a cultivar alimentos. A agricultura emergiu independentemente em momentos e lugares diferentes: já estava estabelecida no Oriente Próximo por volta de 8500 a.C., na China por volta de 7500 a.C. e nas Américas Central e do Sul por volta de 3500 a.C. Desses três pontos de partida principais, a tecnologia da agricultura espalhou-se por todo o mundo, para se tornar o mais importante meio de produção de alimentos da humanidade.
     Essa foi uma mudança extraordinária para uma espécie que dispunha de um estilo de vida nômade, baseado na caça e na coleta, ao longo de toda a sua existência anterior. Se os 150 mil anos de existência dos seres humanos modernos fossem transformados em uma hora, somente nos últimos quatro minutos e meio eles teriam começado a adotar a agricultura, e ela só teria se tornado o meio dominante de subsistência no último minuto e meio. A troca operada pela humanidade entre a procura de alimentos e a lavoura, de um meio natural para um meio tecnológico de produção de alimentos, foi recente e repentina.
     Embora muitos animais coletem e armazenem sementes e outros gêneros alimentícios, os seres humanos são os únicos a cultivar deliberadamente produtos agrícolas específicos e a selecionar e propagar determinadas características desejadas. Como um tecelão, um carpinteiro ou um ferreiro, um agricultor cria coisas úteis que não estão na natureza. Isso é feito mediante o uso de plantas e animais modificados ou domesticados para melhor atender aos objetivos humanos. São criações humanas, ferramentas cuidadosamente manufaturadas para produzir comida de novas formas e em quantidades muito maiores do que ocorreria naturalmente. Não é possível exagerar a importância de seu desenvolvimento, pois eles literalmente tornaram o mundo moderno possível. Três plantas domesticadas, em particular, provaram-se extremamente importantes: trigo, arroz e milho. Elas lançaram os alicerces para a civilização e continuam a sustentar a sociedade humana até hoje.
     O milho fornece a melhor demonstração de que colheitas domesticadas são inquestionavelmente criações humanas. A distinção entre plantas silvestres e domesticadas não é rígida. De fato, as plantas se distribuem num continuum: de inteiramente silvestres, passando por plantas que tiveram algumas características modificadas para convir aos seres humanos, até aquelas inteiramente domesticadas, que só podem se reproduzir com ajuda humana. O milho encaixa-se na última categoria. Ele é o resultado da propagação, pelos seres humanos, de uma série de mutações genéticas aleatórias que o transformaram de uma simples erva num estranho e gigantesco mutante que não pode mais sobreviver na natureza. O milho é descendente do teosinto, um capim silvestre nativo do que hoje é o México. As duas plantas parecem muito diferentes. De fato, porém, apenas algumas mutações genéticas foram suficientes para transformar uma na outra.
     Uma diferença óbvia entre o teosinto e o milho é que as espigas do primeiro consistem de duas fileiras de grãos contidas em invólucros duros, ou glumas, que protegem a parte comestível no interior. Um único gene, chamado pelos geneticistas modernos de tga1, controla o tamanho dessas glumas; uma mutação nesse gene resulta nos grãos expostos. Isso significa que os grãos têm menor probabilidade de sobreviver à viagem através do trato digestivo de um animal, pondo as plantas mutantes em desvantagem reprodutiva em relação às não mutantes, pelo menos na ordem normal das coisas. Mas os grãos expostos teriam também tornado o teosinto muito mais atraente para seres humanos coletores, uma vez que não seria necessário remover as glumas antes do consumo. Ao coletar apenas as plantas mutantes, com grãos expostos, e depois usar esses grãos como sementes, protoagricultores puderam aumentar a proporção de plantas com grãos expostos. A mutação do tga1, em suma, tornou menos provável a sobrevivência do teosinto na natureza, mas tornou-o também mais atraente para os seres humanos, que propagaram a mutação. (No milho, as glumas são tão reduzidas que só as notamos quando ficam presas entre nossos dentes. Elas são o filme sedoso e transparente que envolve cada grão.)

A evolução do teosinto ao protomilho e à espiga moderna.

     Outra diferença óbvia entre o teosinto e o milho está na estrutura, na arquitetura das duas plantas, que determina a posição e o número das partes reprodutivas masculina e feminina, as inflorescências. O teosinto tem uma arquitetura altamente ramificada com múltiplos caules, cada um com uma inflorescência masculina (o pendão) e várias inflorescências femininas (os grãos). O milho, no entanto, tem um único caule e nenhum ramo, um único pendão no topo e espigas muito menos numerosas, mas muito maiores, a meio caminho do caule, encerradas numa palha folhosa. Em geral, há apenas uma espiga, mas em algumas variedades pode haver duas ou três. Essa mudança na estrutura do pé de milho parece ser o resultado de uma mutação num gene conhecido como tb1. Do ponto de vista da planta, essa mutação é negativa: torna mais difícil a fertilização, na qual o pólen do tendão deve descer até a espiga. Do ponto devista dos seres humanos, porém, ela é bastante útil, uma vez que é muito mais fácil colher um pequeno número de espigas grandes que um grande número de espigas pequenas. Consequentemente, protoagricultores estavam mais propensos a colher espigas de plantas com essa mutação. Ao semear esses grãos, propagaram outra mutação que resultou numa planta inferior, mas num alimento superior.
     As espigas, estando mais perto do solo, ficam mais próximas da provisão de nutrientes e podem potencialmente ficar muito maiores. Mais uma vez, a seleção humana guiou esse processo. Quando colhiam espigas de protomilho, os protoagricultores teriam dado preferência a plantas com espigas maiores, e grãos dessas plantas teriam sido usados depois como sementes. Dessa maneira, mutações que resultaram em espigas maiores e com mais grãos se propagaram, de modo que as espigas cresceram de geração em geração e transformaram-se em sabugos de milho. Isso pode ser visto claramente em registros arqueológicos: numa caverna no México foi encontrada uma sequência de sabugos cujo comprimento variava de 1,20 centímetro a 20 centímetros. Mais uma vez, o mesmo traço que tornou o milho atraente para seres humanos o tornou menos viável na natureza. Uma planta com espiga tão grande não pode se propagar de um ano para outro, porque quando a espiga cai na terra e os grãos germinam, a grande proximidade entre tantos grãos competindo pelos nutrientes do solo impede que qualquer um deles se desenvolva. Para que o pé de milho cresça, os grãos devem ser manualmente separados do sabugo e plantados a uma distância suficiente uns dos outros – algo que somente seres humanos podem fazer. Em suma, à medida que os grãos de milho ficaram maiores, a planta foi se tornando inteiramente dependente de seres humanos para sua sobrevivência.
     O que começou como um processo involuntário de seleção tornou-se finalmente deliberado quando agricultores primitivos começaram a propagar características desejáveis de propósito. Transferindo pólen do pendão de uma planta para o cabelo de outra, era possível criar novas variedades que combinavam os atributos dos antecessores. Era preciso manter as novas variedades separadas de outras para evitar a perda dos aspectos desejáveis. Análises genéticas sugerem que um tipo particular de teosinto, chamado teosinto Balsas, tem maior probabilidade de ter sido o progenitor do milho. Análises adicionais de variedades regionais do teosinto Balsas sugerem que o milho foi originalmente cultivado no México central, onde estão hoje os estados de Guerrero, México e Michoacán. A partir dali, ele se espalhou e se tornou um alimento de primeira necessidade para povos em todas as Américas: os astecas e os maias do México, os incas do Peru, e muitas outras tribos e culturas em todas as partes das Américas do Norte, do Sul e Central.
     No entanto, o milho só pôde se tornar um esteio alimentar com a ajuda de mais uma reviravolta tecnológica, uma vez que é deficiente dos aminoácidos lisina e triptofano e da vitamina niacina, elementos essenciais da dieta humana saudável. Quando o milho era apenas mais um gênero alimentício entre muitos, essas deficiências nutricionais não tinham importância porque outros alimentos, como vagens e abóbora, as compensavam. Mas uma dieta com excesso de milho resulta em pelagra, uma doença nutricional caracterizada por náusea, pele áspera, sensibilidade à luz e demência. (Acredita-se que essa sensibilidade à luz explica a origem de mitos europeus sobre vampiros, após a introdução do milho na dieta europeia, no século XVIII.) Felizmente, o milho pode se tornar seguro se for tratado com hidróxido de cálcio, na forma de cinza de madeira ou de conchas moídas, acrescentado diretamente à panela de cozimento ou misturado com água para criar uma solução alcalina em que se deixa o milho imerso da noite para o dia. Isso tem o efeito de amaciar os grãos e tornar seu preparo mais fácil, o que provavelmente explica a origem da prática. Esse processo tem um efeito mais importante, mas menos visível, porque também libera os aminoácidos e a niacina, que existem no milho numa forma inacessível ou “presa”, chamada niacitina. Como os grãos assim processados eram chamados de nixtamal pelos astecas, o processo é conhecido como nixtamalização. Essa prática parece ter sido desenvolvida muito cedo, já em 1500 a.C.; sem ela, as grandes culturas das Américas com dietas baseadas no milho nunca poderiam ter se estabelecido.
     Tudo isto demonstra que o milho não é, em absoluto, um alimento que brota naturalmente. Seu desenvolvimento foi qualificado por um cientista moderno como um dos mais impressionantes feitos de modificação genética já empreendidos. Trata-se de uma tecnologia complexa, desenvolvida por seres humanos ao longo de gerações, a tal ponto que o milho se tornou incapaz de sobreviver por si mesmo, mas pôde fornecer alimento suficiente para sustentar civilizações inteiras.

A inovação dos cereais

O milho é apenas um dos exemplos mais extremos. Os dois outros principais alimentos básicos do mundo, que vieram a sustentar a civilização no Oriente Próximo e na Ásia Oriental são, respectivamente, o trigo e o arroz. Eles também são resultado de processos seletivos humanos que propagaram mutações desejáveis para criar gêneros alimentícios mais convenientes e abundantes. Como o milho, o trigo e o arroz são cereais, e a diferença fundamental entre suas formas silvestres e cultivadas é que as variedades domesticadas são “inquebráveis”. Os grãos estão presos a um eixo central conhecido como raque. À medida que os grãos silvestres amadurecem, a raque torna-se frágil, de modo que se quebra, se despedaça ao ser tocada ou soprada pelo vento, espalhando os grãos como sementes. Isso faz sentido da perspectiva da planta, já que assegura que os grãos só se espalhem depois de maduros, mas é muito inconveniente do ponto de vista de seres humanos que desejam colhê-los.
     Num pequeno número de plantas, no entanto, uma única mutação genética garante que a raque não se torne quebradiça, nem mesmo quando as sementes amadurecem. Isso é chamado de “raque dura”. Essa mutação é indesejável para as plantas em questão, uma vez que elas são incapazes de dispersar suas sementes, mas foi muito útil para seres humanos coletores de grãos silvestres, que, em consequência, provavelmente colheram um número desproporcional de grãos mutantes de raque dura. Se alguns dos grãos tiverem sido depois plantados para produzir uma safra no ano seguinte, a mutação terá se propagado, aumentando a cada ano a proporção de mutantes de raque dura. Arqueólogos demonstraram em experimentos de campo que foi exatamente isso o que aconteceu com o trigo. Eles estimam que plantas com raques duras, inquebráveis, tornaram-se predominantes em cerca de 200 anos – aproximadamente o tempo que levou a domesticação do trigo, segundo os registros arqueológicos. (No milho, o sabugo é de fato uma gigantesca raque inquebrável.)
     Assim como com o milho, protoagricultores selecionaram pés para obter traços desejáveis no trigo, no arroz e em outros cereais durante o processo de domesticação. Uma mutação no trigo faz as glumas que cobrem cada grão se soltarem mais facilmente, resultando em variedades que se “autodebulham”. Em consequência, os grãos individuais ficam menos protegidos, de modo que essa mutação é um mau negócio na natureza, mas muito útil para agricultores, já que torna mais fácil debulhar os grãos comestíveis apenas batendo feixes de trigo cortados sobre uma eira. Quando os grãos eram colhidos do chão, grãos pequenos e aqueles com glumas ainda presas teriam sido desprezados em favor de grãos maiores e sem glumas, o que ajudou a propagar essas mutações úteis.
     Outro traço comum a muitas plantas domesticadas é a perda da dormência da semente, o mecanismo temporal natural que determina quando uma semente germina. Muitas sementes requerem estímulos específicos, como frio ou luz, antes de começar a germinar, para assegurar que só o farão em circunstâncias favoráveis. Sementes que permanecem dormentes até que um período de frio se encerre, por exemplo, não germinarão no outono e esperarão até que o inverno tenha passado. Agricultores, no entanto, gostariam que as sementes começassem a germinar assim que fossem plantadas. Dada uma coleção de sementes, algumas das quais exibem dormência e outras não, é claro que aquelas que começam a brotar imediatamente têm mais chance de ser colhidas e assim de formar a base da próxima safra. Portanto, quaisquer mutações que suprimem a dormência das sementes tenderão a ser propagadas.
     De maneira semelhante, cereais silvestres germinam e amadurecem em momentos diferentes. Isso assegura que, seja qual for a frequência de chuvas, pelo menos alguns dos grãos vão amadurecer para fornecer sementes para o ano seguinte. A colheita de todo um campo de grãos no mesmo dia, contudo, favorece grãos que amadureceram até aquele momento. Grãos excessivamente ou insuficientemente maduros serão menos viáveis se semeados no ano seguinte. A intenção é reduzir a variação no tempo de amadurecimento de um ano para outro, de modo que, finalmente, o campo inteiro amadureça ao mesmo tempo. Isso não é ideal do ponto de vista da planta, pois significa que, potencialmente, a safra inteira pode malograr, mas é muito conveniente para os agricultores.
     No caso do arroz, a intervenção humana ajudou a propagar propriedades desejáveis, como pés mais altos e maiores, para facilitar a colheita, e mais ramos secundários, com grãos maiores, para aumentar a produção. Por outro lado, a domesticação também tornou o trigo e o arroz mais dependentes da intervenção humana. O arroz perdeu sua capacidade natural de sobreviver em áreas alagadas, à medida que foi mimado por agricultores. E tanto o trigo quanto o arroz tornaram-se menos capazes de se autorreproduzir por causa das raques inquebráveis selecionadas pelos seres humanos. A domesticação do trigo, do arroz e do milho, os três principais cereais, e de seus irmãos menos importantes, a cevada, o centeio, a aveia e o milhete, encerrou variações em torno do mesmo tema genético conhecido: alimento mais conveniente, planta menos resistente.
     Um processo semelhante ocorreu à medida que os seres humanos domesticaram animais para fins alimentícios, a começar com ovelhas e cabras no Oriente Próximo, por volta de 8000 a.C., seguidos por gado vacum e porcos. (Os porcos foram domesticados de maneira independente na China mais ou menos ao mesmo tempo, e os frangos foram domesticados no sudeste da Ásia por volta de 6000 a.C.) A maioria dos animais domesticados tem cérebros menores, visão e audição menos aguçadas que seus ancestrais silvestres. Isso reduz sua capacidade de sobreviver na natureza, mas os torna mais dóceis, o que convém aos agricultores.
     Os seres humanos tornaram-se dependentes de suas novas criações, e vice-versa. Ao fornecer uma provisão de alimentos mais confiável e abundante, a agricultura tornou-se a base para novos estilos de vida e sociedades muito mais complexas. Essas culturas basearam-se numa série de alimentos, mas os mais importantes foram os cereais: trigo e cevada no Oriente Próximo, arroz e milhete na Ásia, milho nas Américas. As civilizações que surgiram posteriormente fundadas nessas bases alimentares, inclusive a nossa, devem sua existência a esses antigos produtos de engenharia genética.

Os centros de origem do milho, do trigo e do arroz domesticados.


Presente na criação

Essa dívida com o passado é reconhecida em muitos mitos e lendas, nos quais a criação do mundo e o nascimento da civilização após um longo período de barbárie estão estreitamente relacionados com essas culturas vitais. Os astecas do México, por exemplo, acreditavam que os homens foram criados cinco vezes, cada geração sendo um melhoramento da anterior. Dizia-se que o teosinto havia sido o principal alimento do homem na terceira e na quarta criações, até que, finalmente, na quinta criação, o homem se alimentou com milho. Somente então prosperou, e seus descendentes povoaram o mundo.
     A história da criação dos maias, no sul do México, narrada no Popul Vuh (ou “livro sagrado”) também envolve repetidas tentativas de criar a humanidade. A princípio, os deuses moldaram os homens com barro, mas as criaturas resultantes mal conseguiam enxergar, não podiam se mover e logo foram dissolvidas pela água. Por isso os deuses tentaram de novo, dessa vez fazendo os homens com madeira. Essas criaturas podiam andar de quatro e falar, mas faltavam-lhes sangue e alma, e não honravam os deuses. Os deuses destruíram esses homens também, de modo que tudo que restou foram alguns macacos que habitavam em árvores. Finalmente, após muita discussão sobre a escolha apropriada de ingredientes, os deuses fizeram uma terceira geração de homens com espigas de milho brancas e amarelas. “Do milho amarelo e do milho branco eles fizeram sua carne; de pasta de fubá fizeram os braços e as pernas do homem. Somente pasta de fubá foi usada na carne de nossos primeiros pais, os quatro homens, que foram criados.” Os maias acreditavam ser descendentes desses quatro homens e de suas mulheres, criadas logo depois.
     O milho figura também na história contada pelos incas da América do Sul para explicar suas origens: em tempos antigos, as pessoas em volta do lago Titicaca viviam como animais selvagens. O deus Sol, Inti, apiedou-se delas e enviou seu filho Manco Capac e sua filha Mama Ocllo, que eram também marido e mulher, para civilizá-las. Inti deu a Manco Capac um bastão de ouro com o qual verificaria a fertilidade do solo e sua adequação para o cultivo do milho. Tendo encontrado um lugar adequado, eles deveriam fundar um Estado e instruir as pessoas no culto apropriado do deus Sol. As viagens do casal finalmente os levaram ao vale Cuzco, onde o bastão de ouro desapareceu na terra. Manco Capac ensinou às pessoas agricultura e irrigação, Mama Ocllo ensinou-lhes fiação e tecelagem, e o vale tornou-se o centro da civilização inca. O milho era considerado uma planta sagrada pelos incas, embora a batata também formasse grande parte de sua dieta.
     O arroz também aparece em inúmeros mitos nos países onde é cultivado. Em mitos chineses, ele aparece para salvar a humanidade quando ela está à beira da inanição. Segundo uma história, a deusa Guan Yin apiedou-se dos seres humanos famintos e espremeu seus seios para produzir leite, que escorreu para as espigas antes vazias dos pés de arroz e se transformou em grãos. Depois ela apertou com mais força, fazendo uma mistura de sangue e leite escorrer para alguns pés. Diz-se que isso explica por que existe arroz nas variedades branca e vermelha. Outro conto chinês fala de um grande dilúvio, após o qual restaram muito poucos animais para serem caçados. Quando procuravam comida, as pessoas viram um cão indo em direção a elas com feixes de sementes compridas e amarelas penduradas na cauda. Elas plantaram as sementes, que se transformaram em arroz, e saciaram sua fome para sempre. Numa série de mitos contados na Indonésia e em todas as ilhas da Indochina, o arroz aparece como uma donzela delicada e virtuosa. A deusa indonésia do arroz, Sri, é a deusa da terra que protege as pessoas contra a fome. Uma história conta como Sri foi morta pelos outros deuses para protegê-la do assédio do rei dos deuses, Batara Guru. Quando seu corpo foi enterrado, brotou arroz de seus olhos e um arroz grudento cresceu de seu peito. Cheio de remorso, Batara Guru deu essas plantas para a humanidade cultivar.
     O mito da criação do mundo e do surgimento da civilização contado pelos sumérios, os antigos habitantes do que é hoje o sul do Iraque, refere-se a um momento, após a criação do mundo por Anu, em que existiam pessoas, mas a agricultura era desconhecida. Ashnan, a deusa dos grãos, e Lahar, a deusa das ovelhas, ainda não tinham aparecido; Tagtug, o patrono dos artesãos, ainda não tinha nascido; e Mirsu, o deus da irrigação, e Sumugan, o deus do gado, ainda não tinham chegado para ajudar a humanidade. Em consequência, “os grãos ... e os grãos de cevada para as diletas multidões ainda não eram conhecidos”. Em vez deles, as pessoas comiam capim e tomavam água. As deusas dos grãos e dos rebanhos foram então criadas para fornecer alimento para os deuses, mas por mais que eles comessem, nunca estavam saciados. Somente com o surgimento de homens civilizados, que lhes faziam oferendas regulares de alimentos, seus apetites foram finalmente satisfeitos. Assim, plantas e animais domesticados foram um presente para o homem, mediante a obrigação de fazer oferendas regulares para os deuses. Esse conto preserva uma lembrança popular de um tempo anterior à adoção da agricultura, quando os seres humanos ainda eram caçadores e coletores. De maneira semelhante, um hino sumério à deusa dos grãos descreve uma era bárbara antes das cidades, campos, currais de ovelhas e estábulos para o gado bovino – uma era que chegou ao fim quando a deusa dos grãos inaugurou um novo tempo de civilização.
      Explicações contemporâneas sobre a base genética da domesticação de plantas e animais são, na realidade, apenas a versão moderna, científica, desses mitos antigos e impressionantemente semelhantes da criação pelo mundo todo. Hoje, diríamos que o abandono da caça e da coleta, a domesticação de plantas e animais e a adoção de um estilo de vida sedentário baseado na agricultura puseram a humanidade no caminho para o mundo moderno, e que esses primeiros agricultores foram os primeiros seres humanos modernos, “civilizados”. Reconhecidamente, esta é uma narrativa muito menos pitoresca que aquelas fornecidas pelos vários mitos da criação, mas, uma vez que a domesticação de certos cereais fundamentais foi um passo essencial rumo ao nascimento da civilização, não há dúvida de que esses contos antigos contêm muito mais que apenas um grão de verdade.

2. As raízes da modernidade

“Maldita é a terra por tua causa; com sofrimento tu te alimentarás dela todos os dias da tua vida.”
Gênesis 3:17

Um mistério agrícola

O mecanismo pelo qual plantas e animais foram domesticados pode ser compreendido, mas isso pouco contribui para explicar as motivações das pessoas que o fizeram. Por que os seres humanos trocaram a caça e a coleta pela agricultura é uma das mais antigas, mais complexas e mais importantes questões na história humana. Isso é curioso porque a troca deixou as pessoas em condições significativamente piores, de uma perspectiva nutricional e também em muitos outros aspectos. De fato, um antropólogo descreveu a adoção da agricultura como “o pior erro na história da raça humana”.
     Ser um caçador-coletor era muito mais divertido que cultivar a terra. Antropólogos que conviveram com grupos sobreviventes de caçadores-coletores relatam que, mesmo nas áreas marginais em que eles são obrigados a viver atualmente, a coleta de alimentos só ocupa uma pequena parte de seu tempo – muito menos do que seria requerido para produzir a mesma quantidade de comida por meio da agricultura. Os boxímanes !kung do Kalahari, por exemplo, gastam normalmente de 12 a 19 horas por semana coletando comida, e os nômades hazda da Tanzânia gastam menos de 14 horas. Isso deixa muito tempo livre para atividades de lazer, participação em atividades sociais etc. Quando perguntado por um antropólogo por que seu povo não havia adotado a agricultura, um boxímane respondeu: “Por que deveríamos plantar, quando há tantas nozes de mongongo no mundo?” (Frutos e nozes de mongongo, que constituem cerca da metade da dieta dos !kung, são colhidos de árvores silvestres e são abundantes mesmo quando não se faz nenhum esforço para propagá-los.) Na verdade, os caçadores-coletores trabalham dois dias por semana e têm fins de semana de cinco dias.
     O estilo de vida dos caçadores-coletores nos tempos pré-agrícolas, em ambientes menos marginais, provavelmente era ainda mais agradável. Costumava-se pensar que a mudança para a agricultura dera às pessoas mais tempo para se dedicarem a atividades artísticas e ao desenvolvimento de novos ofícios e tecnologias. A agricultura, nessa visão, teria sido uma libertação da existência ansiosa e incerta do caçador-coletor. No entanto, o contrário é que é verdadeiro. A agricultura é mais produtiva no sentido de que produz mais alimentos por área: um grupo de 25 pessoas pode subsistir por meio da agricultura em apenas dez hectares, uma área muito menor que os milhares de hectares de que precisariam para subsistir caçando e coletando. A agricultura é, entretanto, menos produtiva quando medida pela quantidade de comida produzida por hora de trabalho; em outras palavras, é um trabalho muito mais árduo.
     Certamente esse esforço valeria a pena se significasse que as pessoas não precisavam mais se preocupar com desnutrição ou inanição, não é? É o que se poderia pensar. No entanto, os caçadores-coletores parecem ter sido muito mais saudáveis que os primeiros agricultores. Segundo evidências arqueológicas, os agricultores tinham maior probabilidade que os caçadores-coletores de sofrer hipoplasia do esmalte dentário – que causa linhas horizontais características nos dentes e indica deficiência nutricional. A agricultura proporciona uma dieta menos variada e menos equilibrada que a caça e a coleta. Os boxímanes comem cerca de 75 diferentes tipos de plantas silvestres, em vez de depender de algumas culturas básicas. Os cereais fornecem as calorias necessárias, mas não contêm a série completa de nutrientes essenciais.
     Por isso os agricultores eram mais baixos que os caçadores-coletores. Isso pode ser determinado a partir de restos esqueletais, mediante a comparação da idade “dentária” com a idade “esqueletal” indicada pelo comprimento dos ossos longos. Uma idade esqueletal inferior à idade dentária é evidência de crescimento tolhido pela desnutrição. Evidências esqueletais da Grécia e da Turquia sugerem que, no fim da última Era do Gelo, cerca de 14 mil anos atrás, a altura média dos caçadores-coletores era 1,75 metro para os homens e 1,65 metro para as mulheres. Em 3000 a.C., após a adoção da agricultura, essas médias tinham caído para 1,60 metro para os homens e 1,52 metro para as mulheres. Foi só nos tempos modernos que os seres humanos recuperaram a estatura dos antigos caçadores-coletores, e somente nas partes mais ricas do mundo. Os gregos e os turcos modernos ainda são mais baixos que seus ancestrais da Idade da Pedra.
     Além disso, muitas doenças danificam os ossos de maneiras características, e estudos de esqueletos revelam que agricultores sofriam de várias doenças por desnutrição, raras ou ausentes entre caçadores-coletores. Entre elas estão o raquitismo (deficiência de vitamina D), o escorbuto (deficiência de vitamina C) e a anemia (deficiência de ferro). Os agricultores eram também mais suscetíveis a doenças infecciosas como lepra, tuberculose e malária, em decorrência do estilo de vida sedentário. A dependência de cereais teve outras consequências específicas: os esqueletos femininos frequentemente exibem evidências de articulações artríticas com deformidades nos dedos dos pés, joelhos e na parte inferior das costas, todas elas associadas ao uso diário de um almofariz-pedestal para moer grãos. Restos dentários mostram que agricultores sofriam de cáries, desconhecidas entre caçadores-coletores, porque os carboidratos das dietas saturadas de cereais eram metabolizados em açúcares por enzimas da saliva na mastigação. A expectativa de vida, que pode igualmente ser determinada a partir de esqueletos, também caiu: evidências do vale do rio Illinois mostram que a expectativa de vida média caiu de 26 anos entre caçadores-coletores para 19 entre agricultores.
     Em alguns sítios arqueológicos é possível acompanhar o desenvolvimento da saúde dos caçadores-coletores, que se tornavam mais sedentários até, por fim, adotarem a agricultura. À medida que os grupos de agricultores se estabelecem e crescem, a incidência de desnutrição, doenças parasíticas e doenças infecciosas se eleva. Em outros sítios, é possível comparar a condição de caçadores-coletores e agricultores vivendo lado a lado. Os agricultores, sedentários, são invariavelmente menos saudáveis que seus vizinhos que vagam livremente. Os agricultores tinham de trabalhar muito mais tempo e mais arduamente para produzir uma dieta menos variada e menos nutritiva, e eram muitos mais propensos a doenças. Diante de todas essas desvantagens, por que cargas-d’água as pessoas adotaram a agricultura?

As origens da agricultura

A resposta imediata é que elas não compreenderam o que estava acontecendo até ser tarde demais. A mudança da caça e da coleta para a agricultura foi gradual da perspectiva de agricultores individuais, embora tenha sido muito rápida no contexto da história humana. Pois, assim como as plantas formam um continuum de silvestres a domesticadas, há uma gradação entre ser exclusivamente caçador e coletor e depender inteiramente de produtos cultivados.
     Caçadores-coletores por vezes manipulam ecossistemas para aumentar a disponibilidade de alimentos, embora tal comportamento fique muito longe do cultivo deliberado em grande escala que chamamos de agricultura. O uso do fogo para limpar terras e estimular novo crescimento, por exemplo, é uma prática que remonta a pelo menos 35 mil anos atrás. Os aborígines australianos, um dos poucos grupos de caçadores-coletores que sobreviveram aos tempos modernos, ocasionalmente plantam sementes para aumentar a disponibilidade de alimentos quando voltam a uma região particular alguns meses depois. Seria um exagero chamar isso de agricultura, já que esse alimento constitui apenas uma pequena fração de sua dieta, mas a manipulação deliberada dos ecossistemas significa que eles tampouco são exclusivamente caçadores-coletores.
     A adoção da agricultura parece ter acontecido à medida que as pessoas se moveram gradualmente ao longo do espectro entre ser puros caçadores-coletores, passando a recorrer cada vez mais a alimentos cultivados, até finalmente depender deles. Teorias para explicar essa mudança são muitas, mas provavelmente não houve uma causa única. Em vez disso, houve provavelmente uma combinação de fatores, cada um dos quais desempenhou um papel maior ou menor nos vários territórios em que a agricultura surgiu de maneira diversa.
     Um dos fatores mais importantes parece ter sido a mudança climática. Estudos do clima antigo, baseados em análise de núcleos de gelo, amostras de solo de mares profundos e perfis de pólen, descobriram que entre 18000 a.C. e 9500 a.C. o clima era frio, seco e extremamente variável, de modo que qualquer tentativa de cultivar ou domesticar plantas teria fracassado. De modo intrigante, há evidências de pelo menos uma tentativa de fazê-lo, numa localidade chamada Abu Hureyra, no norte da Síria. Por volta de 10700 a.C., os habitantes do local parecem ter começado a domesticar centeio, mas a tentativa malogrou por força de um repentino período frio conhecido como o Dryas recente, que começou por volta de 10700 a.C. e durou cerca de 1.200 anos. Depois, por volta de 9500 a.C., o clima tornou-se subitamente mais quente, mais úmido e mais estável, proporcionando uma condição necessária, mas não suficiente, para a agricultura. Afinal, se o clima recentemente estabilizado tivesse sido o único fator a propiciar a adoção da agricultura, as pessoas a teriam adotado simultaneamente no mundo todo; como elas não o fizeram, deve ter havido outras forças em ação.
     Um desses fatores foi um maior sedentarismo, à medida que caçadores-coletores em algumas partes do mundo tornaram-se menos inquietos e começaram a passar a maior parte do ano num único acampamento, até mesmo se estabelecendo em residências permanentes. Há muitos exemplos de comunidades aldeãs sedentárias anteriores à agricultura, como aquelas da cultura natufiana do Oriente Próximo, que floresceu no milênio anterior ao Dryas recente, e outras no litoral norte do Peru e no noroeste da América do Norte, na costa do Pacífico. Em todos os casos, essas pequenas comunidades tornaram-se viáveis graças aos alimentos silvestres locais abundantes, muitas vezes na forma de peixes ou mariscos. Normalmente, caçadores-coletores deslocam seus acampamentos para evitar que a oferta de alimentos numa área específica se esgote, ou para tirar proveito da disponibilidade sazonal de diferentes alimentos. Mas não há necessidade de se mudar de um lugar para outro quando o grupo se estabelece perto de um rio e o alimento vem até ele. O aprimoramento de técnicas de coleta de alimentos no final da Idade da Pedra, com flechas, redes e anzóis melhores, pode também ter promovido o sedentarismo. Podendo extrair mais alimentos (como peixes, pequenos roedores ou mariscos) de seus arredores, um bando de caçadores-coletores não precisava se deslocar tanto.
     O sedentarismo nem sempre levou à agricultura, e alguns grupos de caçadores-coletores estabelecidos sobreviveram até os tempos modernos sem jamais adotá-la. É certo, porém, que ele tornou a mudança para a agricultura mais provável. Caçadores-coletores estabelecidos que coletavam grãos silvestres, por exemplo, podem ter começado a plantar algumas sementes para manter a oferta. O plantio poderia também ter se tornado uma segurança contra variações na oferta de outros alimentos. E, como os grãos são processados com o uso de moendas cujo transporte de um acampamento para outro era inconveniente, um maior sedentarismo teria tornado os grãos um gênero alimentício mais atraente. O fato de os grãos serem ricos em energia e de poderem ser secados e armazenados por longos períodos também contava a seu favor. Não eram um gênero alimentício extremamente empolgante, mas podia-se contar com eles em circunstâncias extremas.
     Não é difícil imaginar como caçadores-coletores sedentários podem ter começado a depender mais intensamente de cereais em sua dieta. O que no início era um alimento relativamente pouco importante ganhou espaço pela simples razão de que protoagricultores podiam assegurar sua disponibilidade (pelo plantio e armazenagem) como não podiam fazer com outras comidas. Evidências arqueológicas do Oriente Próximo sugerem que, inicialmente, protoagricultores cultivavam quaisquer cereais silvestres que estivessem à mão, como trigo einkorn. Mas, à medida que se tornaram mais dependentes deles, mudaram para itens mais produtivos, como trigo emmer, que proporciona mais alimento com a mesma quantidade de trabalho.
     O crescimento populacional resultante do sedentarismo também foi sugerido como fator contribuinte para a adoção da agricultura. Caçadores-coletores nômades têm de carregar tudo consigo quando deslocam seu acampamento, inclusive bebês. Só quando uma criança começa a andar sem ajuda, aos três ou quatro anos, sua mãe pode pensar em ter outro filho. Em comunidades estabelecidas, no entanto, as mulheres não enfrentam esse problema, e podem portanto ter mais filhos. Com isso, a demanda por alimentos nas proximidades teria aumentado e poderia ter estimulado o plantio suplementar e, finalmente, a agricultura. Um problema dessa linha de argumentação, porém, é que em algumas partes do mundo a densidade populacional parece só ter crescido de maneira significativa depois da adoção da agricultura, e não antes.
     Há muitas outras teorias. Em certos locais, caçadores-coletores podem ter se voltado para a agricultura quando as espécies de caça de grande porte que eram suas presas preferidas escassearam. A agricultura pode ter sido estimulada pela competição social, quando grupos rivais competiam para promover os banquetes mais suntuosos; isso poderia explicar por que, em algumas partes do mundo, alimentos de luxo parecem ter sido domesticados antes de alimentos de primeira necessidade. Ou talvez a inspiração fosse religiosa, e as pessoas plantassem sementes como um rito de fertilidade ou para apaziguar os deuses depois de colher grãos silvestres. Já foi sugerido que a fermentação acidental de cereais e a resultante  descoberta da cerveja incentivaram a adoção da agricultura, no intuito de garantir uma provisão regular.
     O importante é que em nenhum momento alguém tomou uma decisão consciente de adotar um estilo de vida inteiramente novo. Em cada passo ao longo do caminho, as pessoas simplesmente decidiram pelo que fazia mais sentido na ocasião: por que ser um nômade quando era possível se estabelecer junto de uma boa provisão de peixes? Se não fosse possível contar com fontes de alimentos silvestres, por que não plantar algumas sementes para aumentar a oferta? A lenta e crescente dependência de alimentos cultivados em que se viram os protoagricultores tomou a forma de uma mudança gradual, não de uma reviravolta repentina. Em algum momento, porém, uma fronteira imperceptível foi atravessada e as pessoas começaram a ficar dependentes da agricultura. A linha é cruzada quando os recursos alimentares silvestres na área circundante, plenamente explorados, já não são suficientes para sustentar a população. A produção deliberada de alimento suplementar por meio da agricultura deixa então de ser opcional e torna-se compulsória. Nesse ponto, não pode haver retorno a um estilo de vida nômade, caçador-coletor – pelo menos sem uma perda significativa de vidas.

Espalharam-se os agricultores ou espalhou-se a agricultura?

Em seguida, a agricultura propõe um segundo enigma. Depois que ganhou raízes em algumas partes do mundo, a questão passa a ser: por que ela se disseminou por praticamente toda parte? Uma possibilidade é que agricultores tenham se espalhado, deslocando ou exterminando caçadores-coletores à medida que avançavam. Outra opção é que caçadores coletores nas margens de áreas agrícolas podem ter decidido seguir o exemplo e tornar-se eles mesmos agricultores, adotando os métodos, as plantas e os animais domesticados de seus vizinhos. Essas duas possibilidades são conhecidas como “difusão dêmica” e “difusão cultural”, respectivamente. Desse modo, foram os próprios agricultores que se difundiram ou foi apenas a ideia de agricultura que se difundiu?
     A ideia de que os fazendeiros se espalharam a partir de seus territórios natais cultivados, levando consigo plantas domesticadas e conhecimento de técnicas agrícolas, é sustentada por evidências de muitas partes do mundo. À medida que agricultores passaram a estabelecer novas comunidades em terras não cultivadas, o resultado foi uma “onda de avanço” centrada nas áreas onde a domesticação ocorreu primeiro. A Grécia, por exemplo, parece ter sido colonizada por agricultores que chegaram por mar do Oriente Próximo, entre 7000 a.C. e 6500 a.C. Arqueólogos encontraram no país muito poucos sítios de caçadores-coletores, mas centenas de sítios agrícolas primitivos. De maneira semelhante, agricultores que chegaram da China através da península coreana parecem ter introduzido o cultivo do arroz no Japão a partir de cerca de 300 a.C. Evidências linguísticas também sustentam a ideia de uma migração a partir de territórios natais agrícolas, em que tanto línguas quanto práticas agrícolas se dispersaram. A distribuição de famílias linguísticas na Europa, no leste da Ásia e na Austronésia é amplamente compatível com evidências arqueológicas sobre a difusão da agricultura. Hoje, quase 90% da população do mundo fala algum idioma pertencente a uma das sete famílias de línguas que tiveram suas origens em dois desses territórios: o Crescente Fértil e partes da China. As línguas que falamos hoje, e as comidas que comemos, descendem daquelas usadas pelos primeiros agricultores.
     No entanto, existem também evidências que sugerem que caçadores-coletores nem sempre foram expulsos ou exterminados por agricultores forasteiros, mas ao contrário, que viviam ao lado deles e em alguns casos tornaram-se também agricultores. O exemplo mais claro é encontrado no sul da África, onde caçadores-coletores khoisan adotaram o gado bovino eurasiano do norte e tornaram-se pastores desses rebanhos. Vários sítios arqueológicos europeus fornecem evidências de agricultores e caçadores-coletores vivendo lado a lado e trocando produtos. Como os dois tipos de comunidade tinham ideias muito diferentes sobre os tipos de ambiente em que era desejável se estabelecer, não há razão para que não pudessem coexistir, desde que restassem nichos ecológicos adequados para os caçadores-coletores. As coisas, entretanto, teriam ficado progressivamente mais difíceis para os caçadores-coletores que viviam perto de agricultores. Estes não se preocupavam tanto em preservar recursos alimentares silvestres perto de suas comunidades, uma vez que tinham alimentos cultivados a que recorrer. Dessa forma, os caçadores-coletores ou se juntavam às comunidades agrárias, ou adotavam eles mesmos a agricultura, ou eram obrigados a se mudar para novas áreas.
     Sendo assim, que mecanismos predominaram? Na Europa, onde o advento da agricultura foi mais intensamente estudado, pesquisadores usaram a análise genética para determinar se os ancestrais dos europeus modernos eram predominantemente caçadores-coletores que adotaram a agricultura ou agricultores imigrantes provenientes do Oriente Próximo. Nesses estudos, pessoas da península anatoliana (oeste da Turquia), que se situa dentro do Crescente Fértil, são consideradas geneticamente representativas dos primeiros agricultores. De maneira semelhante, supõe-se que os bascos são os descendentes mais diretos dos caçadores-coletores, por duas razões. Primeiro, a língua basca não tem nenhuma semelhança com línguas europeias descendentes do proto-indo-europeu, a família linguística introduzida na Europa juntamente com a agricultura, parecendo antes remontar à Idade da Pedra. (Várias palavras bascas para ferramentas começam com “aitz”, o termo usado para pedra, o que sugere que datam de um tempo em que ferramentas de pedra estavam em uso.) Segundo, há diversas variações genéticas específicas dos bascos que não são encontradas em outros europeus.
     Num estudo recente, amostras genéticas foram colhidas desses dois grupos e depois comparadas com amostras de populações de diferentes partes da Europa. Os pesquisadores descobriram que as contribuições genéticas dos bascos e dos anatolianos variavam significativamente através do continente: a contribuição anatoliana (isto é, do agricultor do Oriente Próximo) era de 79% nos Bálcãs, 45% no norte da Itália, 63% no sul da Itália, 35% no sul da Espanha e 21% na Inglaterra. Em suma, a contribuição de agricultores era mais elevada no leste e mais baixa no oeste. Isso fornece a resposta para o enigma e sugere que a agricultura se difundiu como resultado de um processo híbrido em que uma população agricultora migrante se espalhou pela Europa a partir do leste e foi gradualmente diluída por meio de casamentos com membros do grupo dos caçadores-coletores, de modo que a população resultante terminou sendo descendente de ambos os grupos. Provavelmente, a mesma coisa aconteceu também em outras partes do mundo.
     A difusão da agricultura a partir de territórios agrícolas natais, seguida pelo crescimento populacional das comunidades agrárias, significou que os fazendeiros tornaram-se mais numerosos que os caçadores-coletores dentro de poucos milhares de anos. Por volta de 2000 a.C., a maior parte da humanidade havia adotado a agricultura. Foi uma mudança tão fundamental que até hoje, muitos milhares de anos depois, a distribuição das línguas e dos genes humanos continua a refletir o advento da agricultura. Durante a domesticação, plantas foram geneticamente reconfiguradas por seres humanos, e, à medida que a agricultura foi adotada, seres humanos foram geneticamente reconfigurados por plantas.

O homem, um animal agrícola

Os agricultores e suas plantas e animais domesticados selaram um grande pacto e seus destinos se entrelaçaram, embora os agricultores não se dessem conta disso na época. Vejamos o milho. A domesticação o tornou dependente do homem, mas sua aliança com os seres humanos também o levou muito além de suas origens como uma obscura erva mexicana, e hoje ele é um dos produtos mais amplamente cultivados na Terra. Do ponto de vista da humanidade, por outro lado, a domesticação do milho tornou disponível uma nova e abundante fonte de alimento, ao mesmo tempo que seu cultivo (como o de outras plantas) incitou as pessoas a adotar um novo estilo de vida, sedentário, baseado na agricultura. É o homem que está explorando o milho para sua satisfação, ou é o milho que está explorando o homem? A domesticação, ao que parece, é uma via de mão dupla.
     Até hoje, milhares de anos depois que os primeiros agricultores iniciaram o processo de domesticação das plantas e animais, a humanidade continua sendo uma espécie agrícola, e a produção de alimento continua sendo sua principal ocupação. A agricultura emprega 41% da população mundial, mais que qualquer outra atividade, e ocupa 40% da área de terras do globo. (Cerca de um terço dessa terra é usada para a produção de plantas, e aproximadamente dois terços fornecem pastos para gado.) Os mesmos três alimentos que sustentaram as primeiras civilizações continuam sendo os fundamentos da existência humana: trigo, arroz e milho ainda fornecem a maior parte das calorias consumidas pela raça humana. Somente uma pequena parcela da comida consumida pelos seres humanos hoje vem de fontes silvestres: peixes, mariscos e uma pequena quantidade de bagas, castanhas, cogumelos etc.
     Em consequência, praticamente nenhum dos alimentos que comemos hoje pode ser, de fato, qualificado como natural. A quase totalidade deles é resultado de reprodução seletiva – inadvertida de início, mas depois mais deliberada e cuidadosa, à medida que os agricultores propagaram as características mais valiosas presentes na natureza para criar mutantes novos e domesticados, mais adequados às necessidades humanas. Grãos, vacas e frangos, tal como o conhecemos, não existem na natureza, e não existiriam hoje sem a intervenção humana. Até as cenouras alaranjadas são criação humana. Originalmente, elas eram brancas e roxas; a variedade alaranjada, mais doce, foi criada por horticultores holandeses no século XVI como um tributo a Guilherme I, príncipe de Orange. A tentativa de um supermercado britânico de reintroduzir a variedade roxa tradicional em 2002 fracassou porque os fregueses preferiram o tipo alaranjado seletivamente reproduzido.
     Todas as plantas e animais domésticos são tecnologias criadas pelo homem. Mais ainda, quase todas as plantas e animais que conhecemos hoje remontam aos tempos antigos. A maioria foi domesticada antes de 2000 a.C., e muito poucos foram criados desde então. Dos 14 animais de grande porte domesticados, somente um, a rena, foi domesticada nos últimos milênios, e tem valor marginal (embora sua carne seja muito saborosa). O mesmo pode ser dito das plantas: mirtilos, morangos, oxicocos, kiwis, macadâmias, pecãs e cajus foram todos domesticados há relativamente pouco tempo, mas nenhum é um gênero alimentício importante.
     Somente espécies aquáticas foram domesticadas em quantidades significativas no século passado. Em suma, os primeiros agricultores conseguiram domesticar a maioria das plantas e dos animais que valiam a pena muitos milhares de anos atrás. Isso pode explicar por que há uma suposição tão generalizada de que plantas e animais domesticados são naturais, e por que esforços contemporâneos para refiná-los ainda mais, usando técnicas modernas de engenharia genética, atraem tantas críticas e provocam tanto medo. No entanto, pode-se alegar que a engenharia genética é apenas um recente desdobramento num campo de tecnologia que remonta a mais de 10 mil anos atrás. Milho tolerante a herbicidas não existe na natureza, é verdade – mas o mesmo pode ser dito de qualquer outro tipo de milho.
     A simples verdade é que a agricultura é profundamente antinatural. Ela fez mais para mudar o mundo, e teve mais impacto sobre o ambiente, que qualquer outra atividade humana. Levou ao desmatamento generalizado, à destruição ambiental, ao deslocamento de vida silvestre “natural” e à realocação de plantas e animais milhares de quilômetros distantes de seus habitats naturais. Envolve a modificação genética de plantas e animais para criar mutantes monstruosos que não existem na natureza e que, com frequência, não podem sobreviver sem a intervenção humana. Subverteu o modo de vida do caçador-coletor que definira a existência humana por dezenas de milhares de anos, incitando os seres humanos a trocar uma existência variada e sossegada de caça e coleta por vidas de trabalho árduo e enfadonho. A agricultura certamente não seria tolerada se tivesse sido inventada hoje. Apesar disso, a despeito de todos os seus defeitos, ela é a base da civilização tal como a conhecemos. Plantas e animais domesticados são os próprios fundamentos do mundo moderno.




Tom Standage

Uma história comestível da humanidade




Tradução:
Maria Luiza X. de A. Borges

Uma edição:
Zahar Editores




Disponibiliado por:
Le Livros




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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."



Sumário


INTRODUÇÃO   Ingredientes do passado

PARTE I   Os fundamentos comestíveis da civilização
     1. A invenção da agricultura
     2. As raízes da modernidade

PARTE II   Comida e estrutura social
     3. Alimento, riqueza e poder
     4. Seguir o alimento

PARTE III   Os caminhos dos alimentos
     5. Estilhaços do paraíso
     6. Sementes de impérios

PARTE IV   Comida, energia e industrialização
     7. Novo Mundo, novos alimentos
     8. A máquina a vapor e a batata

PARTE V   Comida é arma
     9. O combustível da guerra
     10. Luta por comida

PARTE VI   Comida, população e desenvolvimento
     11. Alimentar o mundo
     12. Paradoxos da abundância

EPÍLOGO   Ingredientes do futuro
     
     Notas
     Bibliografia
     Agradecimentos

     Índice remissivo

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