sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

TABULETA DO DILÚVIO

Tabuleta de argila para escrever, de Nínive (perto de Mossul),                                         norte do Iraque

                                                                    700-600 A.C.

     A história bíblica de Noé, sua arca e o Dilúvio está de tal maneira integrada à nossa linguagem que qualquer criança sabe dizer que os animais entraram aos pares. Mas a história do Dilúvio é bem anterior à Bíblia, e comum a muitas outras sociedades. Isso leva a uma grande indagação: temos conhecimento do Dilúvio porque alguém há muito tempo, registrou a história por escrito — mas quando surgiu a ideia inicial de registrar uma história por escrito?


     Moradores de Bloomsbury têm o hábito de dar uma passada no British Museum. Pouco mais de 140 anos atrás, um deles, um homem chamado George Smith, costumava visitá-lo no horário do almoço. Aprendiz de uma gráfica não muito distante, ele ficou fascinado com a coleção de tabuletas de argila da antiga Mesopotâmia. Mergulhou tanto no assunto que aprendeu a ler a escrita cuneiforme das tabuletas e com o passar do tempo tornou-se um dos maiores especialistas em escrita cuneiforme de sua época. Em 1872, Smith estudou uma tabuleta de Nínive (hoje no Iraque), e é ela que quero examinar agora.
     A biblioteca onde mantemos as tabuletas de argila da Mesopotâmia — existem cerca de 130 mil — é uma sala repleta de prateleiras do chão ao teto, com uma estreita bandeja de madeira em cada prateleira contendo até doze tabuletas, a maioria em fragmentos. O pedaço que chamou a atenção de George Smith em 1872 tem aproximadamente quinze centímetros de altura, é feito de argila marrom-escura e está coberto por um texto denso e organizado em duas colunas apertadas. De longe, lembra um pouco pequenos anúncios de um jornal antigo. Originalmente deve ter sido retangular, mas ao longo do tempo partes se desprenderam. Quando George Smith compreendeu o que este fragmento significava, descobriu que abalaria os alicerces de uma das grandes histórias do Antigo Testamento, levantando importantes dúvidas sobre o papel da escritura e sua relação com a verdade.
     Nossa tabuleta é sobre um dilúvio — sobre um homem que recebe uma ordem de seu deus para construir um barco e carregá-lo com sua família e animais, pois uma inundação está prestes a liquidar a humanidade da face da Terra. A história gravada na tabuleta era fantasticamente familiar para George Smith, porque, enquanto lia e decifrava, ficava claro que o que ele tinha diante de si era um mito antigo que correspondia à história de Noé e sua arca e — o mais importante — era anterior a ela. Apenas para lembrar, eis aqui alguns fragmentos da história de Noé contada pela Bíblia (Gênesis, 6:14-7:4):

Faze para ti uma arca (...) e de tudo o que vive, de toda a carne, dois de cada espécie, farás entrar na arca (...) farei chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites; e desfarei de sobre a face da terra toda a substância que fiz.
E aqui vai um pequeno extrato do que George Smith leu na tabuleta de argila:

Demole a casa e constrói um barco! Abandona a riqueza e busca sobreviver. Despreza a propriedade, salva a vida. Leva para dentro a semente de todas as coisas vivas! O barco que construirás, suas dimensões devem ser todas iguais: o comprimento e a largura devem ser os mesmos. Cobre-o com um teto, como o oceano embaixo, e ele te enviará chuva abundante.
O fato de uma história da Bíblia hebraica já ter sido contada em uma tabuleta de argila da Mesopotâmia era uma descoberta assombrosa, e Smith sabia disso, como demonstra um relatório da época:

        Smith pegou a tabuleta e pôs-se a ler as linhas que o conservador com que a limpara fizera aparecer; e, quando viu que continha uma parte da lenda que esperara encontrar, disse: “Sou o primeiro homem a ler isto após dois mil anos de esquecimento.” Pondo a tabuleta na mesa, saiu pulando e correndo pela sala, na maior agitação, e, para espanto dos presentes, começou a tirar a roupa!
Era mesmo uma descoberta pela qual valia a pena tirar a roupa. A tabuleta, que se tornaria universalmente conhecida como Tabuleta do Dilúvio, foi escrita onde hoje é o Iraque, no século VII a.C., mais ou menos quatrocentos anos antes da última versão conhecida da narrativa bíblica. Seria possível que a narrativa bíblica, longe de ser uma revelação especialmente privilegiada, fosse apenas parte de uma reserva comum de lendas compartilhada por todo o Oriente Médio?
     Foi um dos grandes momentos de revisão radical da história do mundo no século XIX. George Smith só divulgou a tabuleta doze anos após a publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin. E, com isso, abriu uma caixa de Pandora religiosa. O professor David Damrosch, da Universidade de Columbia, mede o impacto sísmico da Tabuleta do Dilúvio:

Na década de 1870, as pessoas viviam obcecadas por histórias bíblicas, e a veracidade das narrativas bíblicas era um assunto muito controverso. Por isso foi uma sensação quando George Smith encontrou essa versão antiga da história do Dilúvio, obviamente muito mais velha do que a versão bíblica. O primeiro-ministro Gladstone foi ouvir a palestra de Smith sobre sua nova tradução, noticiada em primeira página no mundo inteiro, incluindo um artigo no New York Times, no qual já se dizia que a tabuleta poderia ser interpretada de duas maneiras bem diferentes: isso prova que a Bíblia é verdade ou mostra que é tudo lenda? E a descoberta de Smith deu mais munição para os dois lados do debate sobre a veracidade do relato bíblico e sobre Darwin, evolução e geologia.
Que efeito tem, em nossa percepção sobre um texto religioso, a descoberta de que ele vem de uma sociedade mais antiga, com um conjunto diferente de crenças? Perguntei ao rabino-chefe do Reino Unido, Jonathan Sacks:

Existe claramente um acontecimento central por trás das duas narrativas, que foi uma grande enchente, parte da memória folclórica de todos os povos daquela região. O que as antigas narrativas sobre o Dilúvio fazem é, essencialmente, falar das grandes forças da natureza controladas por divindades que não gostam muito dos seres humanos e para as quais tudo se resolve pela força. A Bíblia aparece e conta a história mais uma vez, mas de forma diferente: Deus envia o Dilúvio porque há muita violência no mundo, e o resultado é que a história ganha sentido moral, o que é parte do projeto da Bíblia. É um salto radical do politeísmo para o monoteísmo: para um mundo em que as pessoas cultuavam o poder, para a insistência bíblica em que o poder tem de ser justo e às vezes compassivo, e de um mundo no qual há muitas forças, muitos deuses, lutando uns contra os outros, para outro em que todo o universo é resultado de uma única vontade criadora racional. Portanto, quanto mais se entende o que a Bíblia combate, mais profunda é nossa compreensão dela.
No entanto, a Tabuleta do Dilúvio era importante não apenas para a história da religião; é também um documento vital na história da literatura. A tabuleta de Smith vem do século VII a.C., mas agora sabemos que a história do Dilúvio foi escrita originalmente mil anos antes. Só mais tarde o relato do Dilúvio foi inserido por contadores de história na famosa epopeia de Gilgamesh, o primeiro grande poema épico da literatura mundial. Gilgamesh é um herói que parte em busca da imortalidade e do autoconhecimento. Enfrenta demônios e monstros, sobrevive a todos os perigos e, por fim, como todos os heróis posteriores, vê-se diante do maior desafio de todos: sua própria natureza e sua própria mortalidade. A tabuleta de Smith é apenas o décimo primeiro capítulo da história. A epopeia de Gilgamesh tem todos os elementos de um ótimo conto, mas é também um momento decisivo na história na escrita.
     A escrita no Oriente Médio começou como pouco mais do que uma forma de fazer contabilidade: criada essencialmente para burocratas a fim de manter registros. Foi usada, acima de tudo, para as tarefas práticas do Estado. Já as histórias eram em geral contadas ou cantadas e aprendidas de cor. Porém, aos poucos, mais ou menos há quatro mil anos, histórias como a de Gilgamesh começaram a ser registradas por escrito. Intuições sobre as esperanças e os temores do herói agora podiam ser ajustadas, refinadas e fixadas; o autor teria certeza de que sua visão particular da narrativa e seu entendimento pessoal da história poderiam ser transmitidos diretamente, e não alterados o tempo todo por outros contadores de história. A escrita transferiu a autoria da comunidade para o indivíduo. Não menos importante, um texto escrito podia ser traduzido, e a forma particular de uma história poderia, agora, passar facilmente para várias línguas. A literatura registrada por escrito tornava-se, assim, literatura mundial. David Damrosch explica esse contexto:

        Gilgamesh agora é muitas vezes apontada nos cursos de literatura como a primeiríssima obra, e isso mostra uma espécie de globalização precoce. É a primeira obra da literatura mundial que circula amplamente no mundo antigo. O mais notável, quando se observa Gilgamesh hoje, é ver que, recuando o suficiente no tempo, não houve choque de civilizações entre o Oriente Médio e o Ocidente. Descobrimos em Gilgamesh as origens de uma cultura comum — seus rebentos aparecem em Homero, em As mil e uma noites e na Bíblia —, portanto ele é, de fato, uma espécie de fio condutor comum na nossa cultura global.

Com a epopeia de Gilgamesh, representada aqui pela Tabuleta do Dilúvio de Smith, o ato de escrever deixou de ser um meio de registrar fatos e passou a ser um meio de investigar ideias. Sofreu uma mudança em sua natureza. E mudou a “nossa” natureza: uma literatura como a de Gilgamesh nos permite não apenas explorar nossos próprios pensamentos, mas habitar o mundo da imaginação de outros. Essa, obviamente, é também a ideia do British Museum e, na verdade, dos objetos que compõem este fio condutor da história da humanidade que tento traçar aqui: eles nos oferecem a possibilidade de outras existências.

A delicada e pequena escrita cuneiforme na Tabuleta do Dilúvio foi impressa na argila úmida












TABULETA DO DILÚVIO

é o 16º capítulo do livro

A HISTÓRIA DO MUNDO EM 100 OBJETOS




NEIL MacGREGOR

Tradução de Ana Beatriz Rodrigues, Berilo Vargas e Cláudio Figueiredo

Copyright © the Trustees of the British Museum and the BBC, 2010
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TÍTULO ORIGINAL
A History of the World in 100 Objects

ADAPTAÇÃO DE CAPA
Julio Moreira

PREPARAÇÃO
Carolina Rodrigues

REVISÃO
Suelen Lopes
Clara Diament

REVISÃO DE EPUB
Fernanda Neves

PRODUÇÃO DE EPUB
Simplíssimo Livros

Edição digital: 2013

Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Intrínseca Ltda.
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
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terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

JOANA D'ARC (1412-1431)

A jovem camponesa torna-se soldado e símbolo de uma luta. As chamas que consumirão seu corpo não destruirão a bandeira que ela significou para os franceses.


     Chinon, março de 1429. Como tantas outras cidades, pequenas ou grandes, do reino da França, Chinon é rodeada de muralhas. Para entrar, é preciso passar por um ou dois portões guardados e explicar muito bem a razão da visita. Caso contrário, abaixam-se as grades e ninguém mais entra ou sai — a cidade inteira se transforma numa praça-forte. Quartel-general dessa fortaleza: o castelo, com seu fosso só transponível através da ponte levadiça.
     Nos salões do castelo há muita agitação. Barões, duques e outras personalidades discutem em voz alta. Parecem esperar alguma decisão. As atenções se concentram numa grande porta, por onde costuma entrar o jovem Carlos, príncipe herdeiro do trono da França.
     Mas o príncipe prefere ficar sozinho nos seus aposentos. Simplesmente não sabe o que dizer aos súditos. A situação, na verdade, é mais grave do que nunca — a chamada Guerra dos Cem Anos, entre a França e a Inglaterra, atravessa um momento decisivo. Forças inglesas ocupam a maior parte do país e um dos últimos bastiões de resistência, a cidade de Orléans, está sitiada, pode cair a qualquer momento nas mãos do inimigo. É necessário decidir urgentemente o envio de um reforço. Mas o Príncipe Carlos hesita — os soldados são poucos e têm o moral enfraquecido pelas derrotas passadas. Além do mais, falta um chefe, alguém capaz de conduzir as tropas e fazê-las acreditar na possibilidade de uma vitória. Como consegui-lo, se ele mesmo, o próprio príncipe, já tem sua autoridade contestada por tantos compatriotas? Não há mesmo quem negue que ele seja o herdeiro legítimo do trono? . . . Quanto mais Carlos pensa, mais confuso e pessimista vai ficando.

A chegada de Joana ao palácio real, em Chinon, foi apresentada muitas vezes como uma entrada triunfal. Mas, ao que parece, o rei desconfiou daquela menina que se apresentava como salvadora e resolveu aplicar-lhe vários testes, para comprovar a veracidade da sua história. Uma enviada de Deus serviria bem à propaganda de sua causa. 

     Embaixo, nos salões, a impaciência aumenta. De repente, a grande porta se abre. Todos se calam, preparando-se para saudar o príncipe. Então, a surpresa. Mal e mal cabendo em sua pesada armadura, surge uma menina de apenas dezessete anos, anunciada solenemente por um pajem: "Joana d'Arc, camponesa, chegada do vilarejo de Domrémy, que viajou dez dias e dez noites para cumprir uma missão do Céu, solicita humildemente a permissão de ver Sua Graciosa Majestade, o príncipe herdeiro... "

UMA MENINA METIDA A SANTA, VESTIDA EM ARMADURA, QUER FALAR COM O PRÍNCIPE

     — Com que direito uma simples camponesa pretende incomodar Sua Majestade em momento tão grave? — pergunta La Trémouille, assessor principal de Carlos.
     — O arcanjo São Miguel, Santa Catarina e Santa Margarida apareceram a mim numa grande luz e me ordenaram procurar o príncipe e libertar a cidade de Orléans! — responde Joana.
     La Trémouille troca olhares irônicos com seus vizinhos; quase não pode conter o riso. Dirige-se a Joana com uma solenidade exagerada — "Sua Majestade será prontamente avisada de vossa providencial chegada!" — e manda dizer ao príncipe que uma menina metida a santa apareceu no castelo contando histórias divertidas.
     — Quem sabe Sua Majestade poderia lhe dar o lugar do bufão, que anda muito sem graça ultimamente ...
     Carlos recebe a notícia com espanto. Mas, para se divertir, resolve aplicar um teste na recém-chegada. Vestindo-se como um súdito qualquer, entra por uma porta lateral e mistura-se aos nobres. Depois, manda que façam Joana entrar novamente. Como simples camponesa, ela não pode conhecer-lhe a fisionomia. Contudo, se o identificar ...
     Joana não vacila. Caminha até um canto dos salões, onde alguns nobres fingem conversar distraídos. Ajoelha-se aos pés do príncipe e diz:
     — Gentil senhor, em nome de Deus, eu posso dizer que sois filho do rei e herdeiro legítimo do trono da França!
     O príncipe está aturdido. Pede a vários bispos e cardeais que interroguem Joana:
     — Em que língua te falaram os santos?
     — Melhor do que a vossa, Excelência.

Segundo contou Joana, as vozes lhe ordenaram duas tarefas: salvar a França e coroar seu rei. Em pouco tempo, a história de suas visões se espalhou. Para uns, Joana era uma santa; para outros, uma enviada do diabo. (Óleo de Jules Jules-Eugène Lenepveu, Paris.)

     Em pouco tempo a segurança e a simplicidade da jovem acabam por convencer a todos. A começar pelo próprio príncipe.

O REI ESTÁ LOUCO. QUEM VAI GOVERNAR?

     Tragédia e intriga marcam a história do Príncipe Carlos e de toda a sua família. Carlos VI, seu pai, casara-se com uma princesa alemã de quinze anos, Isabel da Baviera. Um casamento arranjado, como era costume entre as famílias nobres. A menina foi ficando moça e, ao que parece, cada vez mais bela e atraente. Diziam as más línguas que a fidelidade ao marido não era exatamente o seu forte. Verdade ou não, o fato é que em pouco tempo Carlos VI tornou-se extremamente nervoso; e ao fim do sexto ano de casado teve o primeiro ataque de loucura.

Carlos VI está louco. Em meio a uma batalha, tenta matar um cavaleiro de seu próprio séquito. (Miniatura da época, Museu Condé de Chantilly.)

     Aproveitando-se da doença do rei, seu primo, o Duque de Borgonha (mais conhecido como João Sem Medo), começou a manobrar para tomar o poder. Mas ele não era o único a ter essa ideia: o Duque de Orléans, irmão de Carlos VI, também ambicionava a coroa. Por isso João mandou matá-lo.
     Os homens de Orléans não podiam aceitar esse desfecho. Depois de fundar um partido — o Armagnac — em torno do qual se reuniram, deram início à luta contra Borgonha.
     Na época não existia propriamente um país chamado França, como o entendemos hoje: o reino estava dividido em vários feudos, governados cada um por um senhor. Havia sem dúvida um rei, mas seus domínios e sua autoridade eram limitados a uma certa região. Fora daí, cada duque ou conde mais importante tinha seu próprio castelo, exercendo poder sobre enormes extensões de terra; cada castelo tinha a sua bandeira, seus cavaleiros munidos de lanças e escudos, com o brasão do senhor. O Duque de Borgonha era o maior dentre esses senhores feudais. Seu ducado — situado ao norte da França e incluindo a Bélgica de hoje — era maior e mais rico do que vários reinos; sua corte, mais suntuosa que a de muitos reis.
     Cada um desses ducados interessava-se principalmente por si próprio. Um súdito qualquer de Borgonha, antes de ser um francês, era em primeiro lugar um borgonhês. Comumente, os nobres casavam com princesas estrangeiras. Assim, as famílias reais e as nobrezas de vários países se misturavam. Podia acontecer, por exemplo, que um inglês viesse a ser rei da França. Os ingleses, aliás, não queriam outra coisa; reivindicavam a coroa francesa. Só que os franceses não gostavam da ideia. A luta começou pela disputa da Aquitânia, uma região do sudoeste da França, e se prolongou, intermitentemente, entre 1337 e 1450. Um cônego francês afirmava em fins do século XIV que "durante toda a sua vida vira apenas guerra". A frase poderia ter sido dita por seu pai ou por seus sobrinhos. A fome, a guerra e a peste foram tão constantes naquela época que surgiu nas zonas rurais uma nova invocação religiosa, na qual se pedia ao Senhor para livrar os homens destes três flagelos.
     Quando estourou na França a luta entre os dois ducados, no curso da Guerra dos Cem Anos, Henrique V, da Inglaterra, entendeu que a ocasião era boa para fazer uma nova investida. Não queria combater contra Borgonha, pois a Inglaterra mantinha intenso e vantajoso comércio com esse ducado. Preferiu desembarcar 30 000 homens na França, lançando um ataque às forças de Orléans. Foi a terrível batalha de Azincourt (1415), considerada a maior daquele século.

Na batalha de Crécy, como em seguida em Azincourt, ficou evidente a superioridade da infantaria e dos arqueiros ingleses               sobre a pesada cavalaria feudal. (Miniatura, séc. XIV, Biblioteca Municipal de Toulouse.)

     Na Idade Média os chefes de dois exércitos inimigos costumavam almoçar juntos antes de uma batalha e combinar as regras do jogo (recuar, por exemplo, era considerado vergonha para um cavaleiro, mesmo que estivesse em posição desfavorável). Para os nobres franceses a guerra ainda era assim, um misto de aberto conflito de interesses e de competição esportiva. Em Azincourt os cavaleiros e soldados franceses puseram-se em formação de alinhamento e foram avançando lentamente, em coluna. Contudo, os ingleses não respeitavam mais as velhas regras: escondidos atrás de uma colina, seus melhores arqueiros despejaram uma chuva de flechas sobre os adversários. Era uma grande inovação militar: os franceses, vestidos com pesadas armaduras e sem recuar por questão de honra, foram massacrados. Tiveram mais de 10 000 mortos.
     Toda a metade norte da França caíra em mãos dos ingleses ou dos seus aliados de Borgonha; Paris ficava sendo governada por um regente inglês, Bedford. Nobreza e funcionários franceses se acomodaram muito bem na nova situação, pois os ingleses ofereceram numerosas vantagens econômicas. Os poucos partidários de Orléans que restaram tiveram que fugir mais para o sul. O mesmo aconteceu com a família real.

Bastão de comando na mão, os senhores leais ao rei da França dirigem suas fôrças contra o inimigo inglês. (Min. séc. XV, Biblioteca do Arsenal, Paris.)

     Carlos VI enlouquecera. Mas havia um herdeiro, o Príncipe Carlos, e uma filha, Catarina. Querendo obter as boas graças dos ingleses, Isabel, a rainha, convenceu o marido a abdicar da coroa e oferecer a mão de Catarina ao rei da Inglaterra. Henrique V, apesar de velho e doente, aceitou depressa a oferta. Além de ganhar uma linda princesinha francesa, o negócio tinha outra vantagem, muito mais importante: a possibilidade de unir sua família com a família real francesa. Casaram-se e logo tiveram um filho, Henrique. Mas o velho rei morreu antes que o menino completasse um ano de idade. A criança, filha de um rei da Inglaterra e de uma princesa da França, foi proclamada "solenemente, pela graça de Deus, rei da França e da Inglaterra e soberano senhor de dois reinos".
     Mas Isabel e o "rei louco" ainda tinham outro filho, o Príncipe Carlos, já então um rapaz. Qual dos dois príncipes era agora o legítimo herdeiro? Carlos, o francês, ou Henrique, o inglês? Para desacreditar Carlos, os ingleses começaram a espalhar um boato: na verdade, como Isabel era uma "senhora de costumes duvidosos", o verdadeiro pai de Carlos não fora o velho Rei Carlos VI . . . Sendo filho de um pai desconhecido, o príncipe não podia ser herdeiro de coroa alguma.
      Nessa hora, Joana d'Arc chegou ao castelo e resolveu a grande dúvida do príncipe, fazendo-o crer que Deus revelara ser ele o legítimo herdeiro e ordenara a Joana coroá-lo soberano da França.

A JOVEM CAMPONESA DE DOMRÉMY DESCOBRE A GUERRA

     Mas quem era essa camponesa que se investiu de tão importante missão? Joana d'Arc nasceu em 1412, na cidade de Domrémy; quanto a isso não há dúvida. Mas ela se tornaria mais tarde tão famosa que até hoje existe uma disputa para saber a que província pertencia, na época, o seu lugar natal. Para alguns era a Champagne, para outros a Lorena. O General De Gaulle adotou como símbolo patriótico a dupla cruz de Lorena, em homenagem a ela (e os ingleses não perderam a oportunidade para ironizá-lo, dizendo que ele se considerava uma reencarnação de Joana d'Arc ...).
     Criada numa família camponesa, Joana teve três irmãos e uma irmã. Como eles, ajudava o pai no trabalho da terra, tomava conta dos carneiros no pasto e auxiliava também a mãe em casa. Por isso, não teve tempo para estudar; não aprendeu a ler nem a escrever. Só lhe ensinaram a dizer de cor o Padre-Nosso e a Ave-Maria, e assim mesmo errava muito. Sua casa ficava junto à igreja e Joana tornou-se muito crente — bastava ter cinco minutos livres e já corria a rezar. Não perdia uma só procissão ou festa religiosa. Mas também achava tempo para brincar com as outras crianças.
     Ficou muito impressionada quando um dia a família toda teve que fugir da cidade; as tropas inglesas estavam perto e foi preciso se esconder delas por uns tempos. Pela primeira vez, Joana soube o que era guerra. Porque raramente se ouvia falar nisso em Domrémy. A cidadezinha era afastada dos campos de batalha e as notícias andavam muito devagar nessa época. Não existia jornal nem correio. Só se sabia de alguma coisa quando passava um cavaleiro informado. Mas os caminhos eram tão ruins que um cavaleiro levava semanas para andar poucos quilômetros. Às vezes acontecia algo importantíssimo na cidade vizinha e apenas se ficava conhecendo os fatos, em Domrémy, um mês depois.
     Mas agora a situação estava realmente difícil para o próprio lugarejo; a população assustava-se com a aproximação dos ingleses. Foi quando Joana, então com doze anos, afirmou ter tido suas fantásticas visões. Segundo seu relato, ela passeava certa tarde pelo jardim da casa quando, de repente, uma luz fortíssima apareceu no céu, surgindo logo em seguida santos, aos quais prometeu ser boa, ter sempre fé e guardar eternamente a castidade; depois, ouviu vozes que lhe ordenavam salvar a França e coroar o rei.
     Durante quatro anos ela hesitou. Nesse meio tempo, a história das suas visões se espalhara. Enquanto muitos já a olhavam como santa e até como curandeira, outros sussurravam que Joana podia ser uma enviada do demônio... Certa ocasião, o Duque de Lorena mandou chamá-la, pedindo-lhe que curasse suas doenças. Joana não curou nada, só lhe deu um conselho: abandonar a amante e voltar à sua própria mulher...
     Joana continuava angustiada, indecisa, quando soube que a cidade de Orléans estava cercada. A guerra chegara a um momento crítico e a França não tinha um rei para defendê-la. Assaltada por esse pensamento, Joana resolveu-se. Procurou o Capitão Baudricourt e lhe pediu uma escolta para acompanhá-la até o príncipe. O capitão cedeu, pois toda a população estava ao lado da jovem. Com o dinheiro de uma coleta, conseguiram-lhe uma armadura e uma espada. E a 23 de fevereiro de 1429 Joana d'Arc partiu a cavalo na direção de Chinon.

Foi preciso muito esforço para convencer o Capitão de Vaucouleurs a fornecer-lhe a espada, um cavalo e uma carta de apresentação ao rei. Mas todo o povo já sabia e acreditava na missão de Joana d'Arc. (Jules-Eugène Lenepveu, Paris.)

     Uma lenda percorria então todo o reino: "Perdida por uma mulher, a França será salva por uma virgem". A mulher, todos imaginavam que fosse Isabel, a rainha. Quanto à virgem, já se começava a falar em Joana d'Arc.

UMA MENINA DERROTA A INGLATERRA

     Joana ganha a confiança de seu príncipe. Convencido de que é preciso agir depressa, Carlos outorga-lhe o título de "chefe de guerra".
     Falta uma espada. Joana conta que, segundo as vozes que ouvira, uma excelente espada estava escondida atrás do altar de Santa Catarina. Enviado até lá, um pajem volta com uma velha espada, completamente enferrujada. Dizem que bastou encostar nela um pano para que a arma ficasse brilhante na mesma hora.

                                                   A partida de Joana faz nascer uma esperança no povo místico da época:                                                       Deus a teria enviado para terminar com as guerras e a miséria.

     Joana recebe o comando de um comboio de víveres. A missão: furar o cerco de Orléans e abastecer os soldados já famintos. A moça põe-se à frente do grupo, levando nas mãos um estandarte, onde, ao lado de Deus, figuram os nomes de Jesus e Maria e o símbolo do reino, a flor-de-lis. Alguns dias mais tarde o comboio entra triunfante na cidade. Um coro de padres marcha à frente, cantando o Veni Creator.
     Joana não perde tempo. Liderando as tropas, ordena uma incursão contra os ingleses. Depois de algumas investidas, toma as principais bases de apoio do inimigo, que, surpreso com a violência do ataque, bate em retirada. Está libertada a cidade de Orléans. Uma das "regras" da guerra diz que um domínio não pode ser atacado na ausência do seu senhor. Ora, o Duque de Orléans ainda estava prisioneiro dos ingleses. Estes, ao atacarem a cidade, tinham cometido portanto um grande ultraje. Com a vitória de Joana, está salva a honra de Orléans.


Tendo Joana como estandarte, as forças de Carlos VII rompem o cerco de Orléans e retomam várias posições.

     Mas isto, para Joana, é apenas a primeira etapa. Falta agora o principal: coroar solenemente o príncipe na Catedral de Reims. Ocorre que Reims situa-se em território controlado pelos ingleses. Para chegar lá é preciso enfrentar vários batalhões inimigos. Joana está decidida, mas o príncipe hesita. Ela insiste: "Gracioso príncipe, Vossa Alteza já reuniu tantos e tão longos conselhos. Chegou a hora de seguir-me e vir receber em Reims a vossa digníssima coroa!" Carlos se convence. E, em apenas um mês de campanha, o exército de Joana, depois de infligir uma sucessão de derrotas aos ingleses, penetra em Reims a 16 de julho.

                                          A segunda parte da sua missão era chegar a Reims e coroar o rei na catedral.                                            Mas havia ingleses pelo caminho: muitas cabeças ficaram nas estradas.

     A entrada triunfal numa cidade era o maior símbolo de uma vitória. A cerimônia se preparava meticulosamente. Às vezes, até ocorria alguns dias depois da verdadeira entrada, para dar tempo de se organizar uma entrada a caráter, uma verdadeira apoteose. A população nas ruas aplaudia a cavalaria e o estandarte dos vencedores, após o que apareciam os chefes, anunciados por cornetas e vestidos com uniformes de gala.
     Joana aproveita para unir essa festa a uma outra — no dia seguinte, realiza-se solenemente na Catedral de Reims a coroação de Sua Majestade, Carlos VII, rei da França. De pé, ao lado do rei, tendo na mão seu estandarte, fica o "chefe de guerra", Joana d'Arc. Tomando a mão do novo soberano, diz-lhe:
     — Gracioso rei, está cumprida a vontade de Deus. Orléans de volta ao reino e Vossa Majestade coroado como único e legítimo rei da França.

Coroado Carlos VII, Joana chega ao apogeu da glória. Sua missão, para o rei, já se cumpriu. A partir daí, a heroína começa a se tornar incômoda. (Jules-Eugène Lenepveu, Paris.)

     Joana, no entanto, não está satisfeita. Não há ainda tantas terras francesas em mãos do inimigo? "Como seria bom", diz ela, "que Deus meu criador me ordenasse agora abandonar as armas, servir meu pai e minha mãe guardando as ovelhas... " Mas como pode a França ser livre, se Paris continua governada por um regente inglês? Sua Majestade, entretanto, não mostra o menor entusiasmo por outras aventuras. Alega que a missão de Joana está concluída.

CONQUISTAR PARIS É MAIS IMPORTANTE QUE GUARDAR OVELHAS

     As coisas mudaram. O príncipe agora é um rei coroado e está finalmente numa posição de força. Seu conselheiro, La Trémouille, diz-lhe ao ouvido:
     — Para que arriscar-se numa batalha dessas? Podemos muito bem entrar num acordo vantajoso com os ingleses e com o Duque de Borgonha... Além do mais, não podemos ter confiança eternamente em nossa heroína. Afinal, trata-se de uma mulher.
     Mas Joana insiste mais que o conselheiro. O rei acaba lhe concedendo uma tropa de quatrocentos homens — apenas quatrocentos homens — para conquistar Paris. Ela sai à frente; o Rei Carlos deverá encontrá-la em seguida. Chegando às portas de Paris, Joana espera por ele quinze dias.
     Do outro lado das muralhas, Paris prepara-se para uma longa resistência. A fama de Joana d'Arc é enorme. E os ingleses temem também o prestígio do novo rei. É importante impedir, de algum modo, que ela cative a população da cidade para a causa de Carlos VII. Bedford organiza uma grande procissão na cidade. Mais de 50 000 pessoas desfilam de tochas acesas nas mãos, jurando fidelidade ao Duque de Borgonha e ao regente inglês. Tratam Joana d'Arc pelos piores nomes — Bedford afirma que ela é um instrumento do demônio!
     Nas praças públicas, costumavam-se representar pequenas peças de teatro, ou mesmo simples cenas de dança ou de poesia. Era uma mistura de parque de diversões e de mercado: rebanhos de animais atravessando as ruas, carroças vendendo legumes, crianças brincando. Tudo isso em meio a uma terrível sujeira. As ruas não eram calçadas e não havia esgotos: detritos de toda espécie eram jogados na rua e se misturavam na lama. O povo passeava despreocupado, escolhendo entre um ou outro espetáculo. Mas agora o tema principal é Joana d'Arc. Ela aparece nos papéis mais incríveis. Nos versos, fala-se nela como "mulher pública" de Orléans.
     Enquanto dá esse divertimento para o povo, Bedford fortifica as muralhas, fabrica armas e baixa decretos: durante o cerco da cidade pelas tropas de Joana d'Arc, qualquer entrada ou saída pelos portões de Paris está proibida. Fica também proibido mandar ou receber cartas. Será severamente punido quem ousar subir nas muralhas da cidade, ainda que só para espiar (apenas as sentinelas armadas têm esse direito). Mas a verdade é que Paris não está, nem de longe, cercada. A falta de notícias leva os ingleses a exagerar o perigo.



Joana vence as fôrças inglesas em Patay (acima), mas não dá sua tarefa por terminada. Pede audiência ao soberano e recebe autorização para investir contra a cidade de Troyes (ao centro). A campanha é rápida e fulminante — Joana volta pouco depois ao monarca e apresenta as chaves da cidade conquistada (embaixo).

     Quando enfim o Rei Carlos chega e o ataque é iniciado, os ingleses dão uma resposta fulminante: a própria Joana é atingida por uma flecha que lhe vara a coxa. É preciso retirá-la à força do campo de batalha, pois ela não quer recuar de modo algum. Mas o rei é quem decide: o ataque fracassou, por ora desiste-se de Paris.
     Mal se recupera de sua ferida, Joana quer recomeçar a luta. Mas Carlos ouviu La Trémouille. Está decidido a conciliar com os inimigos. Inicialmente, manda Joana evacuar o Castelo de Compiègne, que está cercado pelo Duque de Borgonha. Missão sem grande importância, mas perigosa. Joana penetra no castelo e começa a proteger a retirada das tropas. De repente, quando quase todos já saíram, a ponte do castelo é levantada. Joana d'Arc está prisioneira.

Insistindo em continuar a luta, Joana é enviada a Compiègne e ferida no combate. (Jules-Eugène Lenepveu, Paris.)


PARA A SANTA INQUISIÇÃO ESSA MOÇA É UMA BRUXA

     Terá sido uma armadilha? Será que o rei, ou La Trémouille, já de acordo com o Duque de Borgonha, resolveu entregar Joana? De fato, os conselheiros do rei viam em Joana apenas um instrumento útil para dar confiança aos soldados e à população — uma espécie de bandeira ou de mascote do batalhão. Chegada a hora das barganhas e combinações diplomáticas, uma santa guerreira podia se tornar incômoda. Fosse ou não uma armadilha, a verdade é que Carlos VII nada fez para libertá-la.
     Aprisionada por uma companhia do Duque de Luxemburgo, Joana é encerrada no alto de uma torre. Mas tenta escapar. Improvisando uma corda com os lençóis, pula a janela e começa a escorregar pelo muro; contudo, a corda se arrebenta e ela cai desmaiada no fosso do castelo. O duque decide então vendê-la aos ingleses: Bedford paga 10 000 escudos e manda colocá-la numa jaula de ferro, os pés e as mãos amarrados. "Com uma enviada do diabo", diz ele, "é preciso tomar algumas precauções... "
     Se pagou um preço tão alto é porque tem um interesse especial na presa. Há muito tempo Bedford vem ruminando uma ideia: entregar Joana à Santa Inquisição, o mais elevado tribunal da Igreja na França. O objetivo: provar que Joana d'Arc não é nada menos que uma enviada do demônio. Essa condenação infamante, proferida pela própria Igreja da França, será uma grande desmoralização para o Rei Carlos. Todo mundo se perguntará que espécie de rei é este, que se deixou enganar por uma bruxa e foi até coroado por ela. Ao mesmo tempo, os ingleses mostrarão a todos que Deus está de seu lado, não da França.

 Feita prisioneira e entregue à Santa Inquisição, Joana é interrogada pelo Bispo de Beauvais, Pierre Cauchon: "Como foram mesmo as tais visões?... "
     O tribunal reúne-se pela primeira vez em fevereiro de 1431, sob a presidência do Bispo Pierre Cauchon, um velho partidário do Duque de Borgonha, aliado portanto da Inglaterra. Cauchon escolhe mais de setenta conselheiros religiosos para fazer parte do júri, todos ligados aos mesmos interesses. A acusada não tem o mínimo direito, nem mesmo a um advogado de defesa. Só se aceitam as testemunhas contra ela. Seu interrogatório é uma verdadeira tortura mental, destinado a confundi-la e levá-la ao desespero.
     Com relação às "visões", ninguém alega que são invenções da acusada. O que querem provar é que — ao invés dos santos — diabos e bruxas apareceram a ela:
     — Como eram os tais santos, tinham braços? Eram cabeludos? Por acaso tinham chifres?... E São Miguel, estava nu?
     — Os senhores acham que Deus não tinha roupas para dar a ele? —responde Joana.
     Mas para os juízes não há dúvida, quem conversa com criaturas do inferno só pode ser uma enviada de Satã. Prosseguem a inquisição:
     — Joana, reconheces que com a ajuda do diabo enganaste o Príncipe Carlos e ganhaste a sua confiança?
     — Não!
     — Ela disse sim — continua o juiz. — Podem pôr na ata: FEITICEIRA!
     Nada adiantam seus protestos. Só uma bruxa poderia ter adivinhado quem era o príncipe disfarçado entre os nobres, afirmam os juízes. "Só uma diaba podia ter comprado a alma de um rei".
     — E por que esta impudorada mulher só anda com roupa de homem? Não sabe que a Bíblia e todos os concílios consideram pecado tal sacrilégio?
     — São as roupas que uso para ir à guerra e defender a França.
     — Por acaso ainda é virgem esta mulher imunda?
     A essa pergunta, eles mesmos respondem: "PROSTITUTA!"
     Mas o crime mais grave para o tribunal é a heresia.
     — Como então esta mulher pretende obedecer diretamente a Deus e aos santos, sem respeitar a Igreja? Pois se a Igreja e o Tribunal da Inquisição são os representantes de Deus sôbre a Terra!
     — Herética! Bruxa! Relapsa! Prostituta!/Inimiga de Deus! Inimiga do rei! Inimiga do povo!/ Que ela seja levada, que ela seja morta,/que ela seja queimada!
     Com estes versos, o poeta Paul Claudel procura exprimir a terrível condenação dos inquisidores, que por quatro meses só têm um objetivo: obter de Joana a abjuração. Que ela reconheça as próprias culpas e renegue tudo o que disse ou fez em sua vida. Só assim alguém acreditará na sentença. Prometem poupar sua vida, se ela assinar a confissão. Por fim, Joana não resiste mais a tanta tortura. Completamente esgotada, a ponto de sua mão ser conduzida por um oficial de justiça, desenha uma cruz num documento contendo algumas linhas em francês — aliás, diverso do que apareceu depois no processo, ampla "confissão" escrita em latim. Uma vez obtida essa "confissão", ninguém se lembra de cumprir o prometido. Mandam preparar uma fogueira na praça central de Rouen, pois "só pelas chamas se destrói uma feiticeira". No dia 30 de maio, a multidão começa a se concentrar na praça.

A “FEITICEIRA” FOI QUEIMADA. ESTÁ NASCENDO UMA HEROÍNA

     A execução nessa época é sempre um espetáculo. O público vai assisti-la como a um divertimento, sem se comover com a cena. Mas desta vez o bispo teme uma manifestação favorável à condenada. Por isso, 120 homens armados com lanças e espadas acompanham Joana d'Arc até a praça e amarram-na ao poste. Seu cabelo está raspado. Seu olhar, mais que o cansaço, mostra dignidade.

Seu suplício foi um espetáculo público. Era preciso queimá-la e espalhar as cinzas — o símbolo da resistência francesa devia ser bem destruído. (Lenepveu, Paris.)

     Antes de acenderem o fogo, seus carrascos têm o cuidado de fazer o povo constatar a identidade da vítima. Depois de totalmente queimado, o corpo é reduzido a cinzas. Não querem deixar intatos ossos que possam servir de relíquia. Querem impedir que o povo transforme Joana d'Arc em objeto de veneração.

A NOVA JOANA É UMA GRANDE VIGARISTA

     0 objetivo inglês só foi atingido em  parte. Joana d'Arc fora condenada e queimada como feiticeira, por um tribunal de partidários de Borgonha, que todos sabiam ser aliados da Inglaterra. Mas morreu negando. A reputação do Rei Carlos não chegou a sofrer tanto quanto o esperado.
     De qualquer forma, os ingleses ainda têm uma esperança. Escrevendo a Henrique VI, diz Bedford:
     "Depois do cerco de Orléans, as coisas andaram de mal a pior para nós; nossos adversários inventaram uma mulher desordenada, feiticeira, idólatra e herética, cujos horríveis crimes conduziram-na justamente à fogueira. Desaparecida a causa diabólica de suas derrotas, a Inglaterra retomará certamente as posições perdidas", conclui ele.
     Para os franceses, apesar de tudo, a morte de Joana d'Arc teve um profundo efeito — um símbolo da França fora queimado numa fogueira. Por esse tempo, a ideia de "pátria" não existia; os vários feudos e ducados ainda não se tinham unido para formar o país. Dessa forma, nem todos entendiam por que o rei insistia tanto em expulsar os ingleses. Joana também não percebia bem. Mas estava convencida de que a luta era justa. Nessa época, a crença mística incentivava os homens, na guerra, com mais eficácia do que o sentimento nacional. Sem sua "santa guerreira", era como se a França tivesse perdido o apoio do Céu.
     Como continuar a guerra? Paris ainda estava em poder dos ingleses, que também ocupavam muitas outras regiões da França. De onde viria a salvação? Todos esperavam que algo acontecesse, que algum sinal viesse do Céu e desse de novo confiança aos franceses. Foi então que ocorreu o estranho episódio da falsa Joana d'Arc.
     Maio de 1436. Na cidade de Metz aparece uma jovem que jura ser a própria Joana d'Arc. — Não me queimaram. Puseram uma outra condenada em meu lugar e eu consegui escapar!
     Ansioso por uma aparição salvadora, o povo acredita na história. Mais incrível ainda: no mesmo dia, dois irmãos de Joana d'Arc, Pierre e Jean, chegam à cidade e não hesitam em afirmar: a recém-chegada é mesmo a irmã deles!

Dizem as lendas que Joana d'Arc jamais usou sua espada, a não ser sobre as "mulheres de má vida" que se misturavam às tropas.

     Diante de tantas "evidências", a população reúne recursos para dar a esta Joana um cavalo, uma espada e outros apetrechos e, especialmente, o dinheiro, de que ela diz estar necessitada. . . A jovem monta extremamente bem e maneja a lança como uma guerreira. "Ela ainda está em plena forma", reconhecem todos.
     Pouco tempo depois, um dos irmãos da verdadeira Joana surge em Orléans. Pede 12 francos aos habitantes do lugar, alegando que precisa de recursos para ir ao encontro dela. Nos anos de 1437 e 1438 a missa em memória de Joana d'Arc é suspensa na cidade: pois, se é fato que ela está viva, nada mais ridículo que rezar por sua alma! Em 1439, a própria "Joana" chega à cidade, sendo acolhida com grandes honras. Oferecem-lhe uma recompensa de 210 libras, "pelo bem que ela fez à cidade, durante o cerco", e dão-lhe um jantar regado com os melhores vinhos da região. A convidada não acabou ainda de esvaziar o copo, quando, de repente, levanta-se e, dando um pretexto qualquer, desaparece do salão - e da cidade. Os demais convivas não demoram muito para entender o acontecido. Um mensageiro chega e dá a notícia: "Foi descoberto que a dita Joana d'Arc é uma impostora!".
     Apesar disso nem todo mundo fica convencido. Assim, um sapateiro apresenta-se ao tabelião, acompanhado de um cavaleiro. Quer registrar a seguinte aposta: um par de botas contra um cavalo, como Joana d'Arc está ainda perfeitamente viva. Conta-se também que a falsa Joana quase enganou o próprio rei. Levada ao castelo, ela teria repetido a proeza da verdadeira Joana, reconhecendo o soberano disfarçado entre os nobres. Mas quando o rei perguntou qual era o "segredo" que existia entre ambos, a impostora se atrapalhou e confessou a farsa. Presa em Paris pouco mais tarde, confessou também que se chamava Claude, que era casada e mãe de dois filhos!
     Com muita facilidade, todos chegaram a acreditar por bom tempo nesta e em outras falsas Joanas. A França precisava de um herói, de uma bandeira para continuar a guerra. Na verdade, todos queriam acreditar que Joana não morrera.

ANTES, BRUXA. AGORA, SANTA

     Se Joana d'Arc não se tivesse transformado em heroína, é bem provável que alguém cumprisse seu papel de símbolo na luta dos franceses contra os ingleses. O que não significa, entretanto, que uma outra pessoa fosse fazer exatamente o que fez Joana, vencendo as mesmas batalhas, indo até a fogueira sem renegar a sua missão. Um herói geralmente surge quando há uma ansiedade geral por sua aparição, quando se espera muito por ele.
     Na época de Joana, o misticismo era uma importante força histórica. Os reis eram considerados reis "por direito divino". Que melhor forma, então, de assegurar-se da legitimidade, no caso de Carlos VII, do que através daquela palavra "que vinha do Céu"? A crença nos feitos sobrenaturais de Joana e o mito das "falsas Joanas" só se explicam no clima cultural da época, onde todos "precisavam acreditar".

Reconhecido enfim como rei da França, Carlos VII preferiu negociar a enfrentar o inimigo.

     À medida que a nação francesa foi-se formando, a figura de Joana foi, cada vez mais, sendo glorificada. Em 1450, o grande objetivo da heroína estava realizado: Paris reocupada por Carlos VII e os ingleses expulsos de toda a França. A Guerra dos Cem Anos terminara.
     Não se podia agora deixar difamado o nome daquela que fora a grande heroína da causa francesa. Decidiu-se rever seu processo, com a autorização do papa, pois se tratava de um processo da Inquisição. Constatou-se então que ele havia sido inteiramente arquitetado para dar uma "fachada cristã" à ocupação inglesa e para desmoralizar o rei da França. Denunciou-se a crueldade empregada para forçar a confissão de Joana d'Arc:
     — Nós dizemos, pronunciamos e declaramos que o dito processo e sentença, manchados de falsidade, de calúnia, de iniquidade, de contradição, de erro manifesto de fato e de direito, inclusive a abjuração, a execução e todas as suas consequências, foram, são e serão nulos, invalidados, sem valor e sem autoridade.
     Estava pronunciada a reabilitação de Joana d'Arc.
     Com a Revolução Francesa de 1789, ficava consolidada a nação. Joana tornava-se heroína nacional. Inaugurando em 1803 um monumento em sua homenagem, Napoleão Bonaparte declarava aos cidadãos de Orléans:
     — A ilustre Joana d'Arc nos prova que não existe milagre que o gênio francês não possa cumprir, quando a independência nacional está ameaçada.
     O reconhecimento governamental estava feito. Faltava o da Igreja: em 1909, Joana era beatificada; em 1920, canonizada e proclamada Santa Padroeira da França.
     Para os ingleses, ela continuou por muito tempo a bruxa que os expulsara da França com a ajuda do diabo... O teatrólogo William Shakespeare, em sua peça Henrique VI, apresenta-a como uma feiticeira que não hesita em se declarar grávida para escapar à fogueira. Foi preciso passar muito tempo para que ela fosse reconhecida também pela Inglaterra. Agora, na Catedral de Westminster, em Londres, há uma estátua de Joana d'Arc, colocada num lugar de honra. Sem dúvida, o último lugar onde Joana um dia pensaria estar.

A GUERRA DOS CEM ANOS



     Em 1429 a França era um país curvado ao invasor inglês e sem ânimo para reerguer-se: o Delfim Carlos VII, que se refugiara em Bourges, não se preocupava muito com a defesa do país, Orléans era a última grande cidade ainda em mãos dos franceses, 92 anos após o início da guerra que duraria mais de um século (a Guerra dos Cem Anos). Não se acreditava, àquela altura, que um dia a resistência se reavivasse e o jugo inglês caísse por terra. Muito menos que a iniciativa de encetar campanhas decisivas partisse de uma jovem camponesa de dezesseis anos: Joana d'Arc sai de sua terra natal — Domrémy — e consegue chegar ao delfim, na cidade de Chinon, convencendo-o a dar-lhe um pequeno exército. Oficiais e soldados recobram a esperança de vitória, ante aquele exemplo de confiança. O primeiro passo é atacar os ingleses que sitiam Orléans. A cidade é libertada. Depois de coroar o príncipe em Reims, Joana participa de uma frustrada tentativa de retomar Paris. É ferida e afastada do campo de luta. O próximo objetivo é libertar Compiègne, cercada pelos borgonheses. Outro insucesso. É aprisionada e vendida aos ingleses. Levada a Rouen, acusam-na de ser herege e feiticeira. Carlos VII nada faz para salvá-la. Joana é condenada à fogueira, onde morre protestando inocência. Em 1436 Paris é libertada e, após trinta anos de domínio estrangeiro, a Normandia volta aos franceses (1450). É o fim da Guerra dos Cem Anos.




JOANA D'ARC
  
é um fascículo (capítulo 23) da coleção encadernável 
GRANDES PERSONAGENS DA HISTÓRIA UNIVERSAL
Volume II, editado pela

ABRIL CULTURAL

com Copyright Mundial, em 1971, de
ARNOLDO MONDADORI EDITORE, Milão, Itália 

e Copyright para a língua portuguesa, em 1971 da
ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL







quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O VELHO PALÁCIO DA LUZ

     De uns tempos a esta parte, convencionou-se chamar ao velho casarão da Praça General Tibúrcio, que serve de sede ao governo cearense, Palácio da Luz. O nome é bonito, não há dúvida, inspirando-se no glorioso apelido que o Ceará mereceu por ter sido o arauto da emancipação dos escravos, - Terra da Luz. Aliás, é moda batizar os paços da governação pelo Brasil afora com títulos tradicionais ou impressionantes: Palácio dos Campos Elíseos em S. Paulo, da Liberdade em Belo Horizonte, da Aclamação da Bahia, dos Leões em S. Luís, do Ingá em Niterói, de Karnak em Teresina, o que lembra o velho Egito, da Alvorada em Brasília em outros.
     A sede do governo do Ceará, que já suportou um bombardeio de artilharia de 16 para 17 de fevereiro de 1892, quando foi deposto o general José Clarindo de Queiroz, um assédio de barricadas populares na deposição do Dr. Antônio Pinto Nogueira Acióli, em 24 de janeiro de 1912, e um tiroteio violento em 1914, abriga há mais dum século os representantes do poder público. Começou sendo um casarão particular, fora de portas, diz João Brígido, pois a cidade se compunha, então, de Praça do Conselho, depois da Sé, de umas quatro ruas, sendo uma, a Direita dos Mercadores, ao longo do Pajeú até a praia, e da Praça Carolina, mais tarde do Mercado, do Comércio e José de Alencar, que não chegava até aquele ponto. Edificou-o para sua residência particular o capitão-mor "de tijolo de coco e barro extraído das imediações da fortaleza; os rebocos foram de cal recebida do Aracati, donde primitivamente também vinha a telha".
     Em 1801, quando o referido capitão-mor faleceu no cargo de tesoureiro da Fazenda Pública, achava-se em débito de avultada soma para com esta. Por este motivo, a Junta de Fazenda penhorou-lhe o prédio e o vendeu à Câmara Municipal precisada de sede, pela grande quantia na época de 800 mil réis, servindo de fiador na transação, porque a referida Câmara não dispunha no momento de dinheiro em espécie, um dos homens mais ricos e prestigiosos da capitania, o capitão-mor dos Inhamuns, José Alves Feitosa.
     O Senado da Câmara viu-se obrigado a criar um imposto especial para pagar a sua nova casa. Foi o chamado Subsídio das Águas Ardentes, "que consistia, refere o historiador já citado, em 4 mil réis sobre pipa importada desse precioso líquido, que, ainda em 1814, em ata de sua sessão, dizia o Senado, ser objeto de luxo. Vinha de Pernambuco". Conseguia-se um palácio à custa da cachaça.
     O casarão ocupava a esquina da rua denominada do Rosário, que corre entre ele e a Igreja dessa invocação, sobre o terreno em declive para o Vale do Pajeú, tendo como sua dependência toda a área compreendida entre ele e as ruas do Rosário e antiga do Cajueiro. Em julho de 1803, o ouvidor Cabral a mandou cercar com altas estacas de pau-ferro, espontadas e seguras com travessas de madeira pregadas a prego. Nelas se abria um portão de tábuas, com ferrolho e chave, protegido por um tejadilho. A obra, terminada em dezembro, custou 90 mil réis e delimitou o perímetro em que hoje se levantam os corpos da edificação, terraços, pátios, jardim e quintal do Palácio da Luz, uma quadra inteira na parte central e mais importante da cidade de Fortaleza. No tempo do futuro marquês do Aracati, João Carlos de Oyenhausen e Grevenburg, os soldados da guarda, mal pagos e famintos, pulavam a cerca para furtar as goiabas do governador...
     Antes de vir para o solar do capitão-mor Viana, a Câmara ocupava uma casa da antiga Praça do Conselho, edificada entre 1721 e 1727 por 400 mil réis, tirados do imposto dos açougues ou talho das carnes pelo governador Manuel Francês. Nela residiram alguns governadores da capitania e foi vendida, depois, ao mestre régio Ávila por 90 mil réis. Sempre maus os negócios oficiais. Devido a essa Venda, eles que, antes, assistiam no quartel da fortaleza, passaram a habitar uma casa de terraço de tijolo e grandes portões, ao lado do Mercado de Cereais, que foi demolida entre 1928 e 1930, para aumento deste. Deitava para a Rua Direita dos Mercadores, do Comércio, de Baixo, do Conde d'Eu e Sena Madureira, que todos estes nomes teve no decurso do tempo. Pertencia a Raimundo Vieira da Costa Perdigão e rendia de aluguel 40 mil réis por ano. Imagine-se se tivesse sido congelado por uma lei do inquilinato, que beleza! Ao mesmo foi mais tarde adquirida.
     Em 1809, a Câmara recebeu-a em troca da do capitão-mor Viana. Para esta vieram os governadores; para aquela foram os edis, que dali somente sairiam para o sobrado de Francisco José Pacheco de Medeiros, o famoso Pachecão, após a independência, nele permanecendo até há poucos anos. Esse último paço municipal foi posto abaixo para o alargamento da Praça do Ferreira e construção dum abrigo de cimento armado, espécie de Tabuleiro da Baiana.
     Ocuparam o Palácio da Luz desde 1809 todos os capitães-mores e governadores da capitania do Ceará Grande, presidentes da província e comandantes das armas, presidentes, interventores e governadores do Estado. A lista é longa, pontilhada de homens notáveis como Manuel Inácio de Sampaio, Pedro José da Costa Barros, padre José Martiniano de Alencar, Manuel Felizardo de Sousa e Melo, brigadeiro José Joaquim Coelho, padre Vicente Pires da Mota, José Bento da Cunha e Figueiredo, Diogo Velho Cavalcânti de Albuquerque, Heráclito Graça, o barão de Catuama, o barão de Sobral, Miguel Calmon du Pin e Almeida, Antônio Caio da Silva Prado e Jerônimo Rodrigues de Morais Jardim, sem falar nos do período republicano.
     Compunha-se o prédio, ao princípio, somente da parte térrea, na esquina fronteira à Igreja do Rosário, onde durante muitos anos funcionou a Secretaria do Interior e, depois, se instalou a Secretaria do Governo, bem como da parte que lhe seguia até a cerca de pau-a-pique já referida. Fez-lhe obras Barba Alardo em 1811. Em 1839, o presidente João Antônio de Miranda aumentou a edificação até a Rua de Baixo, construindo o grande salão central e a parte assobradada que deita para a mesma. Em 1844, o tenente-coronel Inácio Correia de Vasconcelos levantou o terraço que se segue ao sobrado, perlongando a referida rua. Em 1854, o padre Pires da Mota edificou a sala de jantar, unindo-a por alpendradas à ala primitiva e por um belo terraço ajardinado, com painéis de azulejos e estatuetas de louça do Porto, ao terraço, de Vasconcelos. Em 1878, José Júlio de Albuquerque Barros, barão de Sobral, fez o passadiço coberto e com rótulas que completa a moldura do pátio interno, dando-lhe um ar conventual, tanto que, visitando-o, em 1913 ou 1914, Paul Adiam julgou, como escreveu, achar-se em um mosteiro antigo. Eis o que diz no fim do último capítulo de "Les visages du Brésil": Au palais du Président, il est un vieux cloitre rose et Mane, dallé de céramiques claires.
     Afinal, outras modificações de pouca monta foram levadas a efeito em algumas das administrações republicanas. Do mobiliário antigo, estragado em grande parte pela metralha em 1892, havia ainda até 1929 alguns dunquerques de espelho, com tampo de mármore, jarrões de porcelana e grandes espelhos de molduras douradas no salão, e toda a guarnição da sala de jantar em nogueira esculpida. Depois de 1930, tudo isso desapareceu. Quod non fecerunt barbari fecerunt Barberini... E os Barberini, sobretudo, das intervenções, não foram poucos...
     Em 1811, quando esteve de passagem pelo Ceará, o viajante inglês Henry Koster frequentou as reuniões que dava no casarão do capitão-mor Viana, recentemente trocado com a Câmara Municipal, o governador Luís Barba Alardo de Menezes. Eram pequenas recepções improvisadas, com chá, café, conversa e jogos de cartas, que faziam passar o tempo agradavelmente. Nas datas solenes, ao pé do retrato do príncipe regente de Portugal, sob um rico dossel, o governador de grande uniforme, recebia num estrado alto as homenagens das pessoas gradas e, à noite, dava-lhes um jantar de gala, em que tudo era "excelente e adequado". Acrescenta Koster que esse administrador construíra a parte central do paço, empregando nessa obra trabalhadores índios, aos quais pagava a metade do que custavam os braços livres. Era, então, o palácio o único edifício assoalhado em toda a vila.

     Longe vão esses bons tempos. Em nossos dias, apesar do nome pomposo e ilustre, o Palácio da Luz não corresponde mais ao ambiente em que se encontra. A vila antiga é uma cidade moderna, viva e bela, de mais de 300 mil habitantes, uma das principais e melhores do País. As edificações de 1808, 1811, 1839, 1854 e 1878 não se integram mais no sentido e na forma de viver da atualidade. O velho Palácio da Luz, carregado de tradição e de história, não está mais de acordo com a esplêndida capital onde se encontra. Isto é uma grave ameaça que pesa sobre ele, porque em nossa terra ninguém sabe conservar a alma das coisas, há mesmo o desprezo, senão o ódio, pelo que chamam velharias. E, ao invés de construírem um paço novo, adequado a seus fins e ao ambiente, destinando o antigo, devidamente restaurado, a serviços públicos de natureza educativa ou cultural, sem dúvida um dia porão abaixo as veneráveis paredes que abrigaram tantas figuras ilustres do nosso passado e resistiram impávidas aos canhões La Hitte de 1892. Perderia Fortaleza um edifício desgracioso e velho, mas impregnado, para os que se habituaram a vê-lo desde a mais tenra infância e a ouvir falar dele, da mais viva e humana simpatia. Ele por si só representa uma peregrinação ao passado, dessas que somente podem realizar os que aprenderam a compreender com Maurício Barrés o romantismo sem par das coisas mortas.





- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.