sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Uma história comestível da humanidade - Os caminhos dos alimentos

PARTE III

5. Estilhaços do paraíso

“Não cessamos de comprar e vender nas várias ilhas, até que chegamos à terra de Hind, onde compramos cravos-da-índia, gengibre e toda sorte de especiarias, e dali viajamos para a terra de Sind, onde também compramos e vendemos. Nesses mares indianos, vi incontáveis maravilhas.”
DE “SIMBÁ, O MARUJO”
EM O livro das mil e uma noites

O intrigante atrativo das especiarias

Serpentes voadoras, aves carnívoras gigantescas e criaturas ferozes semelhantes a morcegos eram apenas alguns dos perigos que esperavam quem tentasse colher especiarias nas terras exóticas em que elas cresciam, segundo os historiadores da antiga Grécia. Heródoto, o escritor grego do século V a.C. conhecido como o “pai da história”, explicou que para colher canela-da-china era preciso vestir um traje de corpo inteiro feito com couro de boi, cobrindo tudo exceto os olhos. Somente assim a pessoa estaria protegida das “criaturas aladas semelhantes a morcegos que gritam horrivelmente e são muito ferozes... É preciso impedir que elas ataquem os olhos dos homens enquanto eles cortam a canela-da-china.”
     Mais estranho ainda, afirmou Heródoto, era o processo de colheita da canela. “Ignora-se por completo em que país ela cresce”, escreveu ele. “Dizem os árabes que os paus secos que chamamos de canela são trazidos à Arábia por grandes aves, que os carregam para seus ninhos feitos de barro e localizados sobre precipícios nas montanhas que nenhum homem é capaz de galgar. O método inventado para se obter os paus de canela é este: as pessoas cortam os corpos de bois mortos em pedaços muito grandes e os deixam no chão perto dos ninhos. Depois elas se dispersam, e as aves vêm voando e carregam a carne para seus ninhos, os quais, sendo fracos demais para suportar o peso, caem no chão. Os homens aproximam-se e apanham a canela. Adquirida desta maneira, ela é exportada para outros países.”
     Teofrasto, um filósofo grego do século IV a.C., tinha uma história diferente. A canela, ele ouvira contar, crescia em vales profundos, onde era guardada por serpentes mortais. A única maneira segura de colhê-la era usando luvas e sapatos protetores e, tendo-a colhido, deixar um terço da colheita para trás como um presente para o sol, que faria a oferenda se inflamar. Outra história era contada sobre as serpentes voadoras que protegiam as árvores que produzem o olíbano. Segundo Heródoto, os colhedores da especiaria só podiam afugentar as serpentes queimando benjoim, uma resina aromática, para produzir nuvens de incenso.
     Escrevendo no século I, Plínio o Velho, um escritor romano, não dava crédito a essas histórias. “Esses velhos contos”, declarou, “foram inventados pelos árabes para elevar o preço de suas mercadorias.” Ele poderia ter acrescentado que as histórias fantásticas serviam também para camuflar dos compradores europeus as origens das especiarias. O olíbano vinha da Arábia, mas a canela não; suas origens eram muito mais distantes, no sul da Índia e no Sri Lanka, de onde era expedida através do oceano Índico, juntamente com a pimenta e outras especiarias. Contudo, os mercadores árabes que transportavam esses produtos importados junto com seus próprios condimentos locais em caravanas de camelos através do deserto, até o Mediterrâneo, preferiam manter envoltas em mistério as verdadeiras origens de suas mercadorias incomuns.
     Isso funcionava maravilhosamente. Os clientes dos mercadores árabes em todo o Mediterrâneo estavam dispostos a pagar somas extraordinárias por especiarias, em grande parte graças às suas conotações exóticas e origens misteriosas. Não há nada de inerentemente valioso nas especiarias, que são principalmente extratos vegetais derivados de seivas secas, gomas e resinas, cascas de árvores, raízes, sementes e frutas secas, mas elas eram apreciadas por seus aromas e sabores incomuns, que são em muitos casos mecanismos defensivos para repelir insetos ou pragas. Além disso, as especiarias são nutricionalmente irrelevantes. O que têm em comum é serem duráveis, leves e de difícil obtenção, só podendo ser encontradas em lugares específicos. Esses fatores as tornaram ideais para o comércio a longa distância – e quanto maiores as distâncias pelas quais eram transportadas, mais desejadas, exóticas e caras se tornavam.

Por que as especiarias eram especiais

A palavra especiaria vem do latim species, que é também a raiz de palavras como especial, especialmente e assim por diante. O sentido literal de species é “tipo” ou “variedade” – a palavra ainda é usada nesse sentido em biologia –, mas ela passou a denotar itens valiosos porque era usada para designar os tipos ou variedades de coisas sobre as quais era preciso pagar imposto. A Tarifa de Alexandria, um documento romano do século V, é uma lista de 54 desses itens, sob o título species pertinentes ad vectigal, que significa literalmente “os tipos (de coisas) sujeitos a taxas”. A lista inclui canela, canela-da-china, gengibre, pimenta-branca, cardamomo, agáloco e mirra, todos itens de luxo sujeitos a uma taxa de importação de 25% no porto egípcio de Alexandria, através do qual as especiarias do Oriente seguiam rumo ao Mediterrâneo e mais além para fregueses europeus.
     Hoje reconheceríamos essas variedades, ou “species”, como especiarias. Mas a Tarifa de Alexandria arrola também vários itens exóticos – leões, leopardos, panteras, seda, marfim, casco de tartaruga e eunucos indianos – que eram tecnicamente também especiarias. Como apenas itens de luxo raros e dispendiosos, sujeitos a taxas extras, eram assim qualificados, se a oferta de um item aumentava e seu preço caía, ele podia ser retirado da lista. Isso provavelmente explica porque a pimenta-do-reino, a especiaria mais usada pelos romanos, não aparece na Tarifa de Alexandria: ela se tornara banal no século V em resultado de importações cada vez maiores da Índia. Hoje a palavra especiaria é usada de maneira mais restrita, aplicável somente a itens comestíveis ou culinários. Pimenta-do-reino é uma especiaria, embora não apareça na Tarifa, e tigres não são, embora apareçam.
     As especiarias eram portanto, por definição, mercadorias importadas e caras. Esse era um componente a mais de sua atratividade. Consumi-las era uma maneira de demonstrar riqueza, poder e generosidade. Elas eram dadas de presente, legadas em testamentos ao lado de outros itens de valor, e até usadas como moeda em alguns casos. Na Europa, os gregos parecem ter sido os pioneiros em usá-las na culinária – antes eram utilizadas em incensos e perfumes. Como aconteceu com tantas outras coisas, os romanos tomaram emprestada, ampliaram e popularizaram essa ideia grega. O livro de receitas de Apício, uma compilação de 478 receitas romanas, requeria generosas quantidades de especiarias estrangeiras, entre as quais pimenta, gengibre, saussúrea, malóbatro, nardo e cúrcuma, em receitas como a de avestruz condimentada. Na Idade Média, a comida era prodigamente afogada em especiarias. Nos livros de culinária medievais, elas aparecem em pelo menos metade das receitas, por vezes três quartos delas. Carne e peixe eram servidos com molhos intensamente condimentados, inclusive com várias combinações de cravos, noz-moscada, canela, pimenta e macis. Com sua comida ricamente temperada, a elite tinha literalmente gostos caros.
     Esse entusiasmo pelas especiarias é por vezes atribuído a seu uso para mascarar o gosto de carne podre, dada a suposta dificuldade de conservação desta por longos períodos. Mas usá- las dessa maneira teria sido uma coisa muito estranha, em vista do seu alto custo. Qualquer pessoa com condições para comprar especiarias teria certamente tido condições para comprar carne boa; as especiarias eram de longe o ingrediente mais caro. E há muitos registros medievais de comerciantes punidos por vender carne em mau estado, o que sem dúvida desmente a noção de que esta era invariavelmente pútrida e sugere que isso era a exceção, não a regra. A origem do mito surpreendentemente persistente sobre carne ruim e especiarias reside no uso destas para ocultar o gosto salgado da carne conservada pela salga, uma prática generalizada.
     Num outro sentido, mais místico, as especiarias eram vistas como antídotos para a miséria terrena. Pensava-se que eram estilhaços do paraíso que tinham caído no mundo comum. Segundo algumas autoridades antigas, o gengibre e a canela eram pescados no Nilo com redes, tendo sido arrastados do rio do paraíso (ou do Jardim do Éden, segundo autores cristãos posteriores), onde plantas exóticas cresciam em abundância. Eles proporcionavam um gosto sobrenatural do paraíso em meio à sórdida realidade da existência terrena. Daí o uso religioso do incenso, para fornecer o aroma do reino celeste, e o costume de oferecer especiarias aos deuses como oferendas incandescentes. Especiarias eram também usadas para embalsamar os mortos e prepará-los para a vida após a morte. Um escritor romano chegou mesmo a dizer que a mítica fênix fazia seu ninho com – que mais? – uma seleção de especiarias. “Ela reúne as especiarias e aromas colhidos pelos assírios e pelos ricos árabes; aqueles que são colhidos pelos povos pigmeus e pela Índia, e que crescem no seio macio da terra de Sabá. Reúne canela, o perfume do amomo, que flutua longamente no ar, bálsamos misturados com folhas de tejpat; há também uma nota de cássia suave e goma-arábica, e ricas gotas de olíbano. Acrescenta as tenras espigas do suave nardo e o poder da mirra de Panqueia.”
     O atrativo desses produtos, portanto, originou-se de uma combinação de suas origens misteriosas e distantes, seus consequentes altos preços e valor como símbolo de status e suas conotações místicas e religiosas – além, é claro, de seu aroma e sabor. O fascínio antigo pelas especiarias pode parecer arbitrário e estranho hoje, mas sua intensidade não pode ser subestimada. A busca por elas foi a terceira maneira pela qual o alimento refez o mundo, tanto ao ajudar a iluminar sua completa extensão e geografia quanto ao motivar exploradores europeus a procurar um acesso direto para as Índias, estabelecendo, assim, impérios comerciais rivais. Examinar o comércio de especiarias da perspectiva europeia pode parecer estranho, uma vez que esse continente ocupou nele apenas uma posição periférica e um papel pequeno nos tempos antigos. Isso serviu, porém, para especialmente realçar o mistério e o atrativo desses produtos para os europeus, levando-os finalmente a descobrir as verdadeiras origens dessas raízes secas, bagas murchas, ramos ressecados, lascas de casca de árvore e fragmentos pegajosos de goma tão estranhamente atraentes – com consequências da máxima importância para o curso da história humana.

A rede internacional do comércio de especiarias

Por volta de 120 a.C., um navio foi encontrado encalhado no litoral do mar Vermelho, aparentemente sem nenhum sobrevivente. Todos a bordo tinham morrido de fome – exceto, como se descobriu, um homem, e também ele estava quase morto. Deram-lhe água e comida e levaram-no para a corte egípcia em Alexandria, onde foi apresentado ao rei Ptolomeu VIII (conhecido como Fiscon, ou “barrigudo”, por causa de sua pança). Contudo, como ninguém conseguia entender o que o marinheiro estrangeiro dizia, o rei o despachou para aprender um pouco de grego, a língua oficial do Egito na época. Não muito tempo depois, o marinheiro voltou à corte para contar sua história. Explicou que era da Índia e que seu navio, tendo se desviado da rota ao cruzar o oceano, acabara à deriva no mar Vermelho.
     Como a única rota conhecida para a Índia na época envolvia bordejar a costa da península Arábica – algo que os marinheiros alexandrinos eram proibidos de fazer pelos mercadores árabes, que queriam guardar o lucrativo comércio com a Índia para si mesmos –, a referência do marinheiro a uma rota rápida e direta através do oceano aberto foi recebida com descrença. Para provar que dizia a verdade, e certamente para assegurar uma passagem de volta para casa, o marinheiro ofereceu-se como guia numa expedição à Índia. O rei concordou e nomeou como chefe da expedição um de seus leais conselheiros, um grego chamado Eudoxo, conhecido por seu interesse em geografia. Eudoxo partiu no dia aprazado e voltou muitos meses depois com um carregamento de especiarias e joias, que o rei confiscou todo para si. Mais tarde, Eudoxo fez uma segunda viagem à Índia por ordem da mulher e sucessora de Ptolomeu VIII, Cleópatra III. Inspirado pelo naufrágio do que parecia ser um navio espanhol na costa da Etiópia, no leste da África, ele tornou-se obcecado pela ideia de que era possível navegar por toda a volta do continente. Navegou ao longo do litoral norte e rumou para o Atlântico para tentar a circunavegação, mas nunca mais se teve notícia dele.
     Essa, pelo menos, é a história contada por Estrabão, filósofo grego que escreveu um tratado de geografia no início do século I. O próprio Estrabão era cético em relação à história: por que o marinheiro indiano sobreviveu se todos os seus companheiros de bordo morreram? Como aprendeu grego tão depressa? No entanto, a história parece plausível porque o comércio direto por via marítima entre o mar Vermelho e a costa oeste da Índia realmente teve início durante o século I a.C., logo após a suposta aparição do náufrago indiano em Alexandria. Até essa época, só marinheiros árabes e indianos conheciam o segredo dos ventos alísios sazonais, que permitiam uma passagem rápida e regular através do oceano entre a península Arábica e a costa oeste da Índia. Esses ventos sopram do sudoeste entre junho e agosto e impelem navios em direção ao leste; depois, entre novembro e janeiro, sopram do nordeste e impelem-nos novamente em direção ao oeste. O conhecimento dos ventos e o controle dos árabes sobre as rotas por terra através da península Arábica davam aos comerciantes indianos e árabes um firme controle sobre o comércio entre a Índia e o mar Vermelho. Eles vendiam especiarias e outras mercadorias orientais a comerciantes alexandrinos em mercados no sudoeste da Arábia. Essas mercadorias eram depois enviadas mar Vermelho acima, por terra até o Nilo, e finalmente Nilo acima até a própria Alexandria.
     Na esteira de Eudoxo, no entanto, marinheiros alexandrinos aprenderam como tirar proveito dos ventos alísios – consta que os detalhes foram descobertos por um grego chamado Hipalo, cujo nome foi dado ao vento sudoeste. Eles tornaram-se então capazes de passar ao largo dos mercados árabes e navegar diretamente através do oceano para a costa oeste da Índia, eliminando os intermediários árabes e indianos. O volume das expedições aumentou quando comerciantes romanos ganharam acesso direto ao mar Vermelho, após a anexação do Egito por Roma em 30 a.C. O controle romano do comércio entre o mar Vermelho e a Índia foi cimentado sob o imperador Augusto, que ordenou ataques aos portos do sul da Arábia, reduzindo Aden, o principal entreposto, a uma “mera aldeia”, segundo um observador. No início do século I, nada menos que 120 navios romanos navegavam para a Índia todos os anos para comprar especiarias, entre as quais pimenta-do-reino, saussúrea e nardo – juntamente com pedras preciosas, seda chinesa e animais exóticos para serem abatidos nas muitas arenas do mundo romano. Pela primeira vez, os europeus haviam se tornado participantes diretos da florescente rede comercial do oceano Índico, o eixo do comércio global na época.
     O “Périplo do mar Eritreano”, um manual para marinheiros escrito no século I por um navegador grego desconhecido, dá uma ideia da frenética atividade comercial nos mercados interconectados pelo oceano Índico. Ele descreve os portos ao longo da costa oeste da Índia e suas especialidades, de Barbarikon no norte (um bom lugar para comprar saussúrea, nardo, bdélio e lápis-lazúli) a Barygaza (bom para pimenta-longa, marfim, seda e uma forma local de mirra), até Nelcynda, quase na extremidade sul do país. Nessa região, o principal comércio era o de pimenta, “cultivada em quantidade” no interior, segundo o Périplo. Havia também oferta de malóbatro, a folha da canela local e uma especiaria particularmente apreciada: meio quilo de folhas pequenas alcançavam 75 denários em Roma, ou cerca de seis vezes o salário mensal básico. Em todos esses portos, os comerciantes romanos ofereciam vinho, cobre, estanho, chumbo, vidro e coral vermelho do Mediterrâneo, apreciado na Índia como um amuleto protetor. Mas, em geral, os comerciantes romanos tinham de pagar pelas especiarias com ouro e prata, pois a maioria de suas mercadorias tinha pouco atrativo para os comerciantes indianos. Os poemas em tâmil do século I mencionam os “yavanas”, um termo genérico para pessoas do Ocidente, com seus grandes navios e riqueza que “nunca minguavam”, uma referência às vastas quantidades de ouro e prata que eram entregues em troca de especiarias.

A rota marítima para a Índia deu aos marinheiros alexandrinos (e mais tarde aos romanos) acesso direto ao mercado de especiarias, evitando a Arábia inteiramente.

     Em seguida, o Périplo fala dos portos da costa leste da Índia e dos navios pequenos que faziam comércio entre as costas leste e oeste. Menciona também os navios muito maiores que atravessam a baía de Bengala, entre a Índia e o sudeste da Ásia, provavelmente embarcações malaias ou indonésias. Dado o tamanho dos navios romanos, o fato de as dimensões dessas outras embarcações serem ressaltadas sugere que elas eram realmente muito grandes. Provavelmente, transportavam mercadorias de regiões mais a leste, como noz-moscada, macis e cravos das ilhas das especiarias da Indonésia (as Molucas) e seda da China.
     Além desse ponto, o Périplo torna-se bastante vago. Fornece, porém, pelo menos um vislumbre, pela perspectiva europeia, de uma vasta rede comercial cujas primeiras conexões haviam sido estabelecidas milhares de anos antes. O cardamomo do sul da Índia já estava disponível na Mesopotâmia no terceiro milênio a.C.; navios egípcios já traziam olíbano e outras plantas aromáticas da terra de Punt (provavelmente Etiópia) no segundo milênio a.C., e o faraó Ramsés II foi enterrado, em 1224 a.C., com um grão de pimenta-do-reino da Índia enfiado em cada uma das narinas. Numa onda de expansão entre 500 a.C. e 200 d.C., no entanto, a rede do comércio de especiarias passou a abarcar todo o Velho Mundo, com a canela e a pimenta da Índia sendo levadas a regiões tão a oeste quanto a Britânia, e o olíbano da Arábia chegando tão a leste quanto a China. A plena extensão dessa rede era, porém, geralmente desconhecida por seus participantes, uma vez que nem sempre eles estavam cientes das origens das mercadorias que comerciavam. Assim como os gregos pensavam que as especiarias indianas que chegavam até eles por meio de comerciantes árabes provinham de fato da Arábia, do mesmo modo, ao que parece, os chineses supunham que noz-moscada e cravos vinham da Malásia, de Sumatra ou de Java, embora estes fossem na realidade apenas portos de escala ao longo das rotas de comércio marítimo desde sua verdadeira fonte mais a leste, nas Molucas.
     As especiarias também cruzavam o mundo por terra. Desde o século II a.C., rotas terrestres conectavam a China ao leste do Mediterrâneo, ligando o mundo romano no Ocidente à China Han no Oriente. (No século XIX, essas rotas foram chamadas de Rota da Seda, embora muitos produtos além desse fossem transportados por ali e embora houvesse, de fato, uma rede de caminhos Oriente-Ocidente, não uma única rota.) Almíscar, ruibarbo e alcaçuz eram comerciados por essa via. Especiarias também viajavam por terra entre o norte e o sul da Índia, entre a Índia e a China e entre o sudeste da Ásia e o interior da China. Noz-moscada, macis e cravos eram disponíveis na Índia e na China nos tempos romanos, mas só passaram a chegar regularmente à Europa nos estertores do Império Romano.
     A extensão desse comércio e o montante gasto com a importação de mercadorias estrangeiras exóticas provocaram alguma oposição em Roma. Em primeiro lugar, ele era extravagante, o que não condizia com os valores romanos, supostamente tradicionais, de modéstia e frugalidade. Significava também que grandes quantidades de prata e ouro estavam fluindo para o Oriente. Para compensar esse fluxo, era preciso que os romanos encontrassem novas fontes de metais preciosos, seja através da conquista ou pela abertura de novas minas. E tudo isso se destinava à compra de produtos que eram, estritamente falando, desnecessários e vendidos a preços exorbitantes.
     Nas palavras de Plínio o Velho: “A Índia absorve pelo menos 55 milhões de sestércios de nossa riqueza por ano, mandando de volta mercadorias que nos são vendidas por cem vezes o seu custo original.” No total, relatou ele, o déficit comercial anual de Roma com o Oriente montava a cem milhões de sestércios, ou cerca de dez toneladas de ouro, depois que a seda chinesa e outros artigos finos passaram a ser contados junto com as especiarias. “Essa é a soma que nossos luxos e nossas mulheres nos custam”, lamentou. Plínio dizia-se perplexo com a popularidade da pimenta. “É notável que seu uso tenha se tornado tão apreciado. Algumas comidas têm a doçura como atrativo, outras têm uma aparência convidativa, mas no caso da pimenta nem o grão nem a fruta têm nada que os recomendem”, escreveu. “A única qualidade agradável é sua pungência – e por causa disso vamos à Índia!”
     De maneira semelhante, Tácito, contemporâneo de Plínio, preocupava-se com a dependência romana de “luxos extravagantes da mesa”. Quando escreveu essas palavras, por volta do fim do século I, contudo, o comércio romano de especiarias já não estava mais no auge. Nos séculos seguintes, à medida que o Império Romano declinou e sua riqueza e esfera de influência encolheram, o comércio direto de especiarias com a Índia minguou; os comerciantes árabes, indianos e persas se reafirmaram como os principais fornecedores para o Mediterrâneo. Mas as especiarias continuaram a circular. Um livro de receitas romano do século I, Os excertos de Vinidário, lista mais de 50 ervas, especiarias e extratos de plantas sob o título “Sumário das especiarias que se deve ter em casa para que nada falte à condimentação dos pratos”, inclusive pimenta, gengibre, saussúrea, nardo, folha de canela e cravos. Quando sitiou Roma em 408 d.C., Alarico, o rei dos Godos, exigiu um resgate de 2.200 quilos de ouro, 30.000 peças de prata, 4.000 túnicas de seda, 3.000 peças de tecido e 1.300 quilos de pimenta. Evidentemente, a oferta de seda chinesa e pimenta indiana continuava, mesmo enquanto o Império Romano desmoronava e fragmentava-se.
     No entanto, durante o período em que floresceu, o comércio direto com o Oriente introduziu brevemente o povo da Europa no vibrante sistema comercial do oceano Índico. No século I, essa rede comercial abarcava todo o Velho Mundo, interligando os mais poderosos da Eurásia na época: o Império Romano na Europa, o Império Parto na Mesopotâmia, o Império Kushan no norte da Índia e a dinastia Han na China. (Roma e China chegaram até a estabelecer contatos diplomáticos mútuos.) As especiarias eram apenas uma das coisas que viajavam através dessa rede global por terra e mar. Por terem uma relação muito vantajosa entre valor e peso, só poderem ser encontradas em certas partes do mundo, serem facilmente armazenadas e intensamente procuradas, porém, as especiarias foram excepcionais, sendo comerciadas de uma ponta a outra da rede, como demonstram, por exemplo, as referências em fontes romanas aos cravos, que só cresciam nas ilhas Molucas, do outro lado do globo. Elas levavam um sabor do sudeste da Ásia para mesas romanas e o perfume da Arábia para templos chineses. E à medida que eram comerciadas pelo mundo todo, as especiarias levavam também outras coisas consigo.

Carregadas de significado

Mercadorias não são as únicas coisas que circulam ao longo de rotas comerciais. Novas invenções, línguas, estilos artísticos, costumes sociais e crenças religiosas, tanto quanto mercadorias físicas, são também transportados através do mundo por comerciantes. Foi assim que o conhecimento sobre o vinho e sua fabricação viajou do Oriente Próximo para a China no século I, e que o conhecimento sobre o macarrão fez a viagem na direção contrária. Outras ideias logo se seguiram, inclusive o papel, a bússola magnética e a pólvora. Os numerais arábicos originaram-se realmente na Índia, mas foram transmitidos para a Europa através de comerciantes árabes, o que explica seu nome. Influências helenísticas são claramente visíveis na arte e na arquitetura da cultura kushan do norte da Índia; as construções venezianas eram decoradas com floreios árabes. No entanto, em dois campos em particular – geografia e religião – comércio e transmissão de conhecimento reforçavam-se mutuamente.

No século I, as redes de comércio do Velho Mundo, ligavam o Mediterrâneo, no Ocidente, à China e às ilhas das especiarias, no Oriente.

     Uma das coisas que fazem as especiarias parecerem tão exóticas é sua associação com terras misteriosas e longínquas. Para os geógrafos primitivos do Velho Mundo, que tentavam compor os primeiros mapas e descrições do mundo, as especiarias muitas vezes marcavam os limites de seu conhecimento. Estrabão, por exemplo, referiu-se ao “país indiano que produz canela” situado “na borda do mundo habitável”, além do qual a Terra, dizia ele, era quente demais para permitir aos seres humanos viver. Mesmo o autor do Périplo, mais viajado, tinha pouca ideia do que acontecia a leste da foz do Ganges: havia uma grande ilha, “o último lugar habitável do mundo” (possivelmente Sumatra), depois do qual “o mar chega ao fim em algum lugar”. Para o norte ficava a misteriosa terra de “Thina” (China), a fonte da seda e das folhas de malóbatro (canela).
     Os comerciantes e geógrafos dependiam uns dos outros: os primeiros precisavam de mapas, e os cartógrafos precisavam de informação. Os comerciantes visitavam geógrafos antes de viajar, e podiam partilhar informações na volta. Saber quantos dias de viagem eram necessários para chegar de um ponto a outro, ou itinerários típicos de rotas particulares, tornava possível a estimativa de distâncias, e assim a elaboração de mapas. Desse modo os geógrafos aprendiam sobre o traçado do mundo como um resultado indireto do comércio de especiarias e outras mercadorias. É também por isso que tanta informação sobre especiarias vem dos primeiros geógrafos. Nem eles nem os comerciantes queriam revelar todos os seus segredos, mas alguma troca de ideias fazia sentido para ambas as partes. Os comerciantes trabalhavam de mãos dadas com cartógrafos, culminando no mapa compilado no século II por Ptolomeu, um matemático, astrônomo e geógrafo romano. Surpreendentemente preciso mesmo para padrões modernos, ele formou a base da geografia ocidental por mais de mil anos.
     A interdependência da geografia e do comércio foi ressaltada pelo próprio Ptolomeu, que observou que era somente graças àquele que a localização da Torre de Pedra, um posto comercial fundamental na Rota da Seda para a China, era conhecida. Ele estava perfeitamente ciente de que a Terra era esférica, algo que havia sido demonstrado por filósofos gregos centenas de anos antes, e deu tratos à bola para encontrar a melhor maneira de representar isso numa superfície plana. Sua estimativa da circunferência da Terra, no entanto, estava errada. Embora Eratóstenes, um matemático grego, tivesse feito esse cálculo 400 anos antes e chegado bem perto da resposta certa, o número de Ptolomeu foi um sexto menor – assim, ele pensou que a massa de terra eurasiana estendia-se pelo mundo muito mais do que de fato o faz. Essa superestimação da extensão de terras da Ásia para o leste foi um dos fatores que mais tarde estimularam Cristóvão Colombo a viajar rumo ao oeste para encontrá-la.
     Ptolomeu acreditava também que o oceano Índico era cercado de terra por todos os lados, apesar de relatos de que podia ser alcançado a partir do Atlântico quando se contornava o extremo sul da África. (Heródoto, por exemplo, contou sobre fenícios que haviam circunavegado a África por volta de 600 a.C., levando cerca de três anos para fazê-lo e achando as estações do ano estranhamente invertidas à medida que avançavam para o sul.) Geógrafos árabes compreenderam durante o século X que a ideia de um oceano Índico cercado por terra era errada. Um deles, al-Biruni, escreveu sobre “uma abertura nas montanhas ao longo da costa sul [da África]. Há certas provas dessa comunicação, embora ninguém tenha sido capaz de confirmá-la visualmente.” Os informantes de al-Biruni eram sem dúvida comerciantes.
     Crenças religiosas eram outro tipo de informação que se espalhava naturalmente ao longo de rotas comerciais, à medida que missionários seguiam caminhos abertos por comerciantes e que os próprios comerciantes levavam suas crenças para novas terras. O budismo Mahayana espalhou-se pelas rotas comerciais da Índia até a China e o Japão, e o budismo Hinahyana espalhou-se do Sri Lanka até Burma, Tailândia e Vietnã. Reza a tradição que, no século I, o apóstolo Tomás levou o cristianismo para a costa de Malabar, na Índia, chegando num navio mercante de especiarias a Cranganore (a moderna Kodungallur) em 52 d.C. Mas a simbiose religiosa mais impressionante foi com o islamismo. Sua expansão inicial, a partir de seu lugar de origem, na península Arábica, foi de natureza militar. Um século depois da morte do profeta Maomé, em 632 d.C., seus seguidores já haviam conquistado toda a Pérsia, a Mesopotâmia, a Palestina e a Síria, o Egito, o resto da costa norte-africana e a maior parte da Espanha. Após o ano 750 d.C., porém, a difusão do islamismo esteve estreitamente associada ao comércio: à medida que viajavam para fora da península Arábica, os comerciantes muçulmanos levavam sua religião consigo.
     Os distritos comerciais árabes em portos estrangeiros logo se converteram ao islamismo. Os impérios africanos que comerciavam com o mundo muçulmano através do Saara (como o reino de Gana e o Império Mali que o substituiu) converteram-se entre os séculos X e XII. O islamismo espalhou-se também ao longo de rotas comerciais para as cidades da costa leste da África. E, é claro, foi levado através das rotas das especiarias do oceano Índico para a costa oeste da Índia, e além. No século VIII, comerciantes árabes estavam navegando por todo o percurso até a China para comerciar em Cantão – um comércio direto facilitado pela unificação política produzida pela ascensão do islamismo no Ocidente e o início da dinastia Tang da China no Oriente. Tratava-se, contudo, de uma viagem particularmente perigosa. Buzurg ibn Shahriyar, um escritor persa, fala do capitão Abharah, um navegador lendário que fez a viagem para a China sete vezes e viveu para contar a história, mas por pouco: vítima de um naufrágio em uma de suas viagens, ele escapou como o único sobrevivente de seu navio.
     Esse foi o período das estrambólicas aventuras descritas nas histórias de Simbá, o Marujo, que faz grandes viagens oceânicas, volta para casa como um homem rico, gasta o butim e depois fica ávido por aventuras, partindo novamente. As histórias de Simbá se baseiam nas experiências reais de comerciantes árabes que atravessavam o oceano Índico. Ocorre que o comércio direto com a China terminou em 878 d.C., quando rebeldes que se opunham ao regime Tang saquearam Cantão e mataram milhares de estrangeiros; dali em diante os mercadores da Arábia não foram além da Índia ou do sudeste da Ásia, onde comerciavam com mercadores chineses. O islamismo, contudo, continuou a se espalhar ao longo das rotas comerciais e finalmente se enraizou por toda a volta do oceano Índico, chegando a Sumatra no século XIII e às ilhas das especiarias, as Molucas, no século XV.
     Comércio e islamismo provaram-se extremamente compatíveis. A profissão de comerciante era considerada honrada, até porque o próprio Maomé a exercera, fazendo várias viagens à Síria ao longo das rotas terrestres que levavam especiarias do oceano Índico para o Mediterrâneo. À medida que o islamismo se difundiu, a língua, a cultura, as leis e os costumes comuns dentro do mundo muçulmano proporcionaram um ambiente fértil em que o comércio pôde prosperar. Comerciantes muçulmanos em viagem eram mais propensos a fazer negócios com correligionários nos centros comerciais, e depois que uma importante cidade comercial em determinada região se convertia ao islamismo, fazia sentido para outras cidades nas proximidades seguir seu exemplo, adotando as leis muçulmanas e a língua árabe. O explorador veneziano Marco Polo, visitando Sumatra no fim do século XIII, observou que a extremidade nordeste da ilha era “tão frequentada por comerciantes sarracenos [árabes] que eles tinham convertido os nativos à Lei de Maomé”. Mesmo que alguns comerciantes se convertessem de início por razões de conveniência comercial, a rápida difusão do islamismo sugere que eles, ou pelo menos seus descendentes, logo se tornaram inteiramente sinceros em sua adesão à nova religião. O comércio espalhou o islamismo, e o islamismo promoveu o comércio. Vale a pena notar que no fim do século XX, os dois países com as maiores populações muçulmanas eram a Indonésia e a China – ambos muito além do âmbito das conquistas militares islâmicas.
     Duas figuras históricas ilustram o alcance e o poder unificador do islamismo. A primeira é Ibn Battuta, um muçulmano de Tânger, muitas vezes chamado de o Marco Polo árabe. Em 1325, aos 21 anos, ele partiu para uma peregrinação (hajj) a Meca, aonde chegou no ano seguinte, tendo visitado Cairo, Damasco e Medina ao longo do caminho. Em vez de voltar diretamente para casa, ele decidiu viajar um pouco mais e embarcou no que viria a ser uma viagem de 29 anos e 117 mil quilômetros por grande parte do mundo conhecido. Visitou o Iraque, a Pérsia, a costa leste da África, a Turquia e a Ásia Central, e viajou através do oceano Índico em direção ao sul da China. Depois retornou ao norte da África, a partir de onde visitou o sul da Espanha e o reino de Mali, na África Central. Foi uma viagem assombrosa por quaisquer padrões, mas é particularmente notável que durante a maior parte dela Ibn Battuta tenha permanecido dentro do mundo muçulmano, ou do que os muçulmanos chamam de dar al-Islam (literalmente, “a residência do islamismo”). Ele serviu como juiz em Delhi e nas Maldivas, foi enviado como embaixador à China por um sultão indiano e, quando visitou Sumatra, em 1346, constatou que os juristas eram membros de sua própria escola Hanafi de pensamento jurídico.
     A segunda figura é Zheng He, almirante da extraordinária armada de navios-tesouro da China. Entre 1405 e 1433, ele comandou sete viagens oficiais, cada uma com dois anos de duração, que avançaram muito pelo oceano Índico. Sua frota de 300 navios tripulados por 27 mil marinheiros era a maior já reunida, e não seria superada em tamanho por mais 500 anos. Zheng He tinha ordens para apresentar a riqueza, o poder e a sofisticação da China a outras nações, estabelecer ligações diplomáticas e estimular o comércio. Assim, passando pelas ilhas das especiarias no sudeste da Ásia, ele navegou até a costa da Índia, subiu o golfo Pérsico e avançou a oeste até a costa leste da África. Ao longo do caminho, seus navios recolheram curiosidades, comerciaram com soberanos locais e reuniram embaixadores para levá-los à China. Zheng He era o embaixador chinês no mundo exterior; talvez surpreendentemente, era também um muçulmano. Mas isso o tornava idealmente qualificado para percorrer os portos, mercados e palácios dos reinos em torno do oceano Índico. No fim das contas, porém, seus esforços deram em nada, já que, embora ele tenha estabelecido a China como uma presença poderosa no oceano Índico, rivalidades internas dentro da corte chinesa levaram ao desmantelamento da Marinha, em parte para atender a queixas políticas, mas também para que fosse possível desviar recursos para a proteção do Império contra inimigos vindos do norte.
     Se as rotas de comércio de especiarias do mundo eram as redes de comunicação da época, conectando terras distantes, então o islamismo era o protocolo comum com que elas operavam. Mas, embora o comércio florescesse no mundo muçulmano, a ascensão do islamismo teve o efeito de isolar a Europa do sistema comercial do oceano Índico. Depois que Alexandria foi tomada por tropas muçulmanas em 641 d.C., as especiarias não puderam mais chegar diretamente ao Mediterrâneo. Os europeus foram relegados a uma região comercialmente estagnada por uma “cortina muçulmana” que bloqueava seu acesso ao Oriente.

Contornar a cortina muçulmana

Em 1345, Jani Beg, o chefe da Horda Dourada, fez um cerco ao porto de Caffa, na península da Crimeia. A Horda Dourada (o fragmento mais a oeste do então prostrado Império Mongol) havia vendido a cidade a comerciantes genoveses em 1226, e ela era o principal empório comercial destes no mar Negro. Mas Jani Beg desaprovava o uso do porto para o comércio de escravos, e tentou retomá-lo. Exatamente quando parecia prestes a ocupar o porto, seu exército foi atingido por uma terrível peste. Segundo um relato da época feito por Gabriele de Mussi, um notário italiano, as tropas de Jani Beg carregaram as catapultas com os cadáveres atingidos pela peste e os lançaram na cidade. Os genoveses jogaram os corpos para fora das muralhas de Caffa e no mar, mas a peste se apoderara da cidade. “Logo, como se poderia supor, o ar ficou contaminado e os poços d’água envenenados, e dessa maneira a doença se espalhou tão rapidamente que poucos habitantes tiveram forças suficientes para escapar dela”, registrou De Mussi. Mas alguns dos genoveses conseguiram fugir – e quando avançaram para o Ocidente, levaram consigo a peste em seus navios.
     A peste, hoje conhecida como Peste Negra, espalhou-se por toda a bacia do Mediterrâneo durante 1347, chegando à França e à Inglaterra em 1348 e à Escandinávia em 1349, matando entre um terço e metade da população da Europa até 1353, segundo algumas estimativas. “Uma peste atacou quase todas as terras costeiras do mundo e matou a maioria das pessoas”, registrou um cronista bizantino. A especificação biológica exata dessa peste ainda é acaloradamente debatida, mas geralmente se pensa tratar-se da peste bubônica, transmitida por pulgas de ratos-pretos. Ela era conhecida na época como a “pestilência”, e a expressão “Peste Negra”, cunhada no século XVI, tornou-se popular no século XIX. Nenhum tratamento podia salvar as vítimas depois que a peste se instalava. Há relatos de pessoas sendo trancafiadas em suas casas para impedir que a peste se alastrasse, e de pessoas abandonando suas famílias para evitar o contágio. Os médicos propunham toda sorte de medidas estranhas que iriam, segundo eles, minimizar o risco de infecção, aconselhando as pessoas gordas a não tomarem sol, por exemplo, e emitindo uma série desconcertante de conselhos dietéticos. Médicos em Paris recomendaram às pessoas evitar hortaliças, em conserva ou frescas; evitar frutas, a menos que consumidas com vinho; e abster-se de comer aves, patos e leitão. “Azeite de oliva”, advertiam, “é fatal.”
     Além das longas listas de produtos a evitar, havia alguns exemplos de alimentos que supostamente ofereciam proteção contra a peste – entre eles se destacavam as especiarias, com suas associações exóticas, quase mágicas, seus aromas pungentes e uma longa história de usos medicinais. Os médicos franceses recomendavam que se bebesse caldo de carne temperado com pimenta, gengibre e cravos. Como se pensava que a peste era transmitida pelo ar contaminado, as pessoas eram aconselhadas a queimar incenso e borrifar água de rosas em suas casas, e a levar consigo várias misturas de pimenta, pétalas de rosa e outras substâncias aromáticas quando saíssem. O escritor italiano Giovanni Boccaccio descreveu pessoas que “saíam de casa carregando nas mãos flores ou ervas aromáticas ou diversos tipos de especiarias, que levavam frequentemente a seus narizes”. Isso ajudava a esconder o cheiro dos mortos e moribundos, bem como, supostamente, a purificar o ar. João de Escenden, professor adjunto da Universidade de Oxford, estava convencido de que uma combinação de canela em pó, babosa, mirra, açafrão, macis e cravos lhe permitira sobreviver mesmo quando as pessoas à sua volta sucumbiam à peste.
     Como meio de prevenir o contágio, porém, as especiarias eram completamente inúteis. Na verdade, eram piores que inúteis; para começar, foram em parte responsáveis pela chegada e a difusão da peste. O porto genovês de Caffa era valioso porque se situava no extremo oeste da Rota da Seda para a China, e porque especiarias e outras mercadorias provenientes da Índia, enviadas golfo acima e depois transportadas por terra para Caffa e outros portos do mar Negro davam a volta por trás da cortina muçulmana. Assim, Caffa permitia aos genoveses burlar o monopólio muçulmano e obter mercadorias orientais para vender a fregueses europeus. (Nessa altura, seus arquirrivais, os venezianos, haviam se aliado aos sultões muçulmanos que controlavam o comércio no mar Vermelho e agiam como seus distribuidores europeus oficiais.) A peste, que parece ter se originado na Ásia Central, chegou a Caffa pelas rotas comerciais terrestres antes de se espalhar pela Europa através dos navios de especiarias genoveses.
     Quando a relação entre o comércio de especiarias e a peste foi percebida, já era tarde demais. “Em janeiro de 1348, impelidas por um violento vento leste, três galés entraram no porto de Gênova, horrivelmente infectadas e carregadas com variedades de especiarias e outras mercadorias valiosas”, escreveu um cronista flamengo. “Quando os habitantes de Gênova ficaram sabendo disso, e viram quão repentina e irremediavelmente elas infectavam outras pessoas, as embarcações foram expulsas daquele porto por flechas incendiárias e diversas máquinas de guerra; pois nenhum homem ousava tocá-las; não havia tampouco nenhum homem capaz de comerciar com elas, pois se o fizesse estaria certo de morrer imediatamente. Assim, elas foram escorraçadas de porto em porto.” Mais tarde naquele ano, um escritor francês em Avignon escreveu, acerca dos navios genoveses, que “as pessoas não comem, sequer tocam, especiarias que não ficaram armazenadas por um ano, pois temem que possam ter chegado recentemente nos supracitados navios ... Foi observado muitas vezes que aqueles que comeram as novas especiarias ... caíram subitamente doentes.”
     A importância das várias rotas marítimas e terrestres entre a Europa e o Oriente variava de acordo com a situação geopolítica na Ásia Central. A unificação política sob o Império Mongol, por exemplo, que abarcou grande parte do norte da massa eurasiana – da Hungria, no Ocidente, até a Coreia, no Oriente –, tornou o comércio por terra muito mais seguro, e os volumes cresceram de maneira correspondente. No século XIII, dizia-se que uma donzela podia atravessar o Império Mongol caminhando com um pote de ouro na cabeça sem ser molestada. O estabelecimento de pontos de apoio cristãos no Levante, durante as Cruzadas, proporcionou outros escoadouros para mercadorias trazidas por terra pela Rota da Seda ou pelo golfo. Inversamente, a desintegração do Império Mongol, no início do século XIV, significou que a balança voltou a pender em favor da rota do mar Vermelho, agora controlada pela dinastia muçulmana dos mamelucos.
     Durante o século XV, houve uma crescente inquietação na Europa com relação à extensão do controle muçulmano sobre o comércio com o Oriente. Em 1400, cerca de 80% desse comércio estava em mãos muçulmanas. Seus distribuidores europeus, os venezianos, estavam no auge do poder. Veneza negociava cerca de 500 toneladas de especiarias por ano, das quais 60% eram de pimenta. O carregamento de um único galeão veneziano tinha o valor equivalente a um resgate real. Vários papas tentaram proibir o comércio com o mundo muçulmano, mas os venezianos ou os ignoravam ou ganhavam dispensas especiais para continuar fazendo negócios, como de costume. Nesse meio-tempo, Gênova estava em declínio. Suas possessões no mar Negro estavam sob pressão dos turcos otomanos, um poder muçulmano ascendente que avançava sobre o Império Bizantino, que por sua vez encolhia rapidamente. Entre 1410 e 1414 houve uma súbita alta dos preços das especiarias – na Inglaterra, o preço da pimenta subiu oito vezes –, o que lembrou penosamente a todos a grande dependência em que estavam de seus fornecedores. (As causas dessa elevação foram provavelmente as atividades de Zheng He, cuja chegada inesperada à costa oeste na Índia rompeu os padrões usuais de oferta e demanda, e fez os preços subirem.) Tudo isso alimentou um crescente interesse pela possibilidade de encontrar algum novo caminho que contornasse a cortina muçulmana e estabelecesse vínculos comerciais diretos com o Oriente.
     A queda de Constantinopla, em 1453, é por vezes retratada como o evento que finalmente desencadeou a idade europeia das explorações, mas ela foi apenas o mais proeminente de uma série de eventos que extinguiram por completo a rota terrestre para o Oriente. Em 1451, os turcos otomanos já haviam conquistado a Grécia e a maior parte da Turquia ocidental, e consideravam Constantinopla, agora o último reduto significativo do antigo Império Bizantino, um “osso na garganta de Alá”. Depois da queda, eles impuseram pesados pedágios a navios que entravam e saíam do mar Negro, e em seguida trataram de tomar os portos genoveses em torno de sua costa, inclusive Caffa, que foi tomada em 1475. Enquanto isso, os rivais muçulmanos dos otomanos, os mamelucos, aproveitaram a oportunidade para elevar as tarifas sobre as especiarias que passavam por Alexandria, provocando uma alta constante dos preços na Europa durante a segunda metade do século XV. Em suma, não foi simplesmente a queda de uma cidade, mas o crescimento gradual da insatisfação com o monopólio muçulmano sobre as especiarias que incitou exploradores europeus a buscar rotas marítimas para o Oriente inteiramente novas.

6. Sementes de impérios

“Depois do ano 1500 não se encontrava em Calicute nenhuma pimenta que não estivesse tingida de sangue.”
VOLTAIRE, 1756

“Acredito ter encontrado ruibarbo e canela”

Em junho de 1474, Paolo Toscanelli, um eminente astrônomo e cosmógrafo italiano, escreveu uma carta para a corte portuguesa em Lisboa esboçando sua extraordinária teoria: a rota mais rápida da Europa para a Índia, “a terra das especiarias”, era navegar para o oeste, em vez de tentar navegar para o sul e para o leste em torno da parte inferior da África. “E não se espantem quando digo que as especiarias crescem em terras a oeste, ainda que costumemos dizer a leste”, escreveu ele. Toscanelli descreveu as riquezas do Oriente, fazendo grandes empréstimos da narrativa de Marco Polo, e incluiu prestimosamente uma carta náutica que mostrava as ilhas de Cipangu e Antília, localizadas no caminho para Cathay (China), que ele estimava estar 10 mil quilômetros a oeste da Europa. “Esse país é mais rico que qualquer outro já descoberto, e não somente poderia fornecer grande lucro e muitas coisas valiosas, como também possui ouro, prata, pedras preciosas e toda sorte de especiarias, em grandes quantidades”, declarou ele. A corte portuguesa acabou por ignorar o conselho de Toscanelli, mas Cristóvão Colombo, um marinheiro genovês que vivia em Lisboa na época, ouviu falar da carta e obteve uma cópia dela, possivelmente do próprio Toscanelli.
     Como Toscanelli, Colombo estava convencido de que navegar para oeste era a rota mais rápida para as Índias, e passou muitos anos reunindo documentos que sustentavam sua argumentação, efetuando cálculos e traçando mapas. A ideia tinha sólidos fundamentos intelectuais – autoridades antigas, Ptolomeu e Estrabão, haviam aludido a ela; Colombo inspirava-se também em Pierre d’Ailly, um erudito francês do século XIV cuja “Descrição do mundo” declarava que a viagem da Espanha para a Índia, navegando para o oeste, levaria “alguns dias”. Mas o respaldo de Toscanelli, um dos cosmógrafos mais respeitados de seu tempo, deu peso adicional à sua teoria.
     Baseando-se nos cálculos de Ptolomeu, que havia superestimado o tamanho da Eurásia e subestimado a circunferência da Terra, Colombo escolheu a dedo estimativas de várias autoridades para se convencer de que a Terra era ainda menor e a Eurásia ainda maior, encolhendo assim o oceano que estava de permeio. Usou uma estimativa de Al-Farghani, um geógrafo muçulmano, para a circunferência da Terra; deixou, porém, de levar em conta a diferença entre milhas muçulmanas e romanas, e acabou com um número que era, convenientemente, 25% menor do que devia. Depois, usou a estimativa excepcionalmente grande do tamanho da Eurásia de Marino de Tiro, e acrescentou a isso descrições que Marco Polo fizera de Cipangu (Japão), uma grande ilha que estaria supostamente a centenas de quilômetros da costa leste da China, o que reduzia ainda mais a amplitude do oceano que teria de cruzar. Desse modo Colombo calculou a distância entre as ilhas Canárias (ao largo da costa oeste da África) e o Japão como sendo ligeiramente superior a 3.200 quilômetros – menos de um quarto da verdadeira distância.
     Convencer um patrocinador a financiar a expedição que propunha, contudo, provou-se difícil. Isso não ocorreu, como por vezes se sugere, porque os grupos de especialistas nomeados nos anos 1480 pelas cortes portuguesa e espanhola para avaliar a proposta de Colombo discordaram de sua afirmação de que a Terra era esférica; isso era geralmente aceito. O problema foi que seus cálculos pareciam duvidosos, em particular porque se baseavam em evidências fornecidas por Marco Polo, cujo livro descrevendo as viagens no Oriente era considerado em geral, na época, uma obra de ficção. Portugal estava, de todo modo, desenvolvendo seu próprio programa de exploração da costa oeste da África, e não estava disposto a abandoná-lo (razão por que a carta de Toscanelli também caiu em ouvidos moucos). Assim, ambos os grupos de especialistas disseram não. A sorte de Colombo mudou, porém, quando o rei Fernando e a rainha Isabel da Espanha, que acabavam de conquistar Granada, o último baluarte muçulmano na Espanha, decidiram afinal patrociná-lo. Colombo talvez os tenha levado a mudar de opinião ao sugerir que os lucros de sua expedição poderiam financiar uma campanha para reconquistar Jerusalém. Certamente ele apresentou sua viagem como uma aventura abertamente comercial, e os documentos que definiram as condições da expedição lhe asseguravam “um décimo de todo o ouro, prata, pérolas, gemas, especiarias e outras mercadorias produzidas ou obtidas por permuta e mineração dentro dos limites daqueles domínios”.
     Seus três navios rumaram para oeste a partir das ilhas Canárias em 6 de setembro de 1492, e encontraram terra, após uma viagem cada vez mais angustiante, no dia 12 de outubro. Colombo teve certeza de que havia riquezas ao alcance assim que avistaram terra. Seu diário de bordo menciona “ouro e especiarias” repetidamente e detalha tentativas de convencer os nativos a lhe dizer onde encontrá-los. “Eu estava atento e dei-me ao trabalho de averiguar se havia ouro”, escreveu em seu diário em 13 de outubro, após encontrar um grupo de nativos. Duas semanas depois de chegar, visitou várias das que supôs serem as 7.459 ilhas que Marco Polo afirmou se situarem ao longo da costa leste da China, e escreveu em seu diário: “Desejei partir hoje para a ilha de Cuba ... sendo minha crença que ela será rica em especiarias.” Colombo não conseguiu encontrar especiarias em Cuba, mas disseram-lhe ser possível encontrar canela e ouro mais a sudeste. Em meados de novembro, ele ainda sustentava em seu diário que “sem dúvida há nestas terras uma grande quantidade de ouro ... pedras, pérolas preciosas e infinitas especiarias”. Em dezembro, ancorado ao largo da ilha que chamou de Hispaniola, registrou que podia ver na costa “um campo de árvores de mil tipos, todas carregadas de frutas ... que se acredita serem especiarias e nozes-moscadas”.
     Como se comunicava com os nativos usando a linguagem dos sinais, Colombo podia interpretá-los praticamente como bem entendia. De maneira igualmente conveniente, havia várias explicações plausíveis para seu fracasso em encontrar qualquer especiaria. Talvez não fosse a estação própria; seus homens não conheciam as técnicas corretas de colheita e processamento; e, é claro, de qualquer maneira os europeus não sabiam que aparência tinham as especiarias na natureza. “Não ter conhecimento dos produtos causa-me o maior pesar do mundo, pois vejo mil tipos de árvores, cada uma com sua característica especial, bem como mil tipos de ervas com suas flores; no entanto não conheço nenhuma delas”, escreveu Colombo. Ao que parece, ele sofria também de falta de sorte: um membro da tripulação disse ter encontrado três lentiscos, mas lamentavelmente deixara a amostra cair; outro disse ter descoberto ruibarbo, mas não conseguira colhê-lo sem uma pá.
     Colombo partiu para a Espanha em 4 de janeiro de 1493, tendo reunido uma pequena quantidade de ouro através de negociações com nativos. Levou também amostras do que pensava serem especiarias. Depois de uma viagem difícil, chegou de volta à Espanha em março de 1493, e sua carta oficial a Fernando e Isabel relatando suas descobertas tornou-se um best-seller em toda a Europa, com 11 edições publicadas até o fim daquele ano. Ele descreveu ilhas exóticas com montanhas elevadas, aves estranhas e novos tipos de fruta. Sobre a ilha de Hispaniola, escreveu: “Há muitas especiarias e grandes minas de ouro e outros metais.” Explicou que a distribuição das riquezas dessas novas terras podia começar imediatamente: “Darei a Suas Majestades especiarias e algodão de imediato, tanto quanto ordenem que se envie, e tanto quanto ordenem que se envie de lentisco ... e babosa tanto quanto ordenem que se envie; e escravos tantos quanto ordenem que se enviem, e estes serão de povos idólatras. E acredito ter encontrado ruibarbo e canela.”
     A julgar pelo tom triunfante da carta, parecia que Colombo alcançara seu objetivo de encontrar uma nova rota para as riquezas do Oriente. Embora as ilhas que visitou não correspondessem às descrições da China e de Cipangu no relato de Marco Polo, ele tinha certeza de que o continente estava próximo. Que prova melhor haveria do que a presença de canela e ruibarbo, que sabidamente se originavam nas Índias? Mas a opinião na corte espanhola ficou dividida. Os gravetos que Colombo dizia serem canela não tinham o cheiro certo e pareciam ter se estragado durante a viagem de volta. As outras amostras de especiarias também não impressionavam, e ele só encontrara uma pequena quantidade de ouro. Céticos concluíram que ele não havia encontrado nada mais do que algumas novas ilhas no Atlântico. Mas como Colombo afirmou que estava se aproximando da fonte do ouro, uma segunda expedição, muito maior, foi despachada.
     A segunda expedição só perpetuou a confusão relativa à existência de especiarias. Escrevendo de Hispaniola em 1494 para sua casa em Sevilha, Diego Álvarez Chanca, que serviu como médico de Colombo na viagem, explicou a situação: “Há algumas árvores que, ‘penso eu’, dão nozes-moscadas, mas não estão dando fruto no momento. Digo ‘penso eu’ porque o cheiro e o gosto da casca se assemelham aos de nozes-moscadas”, escreveu. “Vi uma raiz de gengibre, que um índio trazia amarrada em volta do pescoço. Há também babosa: não é do tipo que foi visto até agora em nosso país, mas não tenho dúvida de que tem valor medicinal. Há também lentisco muito bom.” Nenhuma dessas coisas estava realmente lá, mas os espanhóis queriam muito que estivessem. “Foi também encontrado um tipo de canela; é verdade que não é tão boa como a que conhecemos em casa. Não sabemos se por acaso isso se deve a falta de conhecimento sobre quando deve ser colhida, ou se por acaso a terra não produz melhor.”
     Colombo lançou-se ele mesmo à exploração, na esperança de mostrar que havia encontrado o continente asiático. Afirmou ter descoberto as pegadas de grifos e pensava ter detectado semelhanças entre os nomes locais dos lugares visitados e aqueles mencionados por Marco Polo. Em certa altura, conseguiu fazer todos os marinheiros de sua frota jurarem que Cuba era maior que qualquer ilha conhecida e que estavam muito próximos da China. Todo marinheiro que refutasse essas afirmações era ameaçado com uma pesada multa e a perda da língua. No entanto, as dúvidas cresciam à medida que Colombo voltava de cada uma de suas viagens com somente alguns pedaços de ouro e mais de suas especiarias duvidosas. Ele precisou recorrer a justificativas religiosas para suas atividades – os nativos poderiam ser convertidos ao cristianismo –, embora sugerisse também que poderiam dar bons escravos. Seus colonos tornavam-se cada vez mais rebeldes. Colombo foi acusado de má administração das colônias e de ter pintado um quadro enganoso de seu potencial. Ao cabo da terceira viagem, foi enviado de volta para a Espanha acorrentado e destituído do título de governador. Após uma quarta e última viagem, morreu em 1506, convencido até o fim de que tinha realmente chegado à Ásia.
     A ideia de encontrar especiarias nas Américas sobreviveu a Colombo. Em 1518, Bartolomé de las Casas, um missionário espanhol no Novo Mundo, afirmou que as novas colônias espanholas eram “muito boas” para gengibre, cravos e pimenta. O conquistador Hernán Cortés encontrou grande quantidade de ouro, pilhando-o dos astecas durante a conquista espanhola do México, mas até ele se sentiu mal com relação ao fracasso em obter alguma noz-moscada ou cravo. Insistiu, em cartas ao rei da Espanha, que acabaria encontrando o caminho para as ilhas das especiarias. Na década de 1540, outro conquistador, Gonzalo Pizarro, esquadrinhou a selva amazônica numa busca fatal pela lendária cidade de El Dorado e pelo “país de la canela”. Foi só no século XVII que a procura do Velho Mundo por especiarias nas Américas foi finalmente abandonada.
     Obviamente, as Américas ofereciam ao resto do mundo toda sorte de novos gêneros alimentícios, inclusive milho, batatas, abóbora, chocolate, tomate, abacaxis e novos condimentos, como baunilha e pimenta-da-jamaica. E, embora Colombo não tenha conseguido encontrar no Novo Mundo as especiarias que procurava, encontrou algo que era, sob alguns aspectos, ainda melhor. “Há abundância de aji”, escreveu ele em seu diário, “que é a pimenta deles, mais valiosa que pimenta-do-reino, e todas as pessoas não comem outra coisa, sendo ela muito saudável. Seria possível carregar 50 caravelas anualmente com ela.” Tratava-se do chili, e embora não fosse pimenta-do-reino, podia ser usado de maneira semelhante. Um observador italiano na corte espanhola observou que cinco grãos eram mais ardidos e tinham mais sabor que 20 grãos da pimenta comum de Malabar. Melhor ainda, como podia ser facilmente cultivado fora da região de origem, diferentemente da maioria das especiarias, o chili espalhou-se rapidamente pelo mundo e em poucas décadas já estava assimilado à culinária asiática.
     Apesar das suas virtudes culinárias, porém, o chili não era o que Colombo queria. A facilidade com que podia ser transplantado de uma região para outra significava que não tinha o valor financeiro das especiarias tradicionais, que se devia, em grande parte, às limitações geográficas de sua oferta e à necessidade de transporte por longas distâncias. No entanto, o mais importante para Colombo era encontrar as especiarias do Velho Mundo não por seu gosto ou valor, mas para provar ter realmente chegado à Ásia. Foi por isso que ele semeou uma confusão que dura até hoje, chamando os chilis de “pimentas” e as pessoas que encontrou nas Bahamas de “índios”, em ambos os casos dando-lhes os nomes daquilo que estava empenhado em encontrar. Isso porque encontrar a fonte das especiarias significava ter chegado às Índias, as terras exóticas e aromáticas descritas por Marco Polo e por outros cujas histórias enfeitiçaram os europeus por tantos séculos.

“Cristãos e especiarias”

As especiarias não eram um dos objetivos originais do programa português para explorar a costa oeste da África, iniciado nos anos 1420 pelo infante Henrique de Portugal (conhecido em inglês pelo equivalente de príncipe Henrique o Navegador, mais uma alcunha criada do século XIX). O objetivo era aprender mais sobre a geografia da costa e das ilhas próximas, estabelecer relações comerciais e talvez fazer contato com Preste João, o legendário soberano cristão de um reino que se supunha estar situado em algum lugar na África ou nas Índias, e que seria um valioso aliado contra os muçulmanos.
     À medida que desciam pela costa africana, cada um indo um pouco mais longe que o anterior, os navios de Henrique refutavam a antiga noção grega de que os extremos da Terra ficavam quentes demais para os humanos. Eles levavam de volta ouro, escravos e “grãos do paraíso”, uma especiaria inferior parecida com a pimenta-do-reino, vagamente conhecida na Europa porque era ocasionalmente comerciada através do Saara, chegando ao Mediterrâneo. Também procuraram algum braço do Nilo, na esperança de segui-lo contra a corrente para encontrar Preste João. Com o decorrer do século XV, porém, a necessidade europeia de encontrar uma rota alternativa para as Índias tornou-se cada vez mais urgente. Os navios portugueses avançaram mais ao sul e finalmente, em 1488, Bartolomeu Dias contornou o cabo do sul da África – por acidente, depois de ser arrastado pelo Atlântico por uma tempestade – e em seguida rumou para leste. Ele voltou a Lisboa com a notícia de que, ao contrário do que pensavam alguns dos antigos, o oceano Índico não era todo rodeado por terra e podia ser alcançado a partir do Atlântico – e o mesmo valia, por extensão, para a Índia.
     Por que então Portugal levou nove anos para enviar uma expedição à Índia? A organização de uma frota teria levado tempo, mas as descobertas de Colombo no Atlântico podem também ter sido responsáveis pelo atraso. Se ele tivesse realmente encontrado uma rota para o leste navegando em direção ao oeste, contornar toda a África seria desnecessário. Mas quando Colombo voltou de sua segunda viagem, em 1496, com muito pouco para mostrar, os portugueses recobraram o entusiasmo por uma expedição à Índia contornando a extremidade sul da África. Os navios zarparam no ano seguinte. Como um cronista da época relatou sucintamente: “No ano 1497, o rei Manuel, o primeiro com esse nome em Portugal, enviou quatro navios que partiram numa busca por especiarias, capitaneados por Vasco da Gama.”
     A viagem foi marcada por conflitos religiosos e rivalidade. Tendo contornado o cabo e navegado pela costa leste da África acima, Vasco da Gama e seus homens foram confundidos com muçulmanos pelo sultão de Mocobiquy (Moçambique). Ele prometeu fornecer-lhes um piloto que poderia guiá-los até a Índia, mas depois percebeu seu erro. Seguiu-se uma luta e os navios de Vasco da Gama bombardearam a cidade, matando pelo menos duas pessoas. Houve outras querelas com muçulmanos locais, enquanto os portugueses tentavam, em vão, conseguir um piloto. Em Malindi, mais acima na costa africana, Vasco da Gama confundiu os hindus ali residentes com cristãos de uma seita desconhecida. Depois de conseguir um piloto perito, os navios portugueses avançaram através do oceano Índico até a costa de Malabar, na Índia, onde ancoraram perto de Calicute em 20 de maio de 1498. Seguindo o costume, Vasco da Gama enviou para a costa um degredado, em geral um criminoso ou proscrito considerado sacrificável, para fazer contato com os nativos. Não conseguindo entendê-lo, os indianos o levaram à casa de alguns mercadores muçulmanos vindos da Tunísia que ali residiam. “Que diabos o trouxeram aqui?”, perguntaram eles ao homem. A resposta foi: “Viemos à procura de cristãos e especiarias.”
     Embora as últimas fossem evidentemente abundantes em Calicute, os primeiros não o eram. Mas Vasco da Gama e seus homens pensavam de outro modo. Supunham que os hindus nativos eram cristãos, prostravam-se de joelhos nos templos hindus, confundiam representações de deusas hindus com a Virgem Maria e imagens de deuses hindus com santos cristãos. O rei, ou zamorin, de Calicute foi também tomado por cristão, portanto um aliado natural contra os comerciantes muçulmanos residentes. Contudo, o rei ficou inteiramente indiferente às quinquilharias que os portugueses ofereceram (chapéus vermelhos e recipientes de cobre, itens comuns de permuta na costa oeste da África). Talvez ele tivesse uma lembrança remota da chegada a Calicute dos galeões de ouro de Zheng He, apenas algumas décadas antes, que haviam oferecido sedas suntuosas em troca de especiarias. Esperava-se de estrangeiros misteriosos mais que as oferendas insignificantes de Vasco da Gama. Este, atribuindo o desapontamento do zamorin à influência maligna dos muçulmanos, afirmou que seus navios eram apenas a vanguarda de uma frota-tesouro, que evidentemente nunca se materializou. Assim, ele rumou para casa só com pequenas quantidades de pimenta-do-reino, canela, cravo e gengibre, chegando a Lisboa em setembro de 1499. Somente dois de seus navios e menos da metade de seus homens haviam sobrevivido à viagem – mas sua expedição mostrara ser possível evitar a cortina muçulmana e obter especiarias diretamente da Índia.
     O rei Manuel ficou encantado, e logo estava se intitulando “Senhor da Guiné e da Conquista, da Navegação e do Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”. Embora isso fosse evidentemente um enorme exagero, não deixava dúvida acerca de sua intenção: arrancar dos muçulmanos o controle sobre o comércio de especiarias. Manuel explicou isso em detalhes numa carta a Fernando e Isabel da Espanha, na qual se vangloriava e declarava que seus exploradores “realmente chegaram e descobriram a Índia e outros reinos vizinhos dela ... entraram e navegaram seu mar, encontrando grandes cidades ... e enormes populações em meio às quais é levado a cabo todo o comércio de especiarias e pedras preciosas”. Continuando, ele expressou a esperança de que “com a ajuda de Deus, o grande comércio que agora enriquece os mouros destas partes ... deverá, em consequência de nossos próprios preceitos, ser desviado para os nativos e navios de nosso próprio reino, de modo que doravante toda a cristandade nesta parte do mundo será suprida dessas especiarias”. Manuel queria, em suma, estabelecer um monopólio português sobre essas mercadorias, pretensamente por razões religiosas – embora obviamente fosse obter benefícios comerciais também.
     Como podia no entanto o pequenino Portugal esperar sobrepujar os vários navios muçulmanos do oceano Índico, a milhares de quilômetros de distância? Os homens de Vasco da Gama haviam contado “cerca de 500 navios mouriscos chegando em busca de especiarias” durante os três meses que passaram em Calicute. Mas tinham notado também algo muito interessante sobre esses navios: estavam desarmados. Essa era uma prática corrente no oceano Índico, onde não havia nenhum poder político ou militar dominante; mesmo os muçulmanos estavam divididos em várias comunidade distintas. De fato, o que unia a região era o comércio, baseado em torno de um punhado de portos principais e algumas dúzias de outros menores. Em cada porto, comerciantes de diferentes comunidades podiam encontrar depósitos para armazenar suas mercadorias, serviços bancários, acesso a mercados locais e, com frequência, um bairro da cidade onde seus pares moravam e suas próprias leis vigoravam. Os portos competiam para oferecer as mais baixas tarifas e atrair o maior volume de comércio. Havia um forte senso de reciprocidade: se a polícia de um porto particular maltratava comerciantes estrangeiros, os próprios comerciantes locais tinham grande propensão a se queixar, uma vez que tal comportamento podia levar a retaliação em outros portos e solapar o comércio, o que teria sido ruim para todos. Ocasionalmente, governantes locais podiam tentar controlar o comércio numa área específica usando a força, mas isso só tinha por efeito desviar os negócios para outro lugar. Assim, o comércio desarmado era a norma.
     Portugal poderia ter aderido a esse sistema, pagando às autoridades asiáticas pelo uso das instalações dos portos e saldando tarifas da maneira usual. Mas os portugueses estavam acostumados com a maneira como as coisas funcionavam no Mediterrâneo, onde o uso da força para proteger rotas marítimas, a marinha mercante e colônias comerciais prevalecia desde os tempos greco-romanos. Além disso, Portugal não esperava apenas participar do comércio no oceano Índico: queria dominá-lo, expulsando os muçulmanos. Tudo isso logo ficou claro durante a segunda viagem dos portugueses à Índia, com uma frota de 13 navios sob o comando de Pedro Álvares Cabral, que partiu em março de 1500, menos de seis meses depois do retorno de Vasco da Gama. Quando avançaram pelo Atlântico rumo ao sul e ao oeste, os navios encontraram inesperadamente o até então desconhecido continente sul-americano, e reivindicaram o Brasil para Portugal – mais uma consequência imprevista da busca de especiarias. Um navio voltou para Lisboa com a notícia, enquanto os demais prosseguiram para a costa africana, chegando a Calicute em setembro. As hostilidades começaram quase imediatamente: os homens de Cabral capturaram alguns navios muçulmanos e, em resposta, os muçulmanos prenderam e mataram cerca de 40 comerciantes portugueses na cidade. Cabral reagiu apoderando-se de mais navios muçulmanos e ateando-lhes fogo com as tripulações ainda a bordo. Em seguida, bombardeou Calicute durante dois dias, aterrorizando os habitantes, antes de rumar para os portos de Cochin (a atual Kochi) e Cannanore (a moderna Kannur), onde os governantes locais, preocupados em evitar uma sorte semelhante, permitiram aos portugueses iniciar postos comerciais em termos generosos.
     Os navios de Cabral voltaram então para Portugal carregados de especiarias. Sua chegada, em julho de 1501, foi saudada com júbilo em Lisboa e consternação em Veneza. “Essa foi considerada uma notícia muito ruim para Veneza”, registrou um cronista. “Os comerciantes venezianos estão verdadeiramente em maus lençóis.” Afinal, além de trazer o primeiro grande carregamento de especiarias para a Europa contornando a cortina muçulmana, os portugueses também pareciam ter eliminado o fornecimento do mar Vermelho. Em 1502, chegando aos portos mamelucos de Beirute e Alexandria, navios venezianos constataram que havia muito pouca pimenta-do-reino disponível, o que elevou os preços às alturas e inspirou alguns observadores a prever a ruína de Veneza. O número de galeões em sua frota mercante foi reduzido de 13 para três, e, em vez de mandá-los a Alexandria duas vezes por ano, como costumava fazer, Veneza começou a enviar a frota ano sim, ano não.
     A beligerância dos portugueses alcançou novos níveis durante a terceira viagem para a Índia, comandada por Vasco da Gama. Seus navios saquearam portos na costa leste da África, exigindo butim e tributo. Ao chegar à Índia, queimaram e bombardearam arbitrariamente diversas cidades na costa, para forçar portos estratégicos a comprar dele um “cartaz”. Tratava-se de uma permissão que garantia proteção para o porto e seus navios, e que só era emitida mediante o pagamento de uma taxa e a promessa de não comerciar com muçulmanos – em outras palavras, extorsão mediante venda de proteção. Vasco da Gama e seus homens também afundaram e pilharam embarcações muçulmanas e locais. Em certa ocasião, usaram prisioneiros para a prática de besta. Mãos, narizes e orelhas de outros prisioneiros foram cortados e enviados para a terra num bote; os mutilados foram depois amarrados e queimados até a morte num de seus próprios navios. Por fim, Vasco da Gama negociou um acordo com fornecedores de pimenta-do-reino em Cochin, carregou seus navios com especiarias e rumou para casa; no caminho, afundou uma frota local que havia sido enviada para exigir vingança e bombardeou Calicute mais uma vez, por medida de precaução.
     Esse era o tom dos esforços portugueses para controlar o comércio no oceano Índico: qualquer navio ou porto sem “cartaz” era considerado um alvo de hostilidades, os governantes locais eram intimidados e forçados a negociar em termos generosos com os portugueses e a violência era usada de maneira arbitrária e imoderada. Outras expedições foram enviadas pelo rei Manuel com ordens de estabelecer bases em locais-chave e ameaçar navios muçulmanos navegando entre a Índia e o mar Vermelho, para que “eles não possam transportar nenhuma especiaria para o território do sultão [mameluco] e todos na Índia percam a ilusão de poder negociar com qualquer um senão nós”. Em 1510, Portugal tomou Goa, na costa oeste da Índia, fazendo dela sua maior base no oceano Índico, e no ano seguinte tomou Málaca, o principal ponto de distribuição de noz-moscada e cravo das misteriosas ilhas das especiarias, as Molucas, situadas mais a leste. Pouco depois, uma expedição portuguesa finalmente chegou a essas ilhas, procuradas durante tanto tempo, e relações comerciais informais foram iniciadas. Noz-moscada e macis seriam encontrados nas ilhas Banda, perto dali.
     Os portugueses haviam encontrado as fontes exatas do comércio de especiarias, mas o plano de tomar dos muçulmanos o controle do fornecimento para a Europa acabou fracassando. O oceano Índico era simplesmente grande demais. No máximo, Portugal chegou a controlar cerca de 10% do comércio de pimenta-do-reino de Malabar, e talvez 75% do fluxo de especiarias para a Europa, mas as tentativas de bloquear o transporte muçulmano nunca foram mais do que parcialmente eficazes. Em 1560, o fluxo de especiarias levadas por comerciantes muçulmanos a Alexandria havia retornado aos níveis anteriores. Mas, ainda que tenha fracassado nos esforços para estabelecer um monopólio, Portugal teve êxito em definir um novo modelo para o comércio europeu no Oriente, baseado em monopólios e bloqueios impostos por navios armados a partir de uma rede de postos comerciais. Esse modelo foi rapidamente adotado por seus rivais europeus. Muito apropriadamente, as rivalidades entre essas potências coloniais emergentes centraram-se nas próprias ilhas Molucas.

Sementes de impérios

As especiarias ajudaram a atrair Colombo para o oeste, onde não seriam encontradas, e Vasco da Gama para o leste, onde foram achadas em abundância. E para coroar as façanhas de ambos na criação de novas rotas marítimas, elas também inspiraram a primeira circunavegação da Terra. Em 1494, Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Tordesilhas, que previa uma maneira simples de dividir as novas terras alcançadas por seus exploradores. Eles traçaram uma linha que passava pelo meio do oceano Atlântico, a meio caminho entre as ilhas de Cabo Verde, ao largo da costa africana (que eram reivindicadas por Portugal), e Hispaniola (que Colombo acabava de reclamar para a Espanha). Combinou-se que qualquer nova terra a oeste da linha pertenceria à Espanha, e aquelas a leste pertenceriam a Portugal; a opinião dos habitantes locais foi considerada irrelevante. Posteriormente percebeu-se que parte da América do Sul, desconhecida na época da assinatura do tratado, situava-se a oeste da linha, mas, como o acordo declarava expressamente que ela pertencia a Portugal, a região se tornou portuguesa. Tudo parecia muito bem acertado até que os portugueses chegaram às Molucas, do outro lado do mundo. De que lado da linha estavam? O tratado de 1494 não especificara uma linha divisória no Pacífico, mas a maneira lógica de traçar uma era estender o meridiano atlântico em torno do globo – caso em que, suspeitava a Espanha, as ilhas das especiarias poderiam cair no lado que ela considerava sua propriedade. Uma expedição espanhola foi devidamente despachada para definir a localização precisa das ilhas das especiarias e reivindicá-las para a coroa espanhola.
     Muito estranhamente, a expedição foi chefiada por um navegador português, Fernão de Magalhães, que caíra em desgraça na corte portuguesa, renunciara à sua nacionalidade e oferecera seus serviços à Espanha. Os navios rumaram para o oeste através do Atlântico em 1519, e foram os primeiros a atravessar do Atlântico para o Pacífico pela passagem hoje conhecida como estreito de Magalhães, na extremidade sul da América do Sul. Fernão de Magalhães foi morto nas Filipinas em 1521, quando interveio numa contenda entre dois chefes locais, mas a expedição continuou e chegou às Molucas.
     Depois de ser carregado com cravos, um dos navios de Magalhães, o Victoria, capitaneado por Juan Sebastian Elcano, continuou rumo a oeste, chegando de volta a Sevilha em 1522. As 26 toneladas de cravos a bordo cobriram todo o custo da expedição, e Elcano foi recompensado com um brasão ornamentado com paus de canela, nozes-moscadas e cravos. A viagem provara definitivamente que o mundo era redondo e que os oceanos eram interligados. Um membro da tripulação, um abastado italiano chamado Antonio Pigafetta, manteve um diário detalhado, e observou algo extraordinário quando o navio parou para se abastecer nas ilhas de Cabo Verde, no caminho de volta para a Espanha: era o dia errado, “pois havíamos feito nossa viagem sempre para o oeste, e tínhamos voltado ao mesmo lugar de partida do sol, razão por que a longa viagem havia proporcionado um ganho de 24 horas, como se vê claramente”.
     A circunavegação, porém, não resolveu a disputa pela propriedade das Molucas. Isso seria finalmente decidido por outro tratado, em 1529, quando a Espanha abriu mão de sua reivindicação geograficamente duvidosa em troca de um pagamento de 350 mil ducados de ouro por Portugal. Ao fim e ao cabo, a discussão sobre quem tinha direito às Molucas tornou-se irrelevante graças à união das coroas de Espanha e Portugal em 1580.
     A essa altura, contudo, os ingleses e holandeses tinham entrado em cena. O explorador inglês Francis Drake passou pelas Molucas em 1579, e observou que elas produziam uma “abundância de cravos, de que nos abastecemos em grande monta, tão grande quanto nosso desejo de que seu preço fosse muito baixo”. A viagem de Drake inspirou várias tentativas subsequentes de outros marinheiros ingleses, todas terminadas em fracasso. Os holandeses tiveram mais sucesso. Durante algum tempo, mercadores holandeses tinham sido os distribuidores de especiarias portuguesas no norte da Europa, mas, como perderam esse privilégio após a união da Espanha com Portugal, passaram a tentar estabelecer seu próprio fornecimento. Informações reunidas por Jan Huyghen van Linschoten, um especialista holandês que trabalhara muitos anos para os portugueses na Índia, indicavam que uma excelente pimenta-do-reino local podia ser encontrada em Java. Como os portugueses não comerciavam ali, comprando pimenta na Índia, dificilmente poderiam se queixar se os holandeses manifestassem interesse pelo produto. Após uma expedição bem-sucedida a Java em 1595, comerciantes holandeses que se associaram através da Vereenigde Oost-Indische Compagnie (VOC), ou Companhia Holandesa das Índias Orientais, em 1602, começaram a fazer carregamentos regulares de especiarias da região, tirando partido da incapacidade de Portugal de controlar o abastecimento.
     Quando perceberam quão tênue o controle português realmente era, os astutos holandeses decidiram tomar o controle do comércio, e enviaram uma grande frota para as ilhas das especiarias em 1605. “As ilhas de Banda e as Molucas são nosso alvo principal”, explicaram os diretores da VOC para seu almirante na região. “Recomendamos fortemente que o senhor tente vincular essas ilhas à Companhia, se não por tratado, então pela força!” Os holandeses expulsaram os espanhóis e portugueses das Molucas, ordenaram a alguns navios ingleses recém-chegados que partissem e assumiram controle direto sobre o fornecimento de cravos. A VOC passou, então, a impor implacavelmente seu novo monopólio, decidida a triunfar onde os portugueses tinham fracassado. A produção de cravos foi concentrada nas ilhas centrais de Ambon e Ceram, para ser mais rigorosamente controlada; os antigos arvoredos de craveiros em outras ilhas foram extirpados, os apanhadores massacrados e suas aldeias incendiadas.
     Onde a produção de cravos foi permitida, o cultivo de outros produtos agrícolas foi proibido, para assegurar que os nativos ficassem dependentes dos holandeses para alimentação. Os holandeses vendiam comida a alto preço e compravam os cravos por uma baixa quantia. A produção declinou, levando os holandeses a ordenar o plantio de mais árvores. Quando estas cresceram, porém, a oferta superou a demanda e os agricultores receberam ordem de abatê-las novamente. Seguiu-se um ciclo de expansões e retrações, enquanto os holandeses lutavam para conciliar uma demanda variável com a oferta que dependia de árvores de crescimento lento e agricultores insatisfeitos. O cultivo de cravos fora do controle holandês era punido com pena de morte, e o comércio clandestino reprimido. O porto de Makassar, um centro comercial regional onde ingleses, portugueses e chineses iam comprar cravos contrabandeados, foi fechado.
     Houve um caso semelhante nas ilhas Banda, que ficavam ali perto e eram a fonte de noz-moscada e macis. De início os holandeses convenceram os habitantes a assinar um documento concordando em não vender suas especiarias para mais ninguém, mas eles continuaram a fazê-lo normalmente, provavelmente por desconhecer o teor do que haviam assinado. Vendiam, em especial, para os ingleses, que haviam estabelecido uma base na pequena ilha de Run, um pouco a oeste. Uma tentativa holandesa de construir um forte nas Bandas em 1609 provocou uma disputa com os nativos; um grupo chefiado por um almirante holandês que chegara para negociar foi dizimado pelos bandaneses, com o apoio dos ingleses. Os holandeses retaliaram apoderando-se das Bandas, construindo dois fortes e reivindicando outro monopólio sobre as especiarias. Aldeias foram incendiadas e os habitantes foram mortos, expulsos ou vendidos como escravos. Os chefes das aldeias foram torturados e depois decapitados pelos samurais mercenários da VOC, trazidos do Japão, onde os holandeses eram os únicos europeus com permissão para negociar. As ilhas foram então divididas em 68 lotes, abastecidos com escravos e arrendados a ex-empregados da VOC. As condições eram brutais – os trabalhadores nos lotes de noz-moscada eram executados de uma variedade de maneiras horripilantes pela mais insignificante transgressão –, mas agora o fluxo das especiarias mais valiosas estava em mãos holandesas.
     Os ingleses concordaram em se retirar das ilhas das especiarias em 1624, e passaram a se concentrar em oportunidades comerciais na China e na Índia, embora os holandeses lhes tivessem permitido conservar a soberania sobre Run, onde um pequeno contingente havia resistido durante muitos anos. Esse minúsculo pontinho de terra, com 3,2 quilômetros de comprimento e menos de 800 metros de largura, havia sido originalmente reivindicado pelos ingleses em 1603, exatamente quando os tronos inglês e escocês se uniram – tendo sido portanto a primeira possessão colonial britânica no mundo, o primeiro minúsculo passo em direção à formação do Império Britânico. Finalmente, em 1667, Run foi entregue aos holandeses sob os termos do Tratado de Breda, um dos muitos tratados de paz assinados durante as intermitentes guerras anglo-holandesas dos séculos XVII e XVIII. Como parte do acordo de 1667, a Grã-Bretanha recebeu uma pequena ilha na América do Norte chamada Manhattan.
     Os lucros do comércio de especiarias ajudaram a custear a “idade de ouro” da Holanda do século XVII, um período em que esse país ficou à frente do mundo no comércio, na ciência e na inovação financeira, e a abastada classe mercantil patrocinou artistas como Rembrandt e Vermeer. Em última análise, porém, o monopólio holandês provou-se menos valioso que o esperado. As guarnições e navios de guerra necessários para protegê-lo eram enormemente dispendiosos e não eram justificados pelos lucros, à medida que o preço das especiarias começou a cair na Europa, no fim do século XVII. Como essa queda de valor devia-se em parte a uma oferta mais abundante, os holandeses impuseram-lhe limitações artificiais: queimaram grandes quantidades de especiarias nas docas de Amsterdam e começaram a limitar os volumes expedidos da Ásia, num esforço para segurar os preços. Porém, com o comércio de têxteis tornando-se cada vez mais importante, as especiarias passaram a ser responsáveis por uma parcela menor dos lucros holandeses, caindo de 75% em 1620 para 23% em 1700.
     Os preços mais baixos obtidos na Europa também refletiam uma mudança mais profunda no comércio desses produtos. Dissipados os mitos sobre sua procedência sobrenatural, eles já não eram tão fascinantes; tornaram-se facilmente acessíveis, até banais. Pratos fortemente condimentados começaram a ser vistos como fora de moda, na melhor das hipóteses, ou decadentes, na pior, à medida que os gostos mudavam e novas culinárias, mais simples, entravam em moda na Europa. Ao mesmo tempo, novos símbolos exóticos de status, tais como tabaco, café e chá, eclipsaram as especiarias. Ao dissiparem o mistério sobre as origens destas, os negociantes, paradoxalmente, acabaram por desvalorizar o tesouro que tinham procurado com tanto afinco. Hoje, a maioria das pessoas passa pelas especiarias nos supermercados, dispostas nas prateleiras em pequenos frascos de vidro, sem lhes dar a menor atenção. De certo modo, é um triste fim para um comércio outrora poderoso, que remodelou o mundo.

Alimentos locais e globais

Sendo idealmente adequadas ao transporte por longas distâncias, as especiarias levaram à implantação das primeiras redes comerciais globais. As grandes distâncias que viajavam eram uma das razões por que as pessoas se dispunham a pagar tanto por elas – pelo menos algumas pessoas. Nem todos, no entanto, aprovavam que esses ingredientes frívolos, dispensáveis, fossem transportados por tão longe: já mencionamos os comentários negativos de Plínio o Velho sobre a pimenta no século I. Hoje, um argumento semelhante é proposto pelos adeptos da “comida local”, que defendem o consumo da comida produzida perto dos consumidores (num raio de 160 quilômetros, digamos), em vez daquela trazida de mais longe. Eles condenam o transporte de alimentos que, em alguns casos, viajam milhares de quilômetros da fazenda ao prato; alguns fundamentalistas da comida local tentam até evitar alimentos não locais por completo. Plínio achava que comprar comida importada era simplesmente um desperdício de dinheiro, mas os defensores da comida local de nossos dias (chamados em inglês de locavores) geralmente fundam seus argumentos na proteção do ambiente: o transporte de toda essa comida de um lado para o outro causa emissões de dióxido de carbono que contribuem para a mudança climática. Isso deu origem ao conceito de “milhas alimentares” – a ideia de que a distância pela qual a comida é transportada dá uma medida razoável do dano ambiental que causou, e de que deveríamos, portanto, comer alimentos locais para minimizar esse impacto.
     Parece bastante plausível, mas a realidade é bem mais complexa. Em primeiro lugar, produtos locais podem por vezes ter um impacto ambiental maior que aqueles produzidos em outros países, simplesmente porque alguns lugares são mais adequados que outros para a produção de determinados alimentos. Os tomates são normalmente cultivados em estufas aquecidas na Grã-Bretanha, por exemplo, resultando num maior volume de emissões de carbono do que tomates cultivados na Espanha, mesmo levando-se em conta as emissões produzidas pelo transporte dos tomates espanhóis.
     De maneira semelhante, um estudo realizado na Universidade Lincoln, na Nova Zelândia, descobriu que a carne de cordeiro produzida naquele país era responsável pela emissão de muito menos dióxido de carbono (563 quilos por tonelada métrica de carne) que a carne de cordeiro produzida na Grã-Bretanha (2.849 quilos por tonelada métrica de carne). Isso se deve, em grande parte, ao fato de haver mais espaço para pastos na Nova Zelândia, permitindo que os cordeiros comam capim, ao passo que na Grã-Bretanha eles recebem ração, cuja produção requer a queima de grande quantidade de carvão. Enviar carne de cordeiro da Nova Zelândia para a Grã-Bretanha envolve emissões adicionais de 125 quilos por tonelada métrica, de modo que a “pegada de carbono” da carne de cordeiro da Nova Zelândia é muito menor, mesmo quando o transporte é levado em conta. Talvez a maneira menos poluidora de organizar a produção de alimentos fosse alcançada se países ou regiões se concentrassem nos alimentos que podem produzir de maneira particularmente eficiente, dadas as condições locais, e trocassem os alimentos resultantes uns com os outros.
     Concentrar-se nas emissões de carbono relacionadas ao transporte dos alimentos pode ser também escolher o alvo errado. Um estudo americano constatou que o transporte é responsável por 11% da energia usada na cadeia alimentar, comparados com 26% para o processamento e 29% para o cozimento. No caso das batatas, as emissões associadas a seu cozimento ultrapassam de longe aquelas envolvidas no cultivo e no transporte. Você deixar ou não a panela tampada ao cozinhar batatas tem mais impacto sobre as emissões totais de dióxido de carbono que o fato de elas serem cultivadas em lugares próximos ou muito distantes. Outro complicador é a ampla variação da eficiência dos diferentes meios de transporte. Um navio grande pode transportar uma tonelada de comida por 1.200 quilômetros com um galão de combustível, enquanto com a mesma quantidade um trem faz cerca de 320 quilômetros, um caminhão faz 96 e um carro, 32. Portanto, o percurso de ida e volta de carro entre sua casa e a loja ou o mercado pode produzir mais emissões, para uma certa quantidade de comida, que todo o resto da viagem.
     É claro que nem todos os argumentos apresentados em favor do alimento local são ambientais: há argumentos sociais também. Essa prática pode promover a coesão social, apoiar empresas locais e incentivar pessoas a se interessar mais pela procedência dos alimentos e o modo como são cultivados. Há também, por outro lado, argumentos sociais em favor de alimentos importados. Em particular, um foco exclusivo em alimentos locais prejudicaria as perspectivas de agricultores em países em desenvolvimento, que cultivam produtos de alto valor para exportar para mercados estrangeiros. Afirmar que eles deveriam se concentrar no cultivo de gêneros de primeira necessidade para si mesmos, em vez de produtos mais valiosos para estrangeiros abastados, é o mesmo que lhes negar a oportunidade de desenvolvimento econômico.

     Há indubitavelmente algum espaço para a “realocação” da oferta de alimentos. Além disso, no mínimo o debate sobre os quilômetros que os alimentos percorrem está fazendo consumidores e companhias prestarem mais atenção ao impacto ambiental deles. Mas o provincianismo pode ser levado longe demais. Equiparar alimento local a alimento virtuoso, hoje como nos tempos romanos, é demasiado simplista. A rica história do comércio das especiarias nos lembra que, durante séculos, as pessoas apreciaram sabores exóticos do outro lado do mundo, e que a satisfação de suas necessidades gerou uma florescente rede de trocas comerciais e culturais. Os caçadores-coletores eram limitados à comida local por definição; mas se gerações subsequentes tivessem se limitado da mesma maneira, o mundo seria hoje um lugar muito diferente. Reconhecidamente, o legado do comércio das especiarias é misto. As grandes viagens em busca delas revelaram a verdadeira geografia do planeta e inauguraram uma nova era na história humana. Foi também por causa delas que potências europeias começaram a ocupar bases pelo mundo e a estabelecer postos comerciais e colônias. Além de enviar europeus em viagens de descoberta e exploração, as especiarias forneceram as sementes a partir das quais os impérios coloniais da Europa floresceram.




Tom Standage

Uma história comestível da humanidade










Tradução:

Maria Luiza X. de A. Borges


Uma edição:

Zahar Editores




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Le Livros



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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."



Sumário


INTRODUÇÃO   Ingredientes do passado

PARTE I   Os fundamentos comestíveis da civilização
     1. A invenção da agricultura
     2. As raízes da modernidade

PARTE II   Comida e estrutura social
     3. Alimento, riqueza e poder
     4. Seguir o alimento

PARTE III   Os caminhos dos alimentos
     5. Estilhaços do paraíso
     6. Sementes de impérios

PARTE IV   Comida, energia e industrialização
     7. Novo Mundo, novos alimentos
     8. A máquina a vapor e a batata

PARTE V   Comida é arma
     9. O combustível da guerra
     10. Luta por comida

PARTE VI   Comida, população e desenvolvimento
     11. Alimentar o mundo
     12. Paradoxos da abundância

EPÍLOGO   Ingredientes do futuro
     
     Notas
     Bibliografia
     Agradecimentos
     Índice remissivo