sábado, 3 de outubro de 2015

SÃO FRANCISCO DE ASSIS

                                                SÃO FRANCISCO
                               1182-1226

O jovem "rei das festas" abandonou os prazeres do mundo pela vida religiosa. Ao morrer, tinha seguidores que se incumbiriam de disseminar por todo o mundo a ordem que fundara. (À morte, São Francisco abençoa Assis. Tela de C. Sermei, Pinacoteca de Assis.

              

     Pedro amarra o cavalo e enxuga a testa com um lenço. A viagem fora longa, mas proveitosa. Já pode até imaginar a fortuna que ganhará com o carregamento de tecidos franceses. Ainda está descarregando, quando sua mulher, Joana, aparece à janela.  
     — Corra aqui! — diz ela. — Venha ver o presente que ganhamos!
     Sem imaginar o que seja, o mercador atravessa o pátio da casa, entra no salão e se precipita para abraçar a mulher, que há tanto tempo não via. Mas ela tem uma criança nos braços:
     — Não é verdade! — exclama Pedro, surpreso. — Já nasceu?
     — Pois nasceu, e há umas boas semanas — explica Joana. — Dei ao garoto o nome de João. 
     Pedro está feliz. Só não gosta do nome. O filho de um abastado comerciante italiano deve ter um nome diferente, invulgar. Como não há nesta época o registro, ainda está em tempo de mudar. E por que não Francisco? É um nome estrangeiro, de França, e bem adaptado a um futuro mercador, destinado a viver, como o pai, dos tecidos chegados desse país.
     Pedro Bernardone Maricone é um dos comerciantes mais ricos e conceituados de Assis. Suas mercadorias — tafetás, veludos, sedas finas importadas de França, da Normandia, do país de Flandres —, expostas na praça central da cidade, atraem damas e cavaleiros elegantes.
     Passam-se alguns anos. Atrás do balcão, um menino sorri para os clientes e os observa com curiosidade. Esta é a sua escola, e seu pai o professor. A principal e única matéria do curso é o mecanismo dos negócios: os tipos de tecidos, o preço de compra e venda, o lucro, como convencer e regatear com os fregueses.
     Francisco é mandado à escola episcopal. Deve aprender a ler e escrever, mas principalmente a contar. Quando já sabe o suficiente para o comércio, é retirado da escola pelo pai e nomeado vendedor adjunto. Não se pode perder tempo, há algo mais importante a fazer — ganhar muito dinheiro, e depressa. É quase uma obsessão coletiva da época essa necessidade de enriquecer em pouco tempo.

AMAI O DINHEIRO, SE POSSÍVEL

     Nesses últimos anos do século XII, o comércio estava em extraordinária expansão na Itália. A era das Cruzadas chegava ao termo e, com a conquista do Oriente "bárbaro" pelos cristãos, havia uma infinidade de riquezas a serem transportadas para a Europa. Os italianos eram os intermediários ideais, pois estavam a meio caminho entre a Europa ocidental e o Oriente Médio. Os portos de Veneza e Gênova tornaram-se rapidamente os grandes centros do comércio mundial. Dos campos vizinhos acorriam às cidades os lavradores livres e os servos, esperando fazer fortuna em pouco tempo. Nem todos, é claro, atingiam essa meta, pois a concorrência era das mais intensas.

Francisco ajudou o pai, na banca de tecidos; mas viver atrás de um balcão não era trabalho que o atraísse. (A Praça do Mercado, afrêsco de Lorenzetti)

     Uma classe de mercadores ricos formara-se desde cedo, monopolizando a parte mais lucrativa do grande comércio. Em torno deste, girava toda uma série de atividades, exercidas por mercadores ambulantes, marinheiros, artesãos, carregadores.
     Cada uma das cidades rivalizava com as demais na conquista dos mercados. Os ricos negociantes de Gênova e de outras cidades orgulhavam-se dos palácios que mandavam construir. As magníficas mansões onde moravam e instalavam as companhias de comércio simbolizavam o poder desses comerciantes. Como também as igrejas e os monumentos que encomendavam aos melhores artistas da época. Não se admitia nenhuma interferência externa nos assuntos de cada cidade. Apenas a burguesia local — isto é, os mercadores — se achava no direito de governar. Eram, portanto, verdadeiras repúblicas independentes, frequentemente em guerra umas com as outras. Nem os soberanos, nem o papa, tinham força suficiente para enfrentar essas cidades comerciais.

QUANDO OS MERCADORES PERDEM A PACIÊNCIA

     Assis não era um grande centro, mas tinha seus belos prédios burgueses, num dos quais morava a família Bernardone. Rodeada de fortes muralhas e repleta de torres e campanários, a cidade se localizava nas encostas de uma montanha. Situação estratégica, para dificultar o acesso de inimigos e facilitar a defesa. No ponto mais alto ficava a Roca, imponente fortaleza, onde morava o Duque de Spoleto. Vivia lá em cima, isolado de tudo e de todos.
     Esse nobre era homem de poucos amigos. Recebera o ducado das mãos de Henrique VI, soberano germânico, filho do poderoso Barba Ruiva. O Sacro Império Germânico estendera sua dominação até o Mediterrâneo: toda a região da Umbria atual, onde se achavam o ducado de Spoleto e as cidades de Assis, Perúsia e muitas outras, estava sob seu controle. O papa não via essa dominação com bons olhos, mas, não podendo a ela se opor, acomodou-se com o Império.
     Os mercadores, contudo, não toleravam a ocupação. Ao invés de favorecer o comércio, o Duque de Spoleto preferia apoiar-se na velha nobreza feudal. Parecia mais preocupado em se defender do povo de Assis que em defender a cidade das suas concorrentes. Qualquer incidente era pretexto explorado pelo duque para aplicar represálias contra os mercadores e lançar seus homens contra a população.
     Numa manhã de setembro do ano de 1197, os mensageiros penetram na praça de Assis, trazendo uma notícia importante: Henrique VI morrera. Seu filho tinha apenas dois anos e vários nobres disputavam o trono — que ficaria sem ocupante até que a situação se decidisse. Era a oportunidade tão esperada por todos para se livrarem do déspota: sem a proteção do imperador germânico, que poder tinha o Duque de Spoleto?
     — Ao castelo! — grita um mercador inflamado, subindo em sua banca.
     — Abaixo o duque! — respondem outros oradores, surgidos espontaneamente no meio do povo.
     Começa então uma corrida desenfreada. É preciso pegar tudo que possa servir de arma, pois as verdadeiras armas estão em poder do duque. Em pouco tempo, o povo rodeia a fortaleza. Com o auxílio de machados, foices e facas os mais corajosos já se lançam contra os soldados. Apavorada diante da massa humana, a guarnição começa a recuar. Sentindo sua força, a multidão salta os muros e invade a fortaleza.
     Os soldados do duque são massacrados até o último homem; o próprio forte da Roca é totalmente destruído. O ódio é terrível. Nenhuma pedra deve ficar de pé onde esteve o tirano.

PRIMEIROS COMBATES OU PRIMEIROS JOGOS?

     Francisco tinha então dezesseis anos e muito provavelmente participou dessa luta. Os comerciantes estavam na primeira linha do combate — eram os que mais detestavam o duque.
     A revolta ganhara toda a província e chegara mesmo à ilha de Sicília. Os castelos de Montemoro, Bassano e muitos outros caíram em poder dos insurretos. Os proprietários nobres haviam recebido do imperador um privilégio que irritava extremamente os mercadores: cobrar pedágio de tudo o que atravessasse o domínio. Era um imposto completamente injustificado, aos olhos dos negociantes. "Só serve para entravar o comércio e enriquecer essa classe de parasitas", diziam eles. Mas a hora da desforra finalmente chegara. Em toda parte, as forças do Império e da nobreza sofrem pesadas baixas e são obrigadas a bater em retirada.
     Nesse intervalo, novo papa subira ao trono de São Pedro: Inocêncio III, dinâmico prelado de apenas 37 anos. Também a Santa Sé quer tirar vantagem do súbito enfraquecimento do Império. "Sem derramar uma gota do nosso sangue, poderemos estender o domínio papal a todas as terras controladas até agora pelo imperador", diz Inocêncio a seus mais diretos assessores.

A caridade é uma das regras da cavalaria. Francisco segue-a à risca, dando a túnica ao homem pobre.

     Um enviado do pontífice logo chega à cidade de Assis, com o encargo de substituir o governador imperial deposto. Os mercadores, em posição de força pela vitória alcançada sobre o duque, não estão dispostos a entregar o poder assim, sem mais nem Menos. Mas o legado papal acaba por convencê-los, oferecendo grandes vantagens: representantes da burguesia comercial estarão presentes no conselho da cidade e terão poder de decisão em todo assunto importante. Os nobres serão afastados dos cargos principais e substituídos por mercadores. Pela primeira vez, surge um governo favorável aos interesses do comércio.
     Três anos já se haviam passado desde o início da revolta, quando Assis organiza uma tropa: é preciso dar combate a alguns nobres que ainda resistem. Muitos deles haviam se refugiado em Perúsia, a antiga rival de Assis. Ao chegar lá perto, no local denominado Colestrada, a tropa depara com poderosa força inimiga. A batalha não dura muito — os mercadores-soldados de Assis são batidos facilmente pela experiente cavalaria dos nobres, que nesse meio tempo tinham-se recuperado das primeiras derrotas. Muitos prisioneiros são levados à prisão de Perúsia — entre eles, um jovem de dezenove anos, Francisco Bernardone.
     Francisco passaria um ano inteiro no cárcere. Engajara-se na luta por mero espírito de aventura, como tantos amigos seus. Agora, queixava-se da sorte. "Estou perdendo aqui a minha juventude", dizia aos companheiros de cela.
     Posto finalmente em liberdade, Francisco só tem uma preocupação: recuperar o tempo perdido. Não nos negócios, como desejava o pai, ansioso pela colaboração do filho. Ao invés de vender tecidos, Francisco torna-se o maior cliente do pai. Escolhe na banca as sedas mais coloridas e lustrosas e manda confeccionar vestimentas tão finas que sua figura é logo notada pelas grandes damas da cidade. Exatamente o efeito que esperava.
     É tempo também de escolher novos amigos. Francisco começa a procurar os filhos das grandes famílias de Assis. Seu prestígio sobe rapidamente. Um rapaz tão distinto, herdeiro do próspero comerciante Bernardone, era sem dúvida excelente aquisição para a sociedade. Além do mais, Francisco era simpático, estava sempre bem-humorado. Jamais recusava uma nova dança, um copo de vinho a mais. Certa noite, seus admiradores resolvem conceder-lhe a grande honra: Francisco é eleito "rei da festa" por todos os convidados.
     O pai não sabe bem que atitude tomar. Não consegue se acostumar com o tipo de vida que o rapaz está levando, mas sente que isso destaca seu nome de comerciante nos círculos mais elegantes da cidade. Aborrece-se um pouco ao saber que Francisco é escolhido como "rei de festas"; quem tem de pagar todas as despesas é ele, e não o filho. Mas acaba consentindo em organizar em sua própria casa os bailes e serões musicais.

DE COMERCIANTE A CAVALEIRO, O ITINERÁRIO DE UMA VOCAÇÃO

     Francisco cansou-se das festas com a mesma rapidez com que se entusiasmara. Sua curiosidade era grande demais para se acomodar à rotina, mesmo uma rotina de prazeres. Bastava subir às ruínas da antiga Roca e olhar por sobre as muralhas para compreender que o mundo não se limitava a Assis. Nesses momentos, sentia necessidade de mudar de vida, de abandonar os salões de festas e fazer algo de mais útil. Mas a última profissão que desejava seguir era a do pai. Parecia-lhe terrivelmente monótono ter de passar os dias atrás de um balcão de tecidos. Além disso, não considerava o comércio atividade suficientemente "nobre" para um rapaz tão distinto e elegante ...
     A grande aspiração de todo jovem da época era tornar-se cavaleiro. O caminho das glórias e honrarias era justamente esse — ser cavaleiro significava ser bravo, cortês e magnânimo, nobres qualidades que ainda tinham a vantagem de comover o coração das belas damas. Francisco começou a pensar seriamente nessa hipótese. Afinal, já tinha alguma experiência de combate. Um tanto curta, mas, de qualquer modo, uma experiência.
     Os Bernardone não faziam objeção a esses planos. Numa família de mercadores, tornar-se cavaleiro significava, sobretudo, mudar de categoria social, tornar-se gentil-homem. Para atingir essa condição, o comerciante não podia mais "sujar as mãos" na venda direta de pequenas peças ao consumidor. Só era compatível com sua posição vender grandes lotes, por atacado. Que futuro melhor se poderia esperar para um filho?
     A perspectiva de Francisco não era exatamente essa. Sonhava com o dia em que uma espada lhe tocaria os ombros e ele ouviria as palavras rituais: "Em nome de Deus, de São Miguel e de São Jorge, faço-vos cavaleiro. Sede sempre bravo, audaz e leal!" Para chegar até aí, era preciso começar como escudeiro de um nobre. Francisco se encarrega de consegui-lo, enquanto o pai prepara a indumentária. No dia de partir para a guerra, o novo escudeiro se apresenta ao seu senhor. Qual não é a surpresa deste ao verificar que Francisco tem um cavalo melhor e vestes mais suntuosas que ele próprio!

Segundo a lei imperial, "não há nome melhor que cavaleiro, para designar um homem perfeito". Também São Martinho recebeu essa investidura. (Afrêsco de Simone Martini, na Basílica de Assis)

     Bem pouco tempo se passara desde a partida de Francisco, e a família já estava ansiosa por notícias.
     — Quem sabe voltará dentro de um ano, coberto de glórias? — dizia Pedro à mulher.
     — Que Deus o proteja e o traga logo de volta ao nosso lar — respondia Joana. Conversavam assim certo dia, quando a porta se abriu vagarosamente.
     — Não é possível! — exclama Pedro Bernardone.
     — É nosso filho que volta! — diz a mulher, espantada. Francisco nada fala. Parece transformado. Seu olhar não se fixa em nada, está distante. Nessa noite, os pais não conseguem extrair dele nenhuma explicação. Só depois ficam sabendo o que ocorrera.
     Mal abandonara os limites da cidade, Francisco teve um estranho encontro: um homem muito mal vestido, quase nu, lhe aparecera. O jovem ficou transtornado. Uma das qualidades requeridas do futuro cavaleiro era justamente a generosidade. Francisco despiu-se de sua rica túnica bordada e a ofereceu ao homem.
     Era um rapaz impetuoso. Quando tomava alguma atitude, gostava de ir às últimas consequências. Entregara-se de corpo e alma a uma vida alegre, enquanto isto lhe pareceu interessante. Então, não se contentara com papel secundário, chegara a "rei de festa". Pois bem, ao desiludir-se da vida fútil que levava e resolver tornar-se cavaleiro, era para levar a sério as regras da cavalaria. Mas, desta forma, em apenas um dia de caminhada já se desfizera de suas vestes, dos sapatos e das moedas que carregava na sacola. Pois se a cada encruzilhada encontrava um mendigo, uma criança faminta! Enquanto repousava da marcha, à beira da estrada, Francisco fez a si mesmo indagações: "Por onde devo começar minha obra de cavaleiro? Levar a guerra aos infiéis, inimigos do papa? Ou exercer a caridade? Mas há tanto a fazer em toda a parte!" E olhou para o alto, como à procura de inspiração divina.
     Neste ponto, começa o período de sua vida em que é difícil distinguir a lenda da realidade. Conta-se que Francisco ouviu então uma voz do céu, uma espécie de pressentimento: devia retornar imediatamente a sua casa e orar na capelinha de São Damião. Deus lhe daria ali a Sua palavra. Mas há quem diga que o que aconteceu foi bem mais simples: despojado de tudo, sem mais uma só moeda, Francisco não teve alternativa senão regressar. O fato é que essa volta rápida e sem glória deixou o pai muito irritado e serviu para alimentar comentários irônicos no seu velho círculo de amizades.
     Tenha ou não ouvido a voz do céu, o certo é que Francisco voltou transtornado da experiência. Tudo o que vivera até então, tudo em que acreditava, já não era inabalável: "Como pude gozar tanto de riqueza, enquanto os miseráveis erram pelas estradas à cata de um pedaço de pão? Como pode haver tanta injustiça, tanto luxo, ao lado de tanta pobreza?"

"VÁ, FRANCISCO, E RESTAURE A MINHA CASA!"

     Como para ouvir a resposta de Deus às suas perguntas, Francisco vai todo dia à capelinha de São Damião e se ajoelha diante do altar. Olhando com fervor o crucifixo, parece-lhe, em dado momento, que os lábios do Cristo se movem. Francisco esfrega os olhos, teme que seja uma alucinação. Diz a lenda que nessa hora Jesus lhe disse: "Vá, Francisco, e restaure a Minha Casa!"
     Seria esta tarefa, que Deus lhe designava, a resposta às perguntas que fizera com tanta veemência? "É por isso, provavelmente, que Ele me ordenou voltar a Assis", murmura Francisco. Entrega-se então, com fervor, ao trabalho. A igrejinha estava em situação lastimável: o teto, quase a desabar, precisava ser reconstruído; faltavam boa pintura e novas imagens, mais belas, "para prestar homenagem ao Senhor". Mas tudo isto requeria trabalho e muito dinheiro. Francisco não hesita: começa por vender todos os objetos e roupas que possui. Como não basta, vai à banca do pai e retira algumas peças de fino tecido. Transformadas estas coisas em dinheiro, bate à porta do velho padre em São Damião: "Eis aqui, para a reconstrução da capela!"
     Mas o capelão desconfia de tanta generosidade: "Que súbito acesso de fé vos tomou ultimamente, meu filho? Ainda há pouco tempo, recordo-me de vos ter visto em serenatas sob as janelas da cidade!"
Olhando o crucifixo da capela, pareceu a Francisco ter ouvido o Cristo dizer-lhe: "Vá, e restaure a Minha Casa!"

     Mas Francisco insiste, ajoelha-se, implora ao padre para deixá-lo ficar em São Damião, a serviço da capela. Finalmente, impressionado por tanta convicção, o capelão cede, não sem mandar um mensageiro avisar a família Bernaidone o que ocorria. Ao receber a notícia, o pai de Francisco explode:
     — Isto já passa dos limites!
     Sela o seu cavalo e vence em alguns minutos o quilômetro que separa a igrejinha da cidade.
     — Exijo imediatamente a restituição de meu filho e de meu dinheiro! — grita ao padre.
     Pressentindo o perigo, Francisco desaparecera da capela. Seu pai volta com a sacola de moedas, furioso:
     — Que loucura é esta! Distribuir aos pobres toda a nossa fortuna!
     Alguns dias depois, o rapaz se aventura a ir à cidade: está sujo e faminto, emagreceu vários quilos. Ninguém reconhece nele o jovem bem vestido que há pouco tempo brilhava na sociedade, salvo sua mãe, que, debruçada à janela, vê de repente o filho num canto, como um mendigo.
     — Francisco! — grita ela.
     Bernardone ouve e sai à rua às pressas. Pega o filho pelo braço, dá-lhe uma surra e leva-o de volta a casa:
     — Ficará preso no porão, até tirar da cabeça essas ideias!

O PEDREIRO DE DEUS

     Dona Joana não pode ver o filho prisioneiro. Aproveitando uma saída do marido, devolve a liberdade a Francisco. Furioso, Bernardone decide levar o caso ao Tribunal Episcopal: "Está bem", diz ele, "meu filho pode fazer o que quiser. Mas não com o meu dinheiro! Faço questão
de que ele renuncie aqui, oficialmente, a todo direito de sucessão à minha fortuna!"

                      POR QUE TANTO LUXO, AO LADO DE TANTA POBREZA?

Ao saber que o filho se entregara ao serviço religioso, Bernadone levou o caso ao Tribunal Episcopal, diante do qual Francisco se despiu, jogando as vestes aos pés do pai e aceitando a túnica que lhe dava o bispo de Assis. (Afrêsco de Benozzo Gozzoli)

     Dom Guido, bispo de Assis, ouve em silêncio as acusações do mercador. Agora, dá a palavra à outra parte. Mas, para grande espanto do Tribunal, em vez de responder, Francisco começa a se despir. Jogando as vestes aos pés do pai, exclama:
     — Até agora te chamei de "meu pai" sobre a Terra. Mas, a partir de hoje, só tenho um Pai, que está no Céu. Renuncio a tudo que venha de ti, tua herança, tuas roupas!
     O bispo se aproxima de Francisco, que está totalmente nu, e, num gesto amistoso cobre-o com sua própria túnica. O filho de Bernardone tem agora 25 anos. Não possui mais nada, salvo a túnica escura que lhe foi dada pelo bispo. Pendura uma cruz de madeira ao pescoço e lança-se com afinco àquilo que acredita ser a sua tarefa.
     Faz-se um perfeito pedreiro, restaurando pouco a pouco a velha capelinha de São Damião. Quando o dinheiro escasseia, vai à cidade mendigar o auxílio do povo, para prosseguir as obras. Seus ex-amigos são implacáveis, não perdem nenhuma oportunidade para fazer piadas e ridicularizá-lo nessas visitas.

Certa ocasião, um de seus discípulos, encontrando duas crianças no caminho, construiu-lhes uma gangorra e durante horas ficou brincando com elas (Miniatura do Códice Franceschina).

     Mas Francisco mostra indiferença. Nada mais lhe importa, a não ser o serviço de Deus. Encontrara finalmente sua vocação. Havia outra igreja a restaurar: Nossa Senhora da Porciúncula. Certo dia, lá pelo ano de 1208, o padre dessa igreja lê aos fiéis a passagem do Evangelho em que Jesus traça regras de conduta para os seus apóstolos: "Ide a toda parte e anunciai que o Reino de Deus está próximo. Não leveis ouro nem prata em vossa cintura, nem sacola, nem duas túnicas, nem sandálias ou cajado".
     Francisco ouve e medita. "Então é isto...", diz em voz baixa, "Cristo também desprezava as riquezas e pregava a seus apóstolos uma vida simples, sem nenhum artifício material! Mas a Igreja e os prelados de hoje não parecem apreciar muito este preceito".
     Inquieto com a gravidade da questão que acabara de descobrir, resolve estudar cuidadosamente os Evangelhos. Não era leitura fácil, especialmente levando em conta a pouca instrução que tivera. Com muita força de vontade, supera, contudo, o obstáculo. "Como a vida de Jesus era diferente da vida dos papas!", reflete ele. "De um lado, a maior humildade; de outro, a maior das opulências! A Igreja se desviou incrivelmente dos ensinamentos do Cristo". Súbito, Francisco tem a impressão de compreender tudo, como se houvesse sido iluminado: "Então é isto que dizia o Cristo a mim, em São Damião! Restaurar a Sua Casa... Claro! Ele quer pôr ordem em Sua Igreja, em toda a Igreja!"

RESOLVER UM ENIGMA PODE CRIAR MUITOS PROBLEMAS

     Restaurar as instituições da Igreja é tarefa bem mais complicada que consertar o telhado de São Damião. Com Inocêncio III, a Santa Sé atinge o auge do seu poder. Na qualidade de Vigário de Cristo, o papa sente-se no direito de soberania sobre todas as igrejas e todos os reinos. Os legados de Roma espalham-se pela Europa, com o objetivo de fazer respeitar a vontade papal. Os príncipes devem prestar juramento de fidelidade ao pontífice e pagar-lhe um pesado imposto, se não quiserem ser excomungados. Punição terrível, nestes tempos em que os senhores e os reis pretendem governar em nome do Céu. Graças ao poderio financeiro e militar de que dispõe, Inocêncio III consegue estender os domínios papais até a Inglaterra. A Sicília, a Espanha e Portugal já eram Estados vassalos da Santa Sé.
     Por esse tempo, os pecadores, nobres ou plebeus, podiam livrar-se das culpas, pagando uma taxa, a "porciúncula" (pequena porção). Este e todos os demais tipos de impostos levavam considerável fortuna aos cofres da Igreja. Bispos e cardeais viviam em ricos monastérios, como príncipes. Os monges mais parecem soldados seus, pois durante séculos estiveram armados para defender as terras e riquezas da Igreja.

Velho e cansado, os olhos doentes, Francisco é obrigado a enxugá-los continuamente. (Pint século XV, Ermida de Greccio)

     Em toda parte começam a surgir reações a esse estado de coisas. Monges, isoladamente, ou mesmo algumas confrarias, resolvem corrigir os abusos e fazer voltar a Igreja à austeridade e às práticas espirituais. Insurgem-se contra a doutrina teocrática, pela qual o papa pretende ser o soberano do mundo. Pregam a volta à simplicidade do Evangelho. Assim, os valdenses, ou "pobres de Lyon", pretendem despojar a Igreja das riquezas terrenas. "Humilhados", cátaros e outras seitas mendicantes também desejam renunciar aos privilégios materiais. Inocêncio bem podia consentir certas reformas, cedendo às súplicas dos monges, mas que não se tocasse em seu poder, sobretudo político! As seitas reformadoras são logo qualificadas de heréticas e seus componentes perseguidos impiedosamente.
     Francisco não estava bem a par desses fatos. As notícias caminhavam devagar: às vezes passavam anos até que em Assis se tomasse conhecimento de algum fato importante. Trazidas por mercadores, passadas de boca em boca, as informações chegavam tão deformadas que era muito difícil dar-se crédito a elas.
     Francisco seguia o que lhe ditava a consciência. Decidido a cumprir fielmente as Escrituras Sagradas, passou a viver do modo mais simples e humilde. Em público, começou a ensinar os fiéis a viver como Cristo, despojados das coisas materiais e voltados apenas para o espírito. Os ouvintes se entusiasmavam, tanto mais quanto ele próprio dava exemplo do que pregava. Seus sermões eram cada vez mais frequentados. Sua fama foi-se espalhando para bem além das regiões de Assis e Perúsia.

DE COMO VENDER UMA HERESIA AO PAPA

     Francisco recebe um dia uma visita inesperada. Bernardo Quintavolo, rico burguês de Assis, profundamente tocado por sua pregação cristã, decide entregar aos pobres os seus bens e pede permissão para segui-lo. Francisco não esperava contar tão logo com um discípulo. E já aparecem outros: Ange, Rufino, Leão. Ao fim de algum tempo, são doze, que a ele se vêm juntar, dispostos a fazer voto de pobreza e fundar uma nova ordem religiosa, fiel seguidora do Evangelho. O Poverello (pobrezinho), como Francisco já era chamado, pretendia regenerar a Igreja, mas temia a criação de uma ordem: queria uma religião pura, sem instituições ou hierarquia, para não cair nos mesmos erros do clero. Seu objetivo, além disso, era agir pela força do amor e da persuasão, sem provocar inutilmente o papa: caso contrário, arriscava-se a ser qualificado de herético. E já fora informado do tratamento que se dava às heresias.
     A Igreja enfrentava, na ocasião, o difícil desafio de seitas "heréticas" — valdenses, cátaros, pataros, na França meridional e na Itália setentrional —, monges que levavam uma vida simples e criticavam asperamente a dissolução de costumes no seio da Igreja oficial. Pela primeira vez na história eclesiástica a heresia abandonava as estéreis disputas teológicas; procurava o exemplo concreto, mostrando a diferença de vida dos seus membros e dos integrantes do clero católico.
     Contra as doutrinas heréticas fora estabelecida a Inquisição; mas era preciso vencê-las em seu próprio terreno, discutir com os heréticos em praça pública, mostrar a todos que uma vida de pobreza não era privilégio dos inimigos do papa.

Retrato de Santa Clara, de autor desconhecido, do século XIII, em painel na Basílica de Santa Clara, em Assis.

     Inocêncio ouvira falar do Poverello e desconfiava desse homem que, com doze seguidores, imitava Jesus. Mas, quando o próprio Bispo Guido lhe apresenta o grupo dos "penitentes de Assis", Sua Santidade hesita. Não lhe agrada a ideia de seguir à risca o Evangelho, especialmente nessa atitude de brandura, humildade e pobreza. Mas não convém reprimir um movimento que já adquiriu raízes populares e até o apoio do bispo de Assis. Dom Guido explica:
     — A política de repressão das novas seitas tem dado péssimos resultados, Santidade. Tem servido para criar novos mártires e diminuir vossa autoridade. Seria mais prudente de nossa parte conceder-lhes o que pedem: a fundação de uma ordem mendicante, baseada no Evangelho. Desta forma evitaremos que passem à heresia e utilizaremos, em nosso proveito, o movimento.
     Inocêncio adia seu pronunciamento. A questão é muito grave e demanda longas consultas junto aos cardeais. As opiniões, então, divergem, mas o papa encontra a fórmula conciliatória — aprova verbalmente a ordem nova, sem assumir um compromisso formal. Teria, assim, tempo de pôr à prova a fidelidade desses "pobrezinhos".

DA POBREZA SE FAZ DOUTRINA

     Francisco não pede mais nada. Fundada a Ordem dos Irmãos Mendigos, retira-se com os discípulos para uma choupana abandonada na montanha. Renunciando a qualquer forma de propriedade, os "franciscanos" recusam mesmo ter uma igreja. Na cabana, não há móvel algum. Dormem no chão e põem os alimentos sobre as cinzas, antes de comê-los, de modo a retirar deles todo o gosto: não se admite forma alguma de satisfação material.
     Apesar de tudo, reinava alegria nessa cabana. Francisco e seus seguidores, imbuídos de fé, estavam convictos de que viviam os preceitos evangélicos. Dali se mudaram, passando de uma caverna para outra, vivendo do modo mais primitivo, quase como os animais: "Eles também são criaturas de Deus", dizia Francisco.
     Esta busca desesperada da pobreza tem enorme repercussão. Em sete anos, os discípulos de Francisco não são apenas doze, porém milhares, vindas de toda a península italiana. É gente de todas as origens, atraída pela simplicidade e pela "valorização da pobreza", numa época em que são visíveis os contrastes entre a teoria e a prática da Igreja.

Um pintor anônimo do século XV retratou São Francisco em exaltação mística.

     Depois de muitas peregrinações, Francisco passa um dia na cidade natal. Uma jovem o aguardava impaciente, há vários meses: Clara, da poderosa família dos Offreducci. Após diversas peripécias, conseguira escapar à perseguição do pai. Desfazendo-se de suas ricas vestes, a jovem declara-se disposta a cortar os cabelos e a entrar num mosteiro, a serviço dos franciscanos. Francisco não previra a participação de mulheres na Ordem; mas, comovido com a atitude de Clara, autoriza-a a se instalar em São Damião. Alguns dias depois, sua irmã Agnes vem juntar-se a ela. Não se passa muito tempo e outras jovens também se recolhem à capelinha.

Clara segue ao encontro de Francisco, em Porciúncula. Permanecerá com ele por um ano, preparando-se para sua missão. (Basílica de Santa Clara, Assis)

     Francisco convence-se de que não há razão para restringir aos homens o privilégio de pertencer à Ordem. Consegue do papa autorização especial para abrir um convento em São Damião. As "damas pobres" que aí se estabelecem fazem voto de castidade e de pobreza. Terão como primeira superiora a jovem Clara Offreducci, que seria mais tarde canonizada: Santa Clara. (Deriva do seu, o nome de clarissas, pelo qual as irmãs da Ordem ficaram conhecidas.) As franciscanas conhecem rapidamente grande expansão. Mesmo princesas, como Isabel de França, resolvem abandonar o mundo e ingressar na Ordem.

INOCÊNCIO PREPARA A ARMADILHA

     Era o ano de 1215. Para Inocêncio III chegara o momento de oficializar a ordem nova, antes que ela se declarasse rebelde. Na Espanha, o pregador Domingos fundara outra irmandade, a dos dominicanos, que, juntamente com os franciscanos, poderia ameaçar a autoridade pontifícia. Reúne-se o Concílio de Latrão; a Ordem dos Irmãos Menores de Assis é solenemente reconhecida pela Igreja: "menores" no reino de Deus, mas, de qualquer forma, no interior do reino... Era o que contava. O Cardeal Ugolino é designado "protetor" da Ordem. Inocêncio já compreendera que um movimento dessa importância, fora da Igreja, poderia constituir um perigo; dentro dela, e bem tutelado, poderia servir admiravelmente a seus objetivos.

Francisco envia um frade ao Imperador Oto IV, com uma mensagem: "Breve perderá a coroa". (Óleo de Cesare Sermei)

     O primeiro capítulo geral (assembleia) da Ordem é declarado aberto. Mais de 5 000 irmãos e 500 noviços assistem às sessões. Sob injunção do papa, Francisco consente em repartir seus discípulos em grupos de dois: cada um desses grupos deveria sair em peregrinação pelo mundo, para "converter os infiéis". Inocêncio conseguira seu intento. Além de cumprir a nobre missão, os franciscanos constituirão um verdadeiro exército espiritual. Juntamente com as forças armadas da Santa Sé, poderiam, sem dúvida, submeter ao papa os povos que ainda resistiam.
     Francisco ainda não percebera os riscos que corria. Seu movimento se tornaria, justamente, instrumento do poderio material da Igreja, o qual ele tanto combatia. O que estava errado, a seu ver, nas Cruzadas, eram os métodos violentos, era a guerra empregada pelo papa na conversão dos infiéis. Para Francisco, as armas adequadas deveriam ser a fé e a persuasão. O Poverello vê, na missão determinada pelo pontífice, a oportunidade extraordinária de disseminar o sentimento e a fé cristã por todo o mundo.
     Em 1220, cinco dos seus discípulos caíram prisioneiros dos muçulmanos, em Ceuta; como recusassem a converter-se ao islamismo, tiveram as cabeças cortadas e levadas numa bandeja ao sultão. Os franciscanos já tinham os primeiros mártires.
     Enquanto isso, Francisco embarca para a Terra Santa. Os exércitos do papa haviam organizado uma Cruzada para conquistar a Palestina. Percorrendo desarmado o campo de batalha, Francisco é aprisionado e levado ao Sultão Melekel-Kamel. Conta-se que, para mostrar a ele a superioridade da fé cristã, Francisco caminhou sobre o fogo, desafiando um muçulmano a fazer o mesmo. A proeza teria agradado tanto ao sultão, que este mandou libertá-lo. Mas isso não impediu que as forças do papa sofressem pesada derrota e afinal abandonassem a pretendida conquista.

Demônios perturbam a cidade de Arezzo. Mas Francisco expulsa-os, dando tranquilidade aos habitantes. (Afrêsco de Benozzo Gozzoli)

     Alguns biógrafos de São Francisco acreditam que ele foi ao Oriente com a ideia fixa de ser martirizado. Ao invés disso, só obteve honrarias. Seja como for, Francisco voltou à Itália extremamente preocupado. Pela primeira vez, a irmandade enfrentava uma crise interna: aproveitando sua ausência, alguns discípulos, pressionados por Ugolino, o "protetor" da Ordem, haviam preconizado uma reforma. Era preciso, diziam, estabelecer novas regras para a comunidade, mais adaptadas às "condições do tempo", isto é, menos severas quanto ao voto de pobreza. O Poverello não quis ouvir falar de qualquer concessão neste terreno. Mas Ugolino insiste: "Já não estamos mais naquela fase heroica de Assis. Chegou a hora de refletir e organizar de um modo realista o movimento".

"E QUE SÓ TENHAM UMA COISA A DIVIDIR: A POBREZA"

     Para ganhar tempo, o fundador dispõe-se a redigir ele mesmo as novas regras. Inocêncio III morrera. Francisco imagina poder contar com o apoio do novo papa, Honório III, para manter a pureza dos Irmãos Menores. Apresenta finalmente, em 1221, o texto de uma Regra, que nada ou quase nada difere dos preceitos que sempre defendera:
     "Observar o Santo Evangelho, viver na obediência, na castidade e não possuir absolutamente nada (...). Proíbo rigorosamente a todos os irmãos receberem dinheiro, casas, terras, sob qualquer pretexto, seja diretamente ou por meio de outras pessoas (...). E que só tenham uma coisa a dividir: a pobreza".
     Evidentemente, o texto é recusado. Ugolino convida Francisco a fazer outra Regra. Desta vez, em 1223, o texto é retocado pelo próprio protetor e, depois de bem "abrandado", é finalmente sancionado por Honório III. Os franciscanos perdem muito dos traços que os distinguiam: já não são mais "os pobres entre os pobres".
     Como se não bastasse essa decepção, Francisco estava doente: contraíra na Palestina uma inflamação no olho. Não era velho, tinha apenas 41 anos, mas seu corpo se desgastara com as longas privações a que se submetera. O Poverello é obrigado a moderar suas atividades. Em 1224, renuncia à direção efetiva da comunidade que criara. E parte em direção à floresta, em companhia apenas dos três discípulos mais chegados: Ange, Rufino e Leão.

                  AMARGURADO, ESCOLHE A FLORESTA PARA FUGIR DO MUNDO

"Na íngreme rocha, entre o Tibre e o Arno, recebeu de Cristo a marca final, que suas carnes carregaram por dois anos". Dante descreve, na Divina Comédia ( Paraíso, XI, 106), o surgimento dos estigmas de Francisco . (Quadro de Dono Doni, Pinacoteca de Assis)

     É difícil distinguir entre a verdade e a imaginação popular, nos muitos acontecimentos atribuídos a Francisco, na última fase de sua vida, quando ele procurou o mais íntimo contato com a natureza. Diz-se que os animais da floresta, sentindo o respeito e o amor que o Poverello tinha por eles, alegravam-se e saudavam-no: os peixes saltavam fora da água, os pássaros pousavam em seus ombros.
     Mas o episódio mais famoso teria ocorrido no alto de um rochedo, entre o rio Tibre e o Arno. Estava Francisco meditando junto à sua choupana, quando desceu do céu um serafim de asas resplandecentes, trazendo nos braços uma cruz. Mas, subitamente, a imagem desaparece. Francisco percebe então marcas ensanguentadas nas mãos e nos pés, como se tivessem sido atravessados por pregos. Muito se discutiu posteriormente sobre a autenticidade desses estigmas. Na opinião de alguns, teriam sido provocados após a morte de Francisco; porém, seus seguidores estabeleceram com isso a semelhança espiritual e física entre São Francisco e o Cristo crucificado.
     Mas Francisco não morreria na cruz. Nem os médicos do papa lhe conseguiram amenizar as doenças e a extrema fraqueza: tentou-se a cauterização do olho, o corte de veias e a perfuração da orelha. Nada deu resultado. Francisco implora que o conduzam a Assis — quer morrer na cidade onde nascera.
     Tanto se espalha que ele é um santo, que os fiéis correm em massa ao seu encontro, durante a viagem. Começa a "caça às relíquias": cada um quer guardar um pedaço de seu hábito, um fio de sua barba. Francisco continua lúcido. Chamando a si os irmãos mais próximos, dita várias cartas, entre elas uma para Clara, com quem marca um reencontro na Eternidade.
     Num último gesto de fidelidade à sua doutrina, pede aos irmãos para o deitarem no chão, completamente nu, e o cobrirem de cinzas. É o seu adeus a Nossa Senhora da Pobreza, de quem tinha sido o mais fiel devoto. No dia 3 (ou 4) de outubro de 1226, o Poverello ainda murmura: "Senhor, libertai minha alma da prisão, para que eu possa bendizer o Vosso nome". Os discípulos se entreolham. São Francisco morreu.

"Senhor, libertai a minha alma da prisão para que eu possa bendizer o Vosso nome". Rodeado pelos discípulos, São Francisco pronuncia essas palavras e morre. Seu desejo fôra atendido: terminou seus dias na cidade onde nascera. (Afrêsco de B. Gozzoli, em Montefalco)

     A partir de então, a Ordem expandiu-se consideravelmente. Não exatamente no sentido que desejara o fundador, mas como instrumento do poder papal. No fim do século XIII, os franciscanos já eram 25 000 e possuíam mais de mil conventos.
     Foi preciso esperar também a morte do Poverello para que fossem escolhidos os primeiros cardeais franciscanos. Era a suprema vitória da Igreja, quase uma afronta a São Francisco, que tanto combatera as hierarquias. No início do século XIV, o franciscano Giovanni de Montecorvino é o arcebispo de Pequim, sob a proteção do Grande Khan mongol. Durante todo esse século, os franciscanos partiram para o Oriente, a serviço das famosas missões do papado. O crescimento da Ordem prosseguiu. Nos dias de hoje, ela conta com 45 000 seguidores: os irmãos de hábito marrom e preto e os irmãos capuchinhos, além das clarissas, que são 13 000. Todo um exército de religiosos, agindo segundo o exemplo de resignação e pobreza deixado pelo Poverello de Assis.






SÃO FRANCISCO
  
é um fascículo (capítulo 17) da coleção encadernável 
GRANDES PERSONAGENS DA HISTÓRIA UNIVERSAL
Volume II, editado pela

ABRIL CULTURAL

com Copyright Mundial, em 1971, de
ARNOLDO MONDADORI EDITORE, Milão, Itália 

e Copyright para a língua portuguesa, em 1971 da
ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL